Edição 498 | 28 Novembro 2016

Um processo psicanalítico para rever o Brasil

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João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

Para Paulo Gleich, Raízes do Brasil ajuda a pensar o país na atualidade e a localizar problemas e questões a serem ampliadas através de outras leituras e diálogos

O psicanalista Paulo Gleich considera que Raízes do Brasil é uma obra aberta, e isso é fundamental para a leitura do livro. “É um texto que convoca ao diálogo, mais que a propor uma versão verdadeira, definitiva. Há certamente pontos a serem colocados em dúvida em uma leitura contemporânea, como por exemplo a quase ausência da questão dos negros, mas essas faltas não podem ser tomadas como razão para descartar a obra em seu conjunto”, avalia em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Fazendo uma aproximação com o processo psicanalítico, Gleich explica que, ao “nos ocuparmos de nossas neuroses atuais, precisamos nos debruçar sobre aquilo que nos antecedeu; não apenas a infância, como diz o senso comum, mas no que se transmite inconscientemente através das gerações”. Algo parecido se verifica “com a vida de um povo: não é possível, para lidar com a situação presente, apenas tentar encontrar nela mesma as chaves de leitura para sua compreensão”. Neste sentido, Raízes tem um papel de destaque, “porque destaca alguns traços que se mantêm e repetem ao longo da história, desde nossas origens coloniais e rurais, e que, se lemos o momento atual com ajuda deles, podemos situá-lo para além do debate mais imediato que geralmente acompanhamos na imprensa e nas redes sociais”.

Em Raízes, Sérgio Buarque de Holanda destaca a influência da colonização ibérica, mas, ao tratar dos “antepassados”, repete algo verificado na própria história do Brasil: “fala-se muito pouco de nossas raízes africanas, como se sua presença fosse quase que acessória, talvez pela condição de sujeitos subjugados, instrumentalizados desde o início de sua entrada no país”.

Paulo Gleich é bacharel em Jornalismo e Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA e do Instituto APPOA. 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - De que forma a leitura de Raízes do Brasil pode fornecer pistas para se compreender o país nos dias de hoje?

Paulo Gleich - Acho importante primeiramente situar de onde eu leio e falo, que é como psicanalista — não sou, por exemplo, historiador, economista ou sociólogo, que certamente teriam outras chaves de leitura para essa obra. Mas faço uma leitura também como brasileiro, ou seja, nasci e cresci neste país, e isso me atravessa de várias maneiras que transcendem minha origem familiar e social mais imediata. Um ponto de confluência entre essas duas leituras — a de um analista e a de um cidadão brasileiro — está nessa ideia das raízes, no reconhecimento de que há algo que nos antecede e que, queiramos ou não, diz muito não apenas dos impasses do momento presente, mas também das formas de ler e enfrentar esses impasses. Em uma análise, para nos ocuparmos de nossas neuroses atuais, precisamos nos debruçar sobre aquilo que nos antecedeu; não apenas a infância, como diz o senso comum, mas no que se transmite inconscientemente através das gerações. 

Algo parecido, embora não seja possível traçar um paralelo direto, também acontece com a vida de um povo: não é possível, para lidar com a situação presente, apenas tentar encontrar nela mesma as chaves de leitura para sua compreensão. Nesse sentido, o Brasil é um pouco como um neurótico que chega ao consultório: consegue talvez até elencar e reconhecer seus problemas, mas tem grande resistência em traçar ligações disso com o que levou a essa situação. Quer sempre olhar para o futuro, com vistas a resolver seus impasses, mas com essa ideia, que foi inclusive enunciada no discurso de posse do Temer, de que é preciso deixar o passado para trás e avançar. É uma ideia tentadora, mas infelizmente fadada ao fracasso e à repetição. 

Nesse sentido, a leitura de Raízes do Brasil, uma obra que se ocupa da história da formação de nossa sociedade, pode trazer muitas pistas sobre o momento atual: permite traçar paralelos — e também diferenças — entre o que enfrentamos hoje e o que já se viveu em tempos anteriores, enriquecendo a leitura de um contexto que, se tomado isoladamente, e não em uma continuidade, acaba sendo limitado e entregue a tecnicismos e interpretações vagas. Nesse sentido, Raízes tem um grande mérito porque destaca alguns traços que se mantêm e repetem ao longo da história, desde nossas origens coloniais e rurais, e que, se lemos o momento atual com ajuda deles, podemos situá-lo para além do debate mais imediato que geralmente acompanhamos na imprensa e nas redes sociais.

 

IHU On-Line - Na perspectiva da psique, qual a importância da obra? Quais seus limites e avanços?

Paulo Gleich - Quando se fala em psique, geralmente se pensa em algo individual, íntimo, interno, desconectado do social. Essa ideia estava presente em muitos momentos da obra do próprio Freud , embora ele tenha feito uma abertura muito importante ao aproximar a psicologia social da individual. Lacan  foi mais adiante: afirmou que o inconsciente é o social. Isso quer dizer que somos — embora tenhamos essa ideia moderna do indivíduo como uma mônada, fechado em si mesmo — determinados em grande medida pelo social, pelos discursos que o organizam. Isso é bastante evidente nos dias de hoje com um exemplo simples: as discussões políticas passaram a ocupar vários âmbitos, despertando paixões até então inexistentes, gerando conflitos familiares que até então não estavam colocados. Na época de Freud, na virada do século XIX para o XX, a grande repressão social que havia sobre a sexualidade, sobretudo das mulheres, determinava configurações e sintomas psíquicos que tinham grande expressão naqueles anos, hoje quase inexistentes. 

Nesse sentido, ao tratar de traços psicológicos que conformam a psique do brasileiro, a obra avança no sentido de oferecer um distanciamento, um estranhamento com aquilo que é tão natural a ponto de não nos apercebermos. O exemplo talvez mais conhecido, e mais destacado, é o homem cordial, que fala de como se tecem em continuidade as relações familiares, sociais e institucionais no Brasil. Os limites, em termos da psique, é que esses aspectos não configuram uma identidade fechada, assim como não levam em conta os aspectos singulares de “um” brasileiro — o que seria impossível, diga-se. Também poderíamos pensar que, ao ser um livro cuja última edição é de 1967, deixa de fora toda uma série de elementos da modernidade tardia, com o avanço da globalização e da tecnologia e dos movimentos que se deram nas últimas décadas. Porém, se podemos tomar esses aspectos psicológicos em sua parcialidade, como algo que também compõe aspectos da psique, Raízes é de grande valor.

 

IHU On-Line - Em sua obra, Holanda faz movimentos que vão da Psicologia à História Social para tentar compreender a formação do brasileiro. Qual a importância desses dois campos para se compreender a constituição de uma ideia de nação? E como isso aparece em Raízes do Brasil?

Paulo Gleich - Acho que já falei um pouco dessas questões nas perguntas anteriores, mas talvez possa desdobrar um pouco mais. Começaria, talvez, por interrogar a ideia de nação, que tem vários matizes. Há um aspecto arbitrário, que é uma delimitação territorial e, no nosso caso, linguística. Desse ponto de vista, somos uma nação porque vivemos em um território convencionado como Brasil e falamos a mesma língua, o português brasileiro. Uma ideia mais abstrata é a que diz de uma pertença talvez menos concreta, de se reconhecer brasileiro, que é bem mais complexa. O que há em comum entre um colono de origem alemã do interior do Rio Grande do Sul com um ribeirinho da Amazônia? Que compartilha um negro que vive na periferia de uma grande cidade com um fazendeiro rico do Mato Grosso? Provavelmente muito pouco; e talvez as formas de cada um de se reconhecer brasileiro, pertencente a uma nação, sejam muito díspares. Nesse sentido, “o brasileiro” talvez seja uma abstração impossível. 

O que Raízes tenta é, apesar dessas diferenças talvez intransponíveis, determinar alguns elementos que conformam traços mínimos compartilhados. Nesse sentido, o diálogo entre esses dois campos mencionados é muito rico: a História Social traz elementos que esmiúçam a composição social do país desde suas origens, enquanto a psicologia se ocupa de pinçar os traços de caráter e os ideais que se impuseram a partir dessa composição. Em Raízes, Sérgio Buarque de Holanda destaca sobretudo a influência de nossos colonizadores ibéricos, que teriam dado o tom de base sobre o qual se erigiu a polifonia tão diversa que configura essa nação. Nesse sentido, há um movimento parecido com o de um psicanalista: para conhecer melhor a si mesmo, é preciso conhecer melhor os antepassados, pais, avós etc. Raízes se ocupa bastante desses “antepassados”, traçando elementos em comum entre os ibéricos (portugueses e espanhóis), mas também as singularidades de cada uma dessas nações, e os efeitos disso na colonização da América. Há, porém, uma repetição no próprio Raízes e na nossa história: fala-se muito pouco de nossas raízes africanas, como se sua presença fosse quase que acessória, talvez pela condição de sujeitos subjugados, instrumentalizados desde o início de sua entrada no país. Ainda vivemos os efeitos dessa denegação em nossos dias, e isso certamente ainda terá efeitos no nosso porvir.

 

IHU On-Line - Como compreender o outro que se estabelece na relação entre os colonizadores europeus ibéricos e os povos originais? De que forma esse tipo de relação é atualizada nos dias de hoje? 

Paulo Gleich - Tem uma passagem muito interessante sobre isso no livro, que talvez permita tensionar essa ideia do outro. Sérgio Buarque de Holanda traz uma descrição dos índios feita pelos colonizadores, onde são descritos como indolentes, extrativistas etc., numa suposta oposição a estes. A grande sacada do autor é que ele aproxima esses dois estranhos, ressaltando que as características denunciadas nos “selvagens” eram justamente valorizadas nos colonizadores: o máximo de resultado pelo mínimo de esforço, o uso da terra para dela extrair suas riquezas. A nobreza não residia no empenho e no trabalho, mas em viver o melhor possível fazendo o mínimo de esforço físico, considerado algo inferior. Essa ideia se aproxima muito da leitura do outro, do estranho, feita pela psicanálise: aquilo que situamos no outro é, muitas vezes, algo que nos habita, mas que hesitamos em reconhecer como próprio. 

Havia, então, esse ponto em comum entre os nativos e os colonizadores, ou ao menos da leitura destes sobre aqueles. Aqueles, porém, continuaram sendo situados nessa condição de outro radicalmente diferente — embora, como o próprio livro aponta, as relações fossem muito próximas, com miscigenação étnica e linguística. Apesar de habitantes originários desta terra, essa condição não lhes era conferida — o que, 500 anos depois, segue muito parecido. Vemos isso nos atualíssimos conflitos em torno da ocupação dos territórios indígenas por parte dos latifundiários, no desrespeito à legitimidade da forma de vida das populações indígenas, assim como num certo senso comum que simultaneamente idealiza o índio (a ideia do bom selvagem em harmonia com a natureza) e o destitui de sua condição de existência como legítima, assim como ignora as reivindicações dessas populações.

 

IHU On-Line - O último capítulo de Raízes do Brasil é intitulado Nossa Revolução, que, seguindo na metodologia de Holanda, inspira a pensar numa revolução a partir do que se dá até aquele momento da História do Brasil. Quais os desafios para se pensar na ideia de revolução hoje, levando em conta todo esse cenário de formação cultural que constitui o eu brasileiro apresentado pelo autor?

Paulo Gleich - A ideia de revolução que o autor apresenta é muito interessante, pois se contrapõe ao que normalmente se imagina como revolução: grandes acontecimentos que marcam uma ruptura claramente localizável. A revolução da qual Raízes trata é uma revolução lenta, insidiosa, quase subterrânea, marcada por avanços e retrocessos. Pensar nesses termos a revolução brasileira, se aceitamos que ela existe, me parece muito potente, pois exige um trabalho de análise mais minucioso, detido e longitudinal. 

Nesse sentido, talvez possamos colocar em questão, por exemplo, as manifestações de 2013, que tanto debate geraram e cujos efeitos estamos ainda por entender. Não se trata de negar seus efeitos, mas talvez, se pensamos com o autor, não lhes conferir a importância revolucionária que em seu momento se conferiu, como se tudo fosse ser diferente depois — e que era a esperança manifestada por muitos naquele momento. Foram explosões que talvez tenham dado notícias desse processo de revolução mais lento, que diz do embate de forças sempre presente em nossa sociedade, e que aos poucos vai avançando. De uma lógica rural e arcaica que, apesar da forte urbanização das últimas décadas, ainda está muito presente, para uma lógica mais urbana e democrática; de uma cidadania estratificada e classista para uma mais igualitária e horizontal. Não há uma ruptura, os restos de antanho ainda estão muito presentes, mas, mesmo que lentos, há deslocamentos.

 

IHU On-Line - Holanda destaca no livro a inabilidade do brasileiro no tratamento institucional, quase sempre resvalando para a personalização. Daí a dificuldade de lidar com o Estado. Como observa esse traço cultural?

Paulo Gleich - Temos exemplos de sobra apenas acompanhando o noticiário político. O nepotismo, por exemplo, embora mais combatido que em outros tempos, ainda segue de vento em popa; a cada tanto temos notícias de primos, cunhados, ocupando cargos públicos sem qualificação para tal, e muitas vezes sem sequer comparecer ao trabalho. O exemplo recente da demissão do ministro da Cultura Marcelo Calero , por pressões de Geddel Vieira Lima  para que liberasse uma obra em área de preservação histórica por interesses pessoais, é paradigmático. A máquina pública é vista como meio de enriquecimento e obtenção de privilégios pessoais, e quando se questiona isso, diminui-se a importância do fato, como se fosse pouca coisa. Mas isso também é observável na população: a motivação para ocupar um cargo público é, na maioria das vezes, muito mais para ter a tranquilidade de salário e aposentadoria garantidos, do que por uma vocação para servir ao público. Mesmo no meio burocrático, supostamente impessoal e igual para todos, vale essa lógica: trata-se bem o funcionário, tenta-se pela via afetiva conseguir atalhos, saltar etapas, simplificar processos. A prática da sonegação de impostos, amplamente difundida entre nós, é outro exemplo claro: não apenas é socialmente aceita, como natural. Quando se é flagrado sonegando, numa aduana ou no imposto de renda, é como se o culpado fosse o Estado por ser intransigente, e não quem de fato não observa as regras em benefício próprio. 

 

IHU On-Line - Em que medida essa personalização pode se converter em individualismo, egoísmo e prepotência, sendo capaz de impor às necessidades de Estado as minhas próprias?

Paulo Gleich - Acredito que falei um pouco disso na questão anterior, na posição que assumem os indivíduos perante o Estado. Ele é bom quando me dá o que quero, é ruim quando me impõe regras e restrições — nesse sentido, individualismo e egoísmo são traços bem patentes. O Estado é bom enquanto preserva e aumenta os privilégios, mas quando se ocupa de quem não é meu semelhante, não presta, é perdulário. Os discursos em torno do Bolsa Família  são muito significativos, pela impopularidade que essa renda mínima, que tirou muitas famílias da miséria e do desamparo absoluto, tem entre as camadas mais privilegiadas da população. Por outro lado, ao desfrutarem de estudo de qualidade em universidades públicas gratuitas, ou ao viajarem ao exterior com bolsas bem mais elevadas que revertem, na maioria dos casos, apenas em benefício próprio, o papel do Estado não apenas não é questionado, como inclusive reivindicado. É o liberalismo à brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda destaca ao colocar as relações cordiais, de afeto entre os próximos, no centro do funcionamento social. As instituições acabam sendo democráticas mais na forma que de fato no seu funcionamento.

 

IHU On-Line - Que relação é possível se estabelecer entre essa perspectiva de recusa do institucional com o atual momento em que parece haver uma recusa à política, aos partidos e aos políticos?

Paulo Gleich - Nesse sentido, penso que os movimentos que acompanhamos no Brasil se inscrevem em um contexto mais amplo e complexo, que não diz respeito apenas à nossa situação — embora aqui sejam tingidos pelas nossas características singulares. Há fissuras importantes na democracia representativa em outros países, como acompanhamos na eleição de Trump  nos Estados Unidos e no longo impasse da Espanha para compor um governo. Penso também que a recusa dos políticos sempre esteve mais ou menos presente, na ideia do senso comum de que “político não presta”, e por isso alguns candidatos que não vêm da política tradicional acabam ganhado espaço, como representantes de esperanças, talvez um pouco ingênuas, de mudança por serem “de fora” — como se sozinhos fossem capazes de mudar toda uma estrutura e lógica de funcionamento. Mas permanece aí um traço que Raízes destaca, que é o do personalismo na política: mais que ideais e programas políticos, o que move as massas são as personalidades individuais, em quem se depositam suas esperanças. 

Sérgio Buarque de Holanda fala de um movimento pendular entre a política tradicional, dos detentores de sempre do poder, e a caudilhista e populista, centradas em torno de figuras individuais e carismáticas. Penso que podemos ler a tomada de poder por parte de Temer, aliado ao establishment jurídico-político-midiático, como um movimento desse pêndulo no sentido da política tradicional que, embora travestida de um discurso liberal, apenas retorna a formas mais que conhecidas de governar. Por outro lado, o caráter emocional e personalista de lidar com a política se manifesta no endosso amplo e quase irrestrito à operação Lava Jato que, operando em muitos momentos à margem do que é institucionalmente estabelecido, ganha legitimidade junto a grande parte da população por sua promessa de “limpar” a política, como se estivesse isenta de ligações com ela.

 

IHU On-Line - Como o senhor interpreta o conceito de homem cordial, de Holanda? E como compreender essa perspectiva cordial no Brasil de hoje?

Paulo Gleich - Esse conceito é talvez o mais lembrado de Raízes, mas também é muito frequentemente mal interpretado. Como no senso comum “cordialidade” é entendida como afabilidade, muito se questiona, frente à violência que tem marcado nossas relações no âmbito social, essa ideia do brasileiro como homem cordial. No entanto, o que define o homem cordial é justamente que ele estabelece suas relações a partir dos afetos mais que das formas — cordial vem de coração. Nesse sentido, relações que seriam mediadas por determinadas formas e rituais acabam se dando por esse viés afetivo, que pode tanto apontar na direção da afabilidade, quando há consonância, como da violência, quando há dissonância e conflito. A lógica que rege a cordialidade é uma lógica dual: amigo/inimigo, gosto/não gosto. Não há esse elemento terceiro das formas, das instituições, que fazem a mediação no encontro. Quem não entra nessa lógica mais pessoal, atendo-se à formalidade, acaba sendo visto com desconfiança, e daí o passo para se tornar um inimigo não é grande. 

Assim, penso que segue sendo um conceito que faz sentido nos tempos atuais, em que aquele que não é “amigo”, que não adere a uma mesma perspectiva, é colocado do outro lado, do inimigo. A lógica da polarização segue essa lógica dual da cordialidade, tanto que os que buscam se situar em um ponto que não de um dos lados, interrogando as paixões que têm sido mobilizadas, propondo a complexificação das leituras e debates, acaba sendo visto com desconfiança, como opositor. Sérgio Buarque de Holanda, por um lado, aponta que o homem cordial estaria fadado à extinção com o avanço da urbanização e da democracia liberal; por outro lado, afirma que o Brasil legará ao mundo o “homem cordial”, como se ele sobrevivesse aos avanços em que, como bom moderno, apostava. Talvez tenha acertado mais nessa segunda ideia, de algo que não se extingue, pois temos acompanhado o avanço das relações e reações “cordiais”, emocionais, sectárias, no âmbito público em vários outros países. A cordialidade — as relações sustentadas sobretudo na via afetiva — é inerente ao humano, mas ultrapassar sua lógica binária talvez seja o desafio necessário para compor uma ideia de comum, sobre a qual nossos tempos deixam muitas dúvidas e incertezas. 

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Paulo Gleich - Acho importante destacar o caráter de obra aberta de Raízes do Brasil, pois ter isso em conta ao fazer sua leitura me parece fundamental. É um texto que convoca ao diálogo, mais que a propor uma versão verdadeira, definitiva. Há certamente pontos a serem colocados em dúvida em uma leitura contemporânea, como por exemplo a quase ausência da questão dos negros, mas essas faltas não podem ser tomadas como razão para descartar a obra em seu conjunto. Nesse sentido, Raízes convoca e ajuda a pensar o Brasil na atualidade, mas também a localizar problemas e questões a serem ampliadas através de outras leituras e diálogos. Em todo caso, segue sendo uma leitura fundamental para, estranhando-nos de nós mesmos, podermos nos aproximar um pouco mais de quem somos, com nossas potências e impasses.

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