Edição 499 | 19 Dezembro 2016

Cabral tornou-se influência insuperável

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Vitor Necchi

Para Thaís Toshimitsu, a se notar pelo panorama poético contemporâneo, a obra cabralina é um ponto de convergência e de chegada da produção do século 20

Thaís Toshimitsu percebe dois tipos de recepção ao poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto. Os contemporâneos ao lançamento (1956), assim como os envolvidos e espectadores da peça encenada em 1968 com música de Chico Buarque, receberam bem. Por outro lado, a crítica, principalmente ligada ao movimento concretista, desprezou o texto, “tido como menor, humilde, simplista etc”. Para além desses panoramas, Thaís, provocada a pensar se o autor é um dos gigantes da poesia brasileira, afirma: “Sem dúvida, a se notar pela produção poética contemporânea, Cabral tornou-se uma espécie de influência insuperável. Um ponto de convergência e de chegada da produção do século 20, tanto inédita quanto desafiadora”.

Morte e vida severina não chegou ao povo analfabeto que consumia os romances de cordel, observa Thaís em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Por conta disso, Cabral se frustrava, pois pretendia realizar uma obra popular, de tomada de consciência. “Manteve-se, assim, não só limitado a uma experiência e a um sentimento de classe, o que restringe sua funcionalidade, mas a uma classe a quem o poema intencionalmente não fora dirigido.” Conforme a pesquisadora, o fracasso do autor “reside na impossibilidade de o texto constituir uma relação, por meio da palavra, entre o intelectual/artista e os homens pobres e analfabetos”.

Seis décadas depois, Thaís acha que, de certo modo, Morte e vida severina ainda é atual e serve como instrumento de denúncia. Mas com alguma ressalva, pois considera “já ser pouco o apontamento da miséria e de suas causas econômicas, dadas pela violenta exploração do trabalho e do trabalhador, ante as ‘novas velhas’ condições que estamos enfrentando neste momento no país”.

Para Thaís, os poemas de João Cabral — que defendia o trabalho de arte em contraposição ao enaltecimento da inspiração — “têm como ponto de partida o universo que o formara subjetivamente, de modo que a escolha do Nordeste o implica diretamente na situação que se lê nos poemas e, embora ele deseje conceber-se somente como espectador daquela vida miserável, é parte intrínseca dela”.

Thaís Toshimitsu é doutora, mestra e graduada em Letras pela Universidade de São Paulo – USP, onde atualmente faz estágio pós-doutoral no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP. Em sua tese e dissertação, pesquisou a obra de João Cabral de Melo Neto. É professora da Bolandeira - Casa de Letras e Ideias.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - A escolha por escrever um auto de Natal decorre do apreço de João Cabral pelos formatos clássicos ou ela guarda alguma referência mais subjetiva? A alusão ao universo religioso, incluindo o nascimento de Jesus, diz respeito a traços pessoais do autor ou se trata de estratégia narrativa para contar uma história que dialogasse com o imaginário popular?

Thaís Toshimitsu - É conhecida a estória sobre a criação de Morte e Vida... Maria Clara Machado encomendara a Cabral, àquela altura, uma peça de teatro que pudesse ser representada pelo grupo Tablado, do Rio de Janeiro, mas que, ao fim, acabou sem realização em cena. Cabral, então, transformou o texto dramático em um poema dramático, retirando-lhe apenas as marcas de entrada das falas. Sua publicação em livro data, pela primeira vez, de 1956, em Duas águas.

A forma do auto de Natal é interessante porque resulta do projeto consciente do autor para sua produção poética naquele momento. Se o compreendermos como parte de uma trilogia acerca do rio Capibaribe, que contaria ainda com O cão sem plumas (1951) e O rio (1953), fica evidente o desejo de Cabral de configurar e incluir o Outro em sua poesia. Morte e vida realiza isso ao dar voz a Severino, sertanejo retirante, por meio da escolha de uma forma popular — o auto de Natal, contudo, pernambucano. Ponto de encontro entre a religiosidade cristã filtrada, no entanto, pela experiência popular local e a tradição ibérica herdada pela colonização. De certo modo, o auto perfaz um encontro entre os mundos culto e popular, apontando para uma linha de continuidade entre ambas no tempo, invertendo o ponto de vista da História.

 

IHU On-Line - João Cabral é um dos gigantes da poesia brasileira? Por quê?

Thaís Toshimitsu - A pergunta é difícil e vou tentar respondê-la criticamente sem pensarmos apenas em exaltações ao poeta, o que pouco nos auxilia a vê-lo. Sem dúvida, a se notar pela produção poética contemporânea, Cabral tornou-se uma espécie de influência insuperável. Um ponto de convergência e de chegada da produção do século 20, tanto inédita quanto desafiadora.

Inédita porque não havia entre nós uma tradição lírica que escapasse à construção melódica ou à inclinação discursiva. Cabral constrói seu campo poético sobre novos paradigmas afinados ao recente processo de modernização do país e à promessa do que a racionalidade em país atrasado propunha realizar. Uma poesia conduzida pelo pensamento e pelo rigor construtivo postos em primeiro plano. Sua matéria poética desvia-se, portanto, do sentimentalismo fácil, do tom nostálgico — tão típico de nossas elites —, da inspiração como motor da criação. Em termos formais, afasta-se do apelo sonoro, indutor de sensações e das formas prontas.

O construtivismo de Cabral colocava-se como escolha formal e estética contra a violência, com vislumbre ao desenho utópico de uma sociedade mais justa.

 

IHU On-Line - Para João Cabral, a inspiração era um incômodo. O que isso revela do seu entendimento acerca do ato criativo e do seu processo de escrita?

Thaís Toshimitsu - A escolha da racionalidade já se mostra como contraposição à inspiração. Cabral defende em seus poucos textos teóricos e em sua poesia o trabalho de arte em contraposição ao enaltecimento da inspiração. Sua criação se fazia da atenção e não da emanação inconsciente. O risco de automatização do trabalho o mantinha vigilante a esse respeito.

O poema Catar feijão (de Educação pela pedra) talvez seja seu texto mais famoso na descrição do seu procedimento de trabalho:

Catar Feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:

joga-se os grãos na água do alguidar

e as palavras na folha de papel;

e depois, joga-se fora o que boiar.

Certo, toda palavra boiará no papel,

água congelada, por chumbo seu verbo:

pois para catar esse feijão, soprar nele,

e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:

o de que entre os grãos pesados entre

um grão qualquer, pedra ou indigesto,

um grão imastigável, de quebrar dente.

Certo não, quando ao catar palavras:

a pedra dá à frase seu grão mais vivo:

obstrui a leitura fluviante, flutual,

açula a atenção, isca-a como o risco.

Há muitos pontos interessantes nele: o peso desejado para o pensamento, uma espécie de “plumpes denken” a garantir o lastro do raciocínio; a precisão e objetividade na escolha das palavras, para que nada sobre, mas também, como a amarrar a escolha estética, a aproximação entre o fazer poético e um ato cotidiano, caseiro, de trabalho. Podemos pensar em Cabral como um herdeiro da prosa de Graciliano Ramos  mais que da tradição poética constituída entre nós (embora ela não esteja descartada). E à semelhança do escritor alagoano, que se comparava às lavadeiras de roupa a torcerem o excesso, a concepção estética da escrita está fundada em atitude ática diante da miséria e do atraso nordestinos e brasileiros.

 

IHU On-Line - Por que ele estranhava a relação calorosa que Morte e vida severina teve entre intelectuais?

Thaís Toshimitsu - Para responder a isso, cito o próprio escritor, em entrevista dada no início dos anos 1990: “Pensam que não gosto do livro (...). Agora uma coisa que me decepcionou é que quando escrevi Morte e vida severina estava pensando nessa gente, como aquela do engenho, que não sabe ler e ficaria escutando (...). Foi ingenuidade minha. Morte e vida severina não chega ao povo analfabeto que consome os romances de cordel”.

Não estranhava, portanto, a recepção entre os intelectuais, mas frustrava-se ante o desejo de realizar uma obra popular, de tomada de consciência, que, contudo, foi lida e apreciada pelos seus pares. Manteve-se, assim, não só limitado a uma experiência e a um sentimento de classe, o que restringe sua funcionalidade, mas a uma classe a quem o poema intencionalmente não fora dirigido. Seu fracasso, assim, reside na impossibilidade de o texto constituir uma relação, por meio da palavra, entre o intelectual/artista e os homens pobres e analfabetos. 

No entanto, os intelectuais e artistas que receberam bem a obra foram, sobretudo, seus contemporâneos e, mais tarde, os envolvidos e espectadores da peça encenada em 1968 , com música de Chico Buarque . É corrente na crítica, principalmente ligada ao movimento concretista, um desprezo pelo texto, tido como menor, humilde, simplista etc.

 

IHU On-Line - O texto de Morte e vida severina é marcado pela crítica social, fruto de uma época de tensionamento, de articulação dos camponeses e de abismos entre classes sociais. Seis décadas depois, ele ainda é atual, ainda serve como instrumento de denúncia?

Thaís Toshimitsu - Acho que sim, de certo modo. Todavia, me parece já ser pouco o apontamento da miséria e de suas causas econômicas, dadas pela violenta exploração do trabalho e do trabalhador, ante as “novas velhas” condições que estamos enfrentando neste momento no país.

Se compararmos o poema de Cabral ao romance Vidas secas , fica mais claro como o poema perdeu, ao longo do tempo, em relação ao texto de Graciliano. O desejo de ampliação de público, que está na base de Morte e vida, se faz na crença da possibilidade de supressão da distância entre as classes no Brasil. Esse procedimento ocorre em Morte e vida por meio da consciência do subdesenvolvimento dada como forma literária e que resulta em alguma ingenuidade, ao mesmo tempo, em certo conformismo.

Na medida em que o aspecto cíclico da obra de Cabral aponta para a vida sempre capaz de nascer, aproximando o destino do homem pobre ao de Cristo, a negatividade da obra cai, e o tensionamento da trajetória de Severino se dilui. Mesmo que a nova vida seja uma repetição de todas as outras e os homens se vejam prisioneiros do ciclo infinito de miséria, há redenção no final. O oposto ocorre em Vidas Secas, onde o caráter cíclico da obra aponta para o aprisionamento dos homens pobres ausentes de consciência do sistema no qual sobrevivem. 

O momento atual exige consciência crispada, atenção vigilante e força para realizar enfrentamentos e embates — forma permanentemente recusada ao longo de nosso processo histórico.

 

IHU On-Line - O imaginário em torno do Nordeste remetia fortemente, até o final do século passado, à seca e à figura do retirante. Nas últimas décadas, tem-se a impressão de que esta situação foi atenuada, embora, mais recentemente, a seca voltou a assombrar a região. Qual a importância de Morte e vida e severina na representação desta realidade? Em que reside o vigor e a permanência do poema?

Thaís Toshimitsu - Embora o desejo hoje seja o de uma obra mais combativa, Morte e vida segue sendo um modelo ético e, por conta disso, estético. Sem dúvida alguma, a realidade de que o poema trata se mantém viva e o texto, atual, o que revela o caráter de modernização conservadora de nosso processo histórico sustentado pelo interesse de nossas elites. A atualidade, portanto, não reside no problema da seca. As grandes obras nordestinas desde os anos 1930, dentre elas destacada Vidas secas, trouxeram à tona a violência da exploração do trabalhador e das periferias no país. O resultado é a revelação da modernização da produção do campo e da cidade como ainda condenação das classes trabalhadoras, e esse caráter não apenas se conserva, como se adensou nos últimos meses, quando estamos assistindo a um dos maiores retrocessos, do ponto de vista das poucas conquistas trabalhistas, da história desse país.

 

IHU On-line - Qual era a perspectiva política do autor? Como o contexto histórico-social influenciou na escrita do poema?

Thaís Toshimitsu - Cabral, embora tivesse respondido a processo de acusação de comunismo no início dos anos 1950, não pode ser definido como um escritor engajado, no sentido da construção de uma poesia participante. Contudo, Morte e vida talvez tenha representado seu maior esforço na direção da concepção de uma forma literária que apontasse para um horizonte socialista.

 

IHU On-Line - Na coletânea que reúne poemas de João Cabral que aludem ao Capibaribe [O rio, editora Alfaguara], a filha do poeta, Inez Cabral, afirmou que o rio foi para o autor “um filme em sessão contínua, uma leitura sem fim, em outras palavras: um canal de aprendizado e contato com o mundo ao seu redor”. O que o rio mostrou para o autor? Na geografia particular dele, qual a dimensão do Capibaribe?

Thaís Toshimitsu - O rio é o da infância, do passado, da formação mais essencial e anterior do poeta. Por isso não pode referi-lo como um rio ou o rio, mas sempre, em O cão sem plumas, como aquele rio. As imagens e símiles vão à busca de um “reespessamento” do real, rarefeito pela memória. Eis o esforço da consciência em tensão com a subjetividade. Não de qualquer consciência também, mas daquela despertada por um compromisso social, entretanto, em conflito com a afetividade construída no passado.

Chegamos a um ponto importante, pois em João Cabral, ao tomarmos O cão sem plumas como ponto de partida, notamos que aquilo que singulariza sua obra — ao mesmo tempo em que lhe empresta legitimidade — também problematiza seu engajamento. Seus poemas têm como ponto de partida o universo que o formara subjetivamente, de modo que a escolha do Nordeste o implica diretamente na situação que se lê nos poemas e, embora ele deseje conceber-se somente como espectador daquela vida miserável, é parte intrínseca dela. Afinal, ao retornar por meio da poesia ao mundo nordestino, que abandonara na juventude, volta-se para os pobres do rio pernambucano, fazendo-os centro temático e formal de sua poesia, gesto que o obriga a situar-se subjetiva e socialmente, de modo bastante concreto, em relação ao que estava produzindo.

 

IHU On-Line - Qual a sua opinião sobre as versões para cinema e televisão de Morte e vida severina? No que elas projetam ou reduzem a obra original?

Thaís Toshimitsu - A peça, escrita na metade dos anos 1950, ganhou braços que a manteve presente no imaginário do público brasileiro durante mais de 30 anos: a primeira montagem foi feita no teatro Cacilda Becker, com Walmor Chagas  no papel de Severino, na sequência Siqueira  realizou a conhecida montagem com música de Chico, Zelito Viana  fez seu filme nos anos 1970 e Avancini , o especial de TV, nos 1980. Morte e vida severina experimentou praticamente todos os veículos de arte e comunicação modernos: nasceu livro, passou a ter existência viva no teatro, foi disco, filme e programa de televisão.

A crítica, diante da situação, fez do fato de Morte e vida só ter alcançado a popularização com as músicas de Chico a medida do fracasso poético e comunicativo e estético do poema. Desde então, o texto passou a ser desvalorizado pela crítica especializada, ao mesmo tempo em que proporcionalmente sua função didática crescia. Foi adotado pelas instituições de ensino como referência de estudo da obra de João Cabral e do que as escolas e os livros didáticos nomeiam como terceira geração modernista. Acabou na lista de leituras exigidas pelo concurso vestibular de universidades públicas; foi resumido, analisado e estudado longa, mas também, superficialmente, em livros, apostilas, sites da internet. 

Tanto a afirmação do poeta quanto a força que a música popular adquire no país, em substituição à poesia ou misturada a ela, parecem sintomas do mesmo subdesenvolvimento, agora evidente no campo da cultura, de que João Cabral, os de sua geração e os de antes tinham tomado consciência. Com isso, não afirmo que a música popular tenha qualidade inferior à literatura, não se trata disso, mas de notar que apesar de o analfabetismo vir decrescendo, não houve aumento proporcional no número de leitores no Brasil. De tal modo que a música (popular brasileira) veio disputar lugar com a literatura, em lugar de unir força a ela, mantendo o perfil da cultura brasileira algo débil.

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