Edição 500 | 13 Março 2017

Cinema - No espaço do tempo infinito, a obsessão pela memória

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Ricardo Machado

Os dois últimos documentários do chileno Patricio Guzmán, Nostalgia da Luz e Botão de pérola, retomam a história das vítimas da ditadura de Pinochet

O cinema minimalista de Patricio Guzmán em Nostalgia da Luz (2010) e Botão de pérola (2015) é capaz de apresentar nossa condição humana desde um minúsculo grão de areia ou gota de água até a imensidão do cosmos. Enquanto em Nostalgia da Luz o documentário é ambientado na árida região do Atacama, local mais seco do mundo, em Botão de pérola é a água que conduz a história, na Patagônia do Chile. A linha do tempo que atravessa os filmes e a vida na terra é costurada com o fio da existência do próprio universo, com seus silêncios desérticos e seus oceanos de vapor de água no espaço sideral.

É pelas lentes de Guzmán e pela sombra do passado que os mortos voltam para “assombrar” o presente de quem esqueceu de olhar para trás. Muito do que sabemos do universo, dos planetas, nebulosas e estrelas, o sabemos pelos satélites posicionados no Deserto do Atacama, no Chile. Não muito distante dos cientistas que olham para o céu, é para o chão que olham as mulheres – filhas, esposas e mães – dos desaparecidos políticos do regime de Pinochet. Buscam corpos, mas não os celestes, e observam a terra na tentativa de um pedaço de memória. Às vezes, trata-se de uma parte de carne e osso, dado que o local é tão seco que, mesmo décadas depois de serem enterrados em valas comuns, há corpos em relativo estado de conservação. É na encruzilhada do encontro da astronomia, antropologia e política que Nostalgia da luz se realiza. A memória do deserto é implacável, lá se pode ver das inscrições multisseculares dos povos pré-colombianos aos vestígios da crueldade da ditadura militar chilena.

O estreito e comprido país latino guarda pouca semelhança entre a metade norte e sul. O que une os pontos da história é a execução de todos aqueles que não cabem no projeto hegemônico de poder, em suas diferentes expressões. O primeiro passo à marcha do extermínio humano na costa chilena foi dado ainda no século 19, quando navegadores ingleses passaram pelo Pacífico Sul e viram pessoas às quais descreveram como “pantagones”, que significa algo como “seres de patas grandes”. Para a civilização ilustrada europeia ávida por colonização, aqueles povos não eram sequer dignos de serem chamados de humanos, por isso o termo “seres”. É desde o litoral chileno de mais de 4 mil quilômetros que a história de Botão de Pérola é contada. A água é o elemento central do documentário e é a partir dela que a história dos Kawashkar, Yamana e Selk’nam, etnias indígenas que vivem há séculos na patagônia chilena, é contada. Os poucos sobreviventes aos colonizadores e à exploração dos territórios durante a ditadura chilena foram obrigados a abandonar quase todos seus modos de vida. A água, que para estes povos não é somente um bem natural, mas um modo de existência, tornou-se um recurso domesticado, do qual não têm o direito de usufruírem nem mesmo da imensidão do mar sem serem interpelados pela guarda costeira.

Imagem: cena do filme Nostalgia da Luz

O que une os dois filmes, além da divagação metafísica e o apuro poético-cinematográfico e textual de Guzmán, é a brutalidade da ditadura chilena. A geleira de silêncio sobre os perseguidos durante a era Pinochet, presidente entre 1973 e 1990, e mesmo depois de sua morte em 2006, vai se derretendo pouco a pouco. Longe dali, o passo vem à tona nos pequenos detalhes do tecido de uma roupa que “emerge” de um corpo no Atacama. O mar, que esconde segredos para os que conhecem apenas sua superfície, revela verdades aos que arriscam conhecer suas profundezas. O minimalismo de ambas produções reside na conexão de tudo com tudo, no olhar complexo sobre a infinitude do espaço e sua relação com a pequenice de nossa existência, na vã esperança dos apoiadores do regime militar de ocultar o passado debaixo das salgadas águas do Pacífico.

Com sua voz calma, mas cheia de emoção, Patricio Guzmán nos conduz por suas divagações obsessivas em transformar o deserto em memória, em transformar o oceano em um livro de história, em transformar o esquecimento em vida. No fundo, esse parece ser o grande projeto político dos documentários, trazer à vida os desaparecidos políticos do regime de exceção chileno. Enquanto não chega a última produção da trilogia, ainda sem título, mas que deve ter como eixo central a cordilheira dos Andes, Nostalgia da Luz e Botão de pérola são dois enormes tratados sobre nossa (des)humanidade, a partir de episódios chilenos que reconstroem o mural da barbárie humana, não para ser admirado, mas para jamais ser esquecido. ■

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