Edição 497 | 14 Novembro 2016

Da crise sistêmica à economia da complexidade

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Yann Moulier Boutang reconhece a dificuldade de se mover diante das crises, mas sustenta a renda universal como uma tentativa válida e importante

A encruzilhada da crise sistêmica jogou a humanidade diante do fim da linha da racionalidade moderna impulsionada pelas revoluções industriais. Seus eixos centrais estão no trabalho, que não é mais garantia de uma renda decente; na produção energética que é altamente poluente, causando o aquecimento global; e, ainda, na intensa contaminação química das terras aráveis. “Nós temos que discutir se continuaremos a produzir um determinado produto que é rentável economicamente, mas que traz danos ambientais, ou se devemos parar de produzi-lo. Entretanto, isso não é fácil porque tem ainda o fator do desemprego”, complexifica Yann Moulier Boutang, em entrevista concedida pessoalmente à IHU On-Line. “O que nós estamos falando aqui é da economia da complexidade. Por isso o mercado é um indicador ruim, porque não se consegue levar em conta tudo isso”, complementa.

Imersos em uma sociedade altamente vigiada, para Boutang a ideia de que vivemos e nos organizamos socialmente de forma descentralizada é uma miragem. “Há a ilusão da sociedade numérica e de um modelo aparentemente desconcentrado, em que o computador pessoal se transforma em uma arma estratégica porque há um poder enorme. Todavia a conexão web transformou isso em uma concentração muito grande. Vivemos como se fôssemos independentes e autônomos, e não estou me referindo simplesmente à questão da publicidade dirigida, mas vivemos imersos em um sistema de vigilância e controle sofisticadíssimo”, critica. 

Yann Moulier Boutang é professor de Ciências Econômicas na Université de Technologie de Compiègne - Sorbonne Universités, na França, membro do laboratório Connaissance, Organisation, Systèmes Techniques - COSTECH EA 22 23, Trivium CNRS. Leciona também na China, na Universidade de Shanghai - UTSEUS, na Ecole Nationale Supérieure de Création Industrielle - ENSCI, Paris, no curso Master Innovation by Design. É um dos fundadores e coordenadores da revista Multitudes. Trabalha com o tema das migrações internacionais, a escravidão, as transformações contemporâneas do capitalismo, a economia digital, os direitos de propriedade intelectual, a inovação. Entre suas obras mais recentes, estão Cognitive capitalism (2012, Polity Press, Cambridge, UK) e L’abeille et l’économiste (Paris 2010). 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - No seu ponto de vista, a crise sistêmica tem três eixos centrais: não há renda decente (ou universal), precisamos de uma transição energética e é necessário lutar contra a poluição química das terras aráveis. Como esses problemas se manifestam socialmente?

Yann Moulier Boutang – Todas as partes que compõem um programa verde, que o desenvolvimento sustentável tenta corrigir diminuindo as emissões de gás carbônico, não são suficientes se sujarmos o solo e destruirmos as florestas. O ar é só uma parte.

Eu estive na China e o problema da poluição dos rios é enorme, é como se a Amazônia fosse totalmente poluída, os peixes e a água fossem cheios de metais pesados. Há o caso de uma escola que tem aproximadamente 500 alunos e todos foram intoxicados em função da água, mesmo depois das agências afirmarem que não haveria problema no uso dos pesticidas. Esse problema chegou ao ponto em que há manifestações de rua contra a instalação de fábricas de produtos químicos. Com isso quero dizer que essa questão sobre a poluição do solo vai ser fundamental, não somente coisa de um partido, mas será uma questão central para nossas sociedades.

 

IHU On-Line – Isso ocorre em escala global?

Yann Moulier Boutang – Naturalmente. Não é apenas com o ar e a emissão de CO2 que se contamina globalmente, mas também por meio da água, com a poluição contínua do mar, que provoca efeitos a 10 mil quilômetros da origem do problema. Pode ser que ocorra a reconstituição do conceito de “interesse geral” que quase desapareceu. Nós temos que discutir se continuaremos a produzir um determinado produto que é rentável economicamente, mas que traz danos ambientais, ou se devemos parar de produzi-lo. Entretanto, isso não é fácil porque tem ainda o fator do desemprego. As discussões sempre passam por esse debate e sempre vem o argumento de que “não podemos sacrificar os níveis de empregabilidade”.

 

IHU On-Line – Como essa questão se alinha à transição energética?

Yann Moulier Boutang – Há uma relação direta e indireta. A primeira é que as fontes de energia fósseis são as mais poluentes, além do uso de gás de xisto e outros componentes químicos. No Norte do Canadá há um desmatamento maior que o da Amazônia e há uma concentração muito grande da poluição no hemisfério Norte. Esse país não assinou o acordo de Tóquio e a derrubada da floresta boreal pode ser ainda mais decisiva que o desmatamento na Amazônia.

A extração do petróleo no Golfo do México, a profundidades de 200, 400, 600 metros, era propagandeada como segura e sem possibilidade de haver problemas, mas vimos o que aconteceu com o acidente da Shell, transformando as praias em um verdadeiro mar negro. Imagine quando houver extração a 5 mil metros de profundidade; caso haja algum acidente importante, ninguém será capaz de controlar.

A Alemanha fez esforços gigantescos para alcançar níveis de uso da energia solar e da energia eólica que chegaram a 36% da energia do total consumido no país. Na China há um cenário com muitas chuvas ácidas, apesar de terem reduzido pela metade a produção de carvão e a produção de aço, mas a razão não era reduzir a emissão de CO2, senão o fato de o ar ter ficado totalmente insuportável na Mongólia Interior, ao Norte de Pequim.

Relação indireta

O consumo de água para produção de alumínio é uma coisa absurda. Hoje o conceito de sustentabilidade é muito mais complicado do que era antigamente, porque não basta dizer que está se fazendo energia renovável, há que se levar em conta quanto de água e de energia se gasta na produção dos bens. Por exemplo, leva-se dez anos para renovar o consumo de água e energia usada para produzir um carro elétrico, isso considerando um uso diário do automóvel de 30 quilômetros por dia. Tem muitas coisas que parecem, inicialmente, muito boas, mas quando observamos a fundo percebemos as contradições. Mesmo a economia circular tem seus problemas, para reciclar papel se gasta muita água, muita energia e muito produto químico.

O que nós estamos falando aqui é da economia da complexidade. Por isso o mercado é um indicador ruim, porque não se consegue levar em conta tudo isso. 

Há dois anos convidei para um seminário na França um engenheiro elétrico especializado em tecnologias digitais que apontou que o consumo energético desses aparelhos é extremamente alto. Um clique consome muita energia, os bancos de dados têm que ser continuamente refrigerados, uma das razões pelas quais há muitos bancos de dados na Islândia, por exemplo. Não estou dizendo, com isso, que não vai ter solução, mas precisaremos de uma nova ciência para fazer isso.

 

IHU On-Line – Professor, não lhe parece que existe um paradoxo entre o fato de que vivemos em sociedades descentralizadas, mas absolutamente dependentes de fontes de energia centralizadas?

Yann Moulier Boutang – Na França, há uma grande resistência da companhia de energia elétrica, que é uma multinacional, em descentralizar o serviço. Particularmente fiquei surpreso quando soube que havia uma resistência grande à instalação de geradores de energia eólica no interior da França, porque não era somente o problema da torre e do barulho, mas, sim, porque a companhia de energia elétrica exigia que esse ponto de produção fosse ligado à rede. Então o mais importante era justamente a construção das linhas de transmissão para, teoricamente, liberar o consumo em qualquer parte da rede. O fato concreto é que somos obrigados a usar a energia global fornecida pela companhia, sendo que dentro dessa corrente não se pode diferenciar o que vem da queima de combustíveis fósseis, o que vem das hidrelétricas, o que vem do vento, o que vem do sol e da energia nuclear.

Promessa de descentralização

O outro modelo prometido era de uma verdadeira descentralização. Por meio de pequenos meios de produção energética, as pessoas produziriam energia localmente sem a necessidade de grandes invenções. As pessoas que produzem essa energia poderiam usar e compartilhar com os vizinhos; esse é o modelo pelo qual temos simpatia, porque nos tornamos autônomos, podendo, inclusive, compartilhar a energia. Além disso, sabemos que se trata de uma energia limpa, ao passo que a energia da companhia francesa tem, pelo menos, 40% da energia sendo nuclear. Uma companhia chinesa de energia elétrica construiu uma usina de energia eólica enorme no Noroeste do país, onde não há tanta concentração populacional, mas não fez as redes de transmissão para o Sul e Sudeste, onde há muito mais pessoas. Então não adianta nada.

A China enfrenta a questão nuclear, ao contrário da França, em que a empresa que distribui energia conseguiu que o governo francês fizesse uma inversão financeira, de modo que, para cada euro investido em energias renováveis, fosse também investido um euro na produção de energia nuclear. Isso inviabiliza a extinção da energia nuclear. Na Polônia e na Alemanha há, ainda, o problema da produção energética à base de carvão.

Terras aráveis

Quando eu me referia à poluição das terras aráveis, estava me referindo a esse modo de produção, pois quando se gera um dano para 100 mil anos em função do modelo energético, esse modelo é algo perigoso para a civilização humana. O lixo nuclear precisa ser cuidado de um modo muito rigoroso, sendo que a cada dez anos precisa-se abri-lo e verificar se tudo está bem. E qual é o regime que pode assegurar que durante 100 mil anos será possível controlar que esses depósitos estarão a salvo de extremistas?

Ilusão da sociedade numérica

Além disso, há a ilusão da sociedade numérica e de um modelo aparentemente desconcentrado, em que o computador pessoal se transforma em uma arma estratégica porque há um poder enorme. E a conexão web transformou isso em uma concentração muito grande. Vivemos como se fôssemos independentes e autônomos, e não estou me referindo simplesmente à questão da publicidade dirigida, mas vivemos imersos em um sistema de vigilância e controle sofisticadíssimo. Nosso celular revela mais sobre o comportamento das pessoas do que a placa do carro, que pode, por exemplo, ser seguida e monitorada pelas autoridades. Com o celular é diferente e ainda mais intenso porque a rastreabilidade é contínua, com o agravante de que as empresas podem retirar e inserir informações sobre os usuários. Isso constrói uma sociedade em que a vigilância e a segurança se tornam um oximoro, com uma concepção completamente obsoleta do que é a vida privada, totalmente incompatível com o nível tecnológico que alcançamos.   

Existe um projeto chamado free web que, entre outras coisas, tem um serviço de busca que tenta acabar com a transversalidade e troca de dados dos usuários; ao contrário do Google, que monitora todas nossas demandas por IP e registra tudo isso em um servidor, para transformar a “desconcentração” das informações dos usuários em uma verdadeira descentralização.

 

IHU On-Line - Quando o senhor fala em renda decente, ao que exatamente está se referindo? Quem seria o alvo dessa política?

Yann Moulier Boutang – Grande parte dos projetos de agricultura verde, de vida no campo, de sobriedade no consumo têm muita dificuldade de encontrar financiamento. Os produtores do agronegócio, por sua vez, têm uma dívida enorme com bancos porque precisam comprar muito equipamento, como tratores de 800 mil euros. Os agricultores franceses, que trabalham em família, recebem em média, descontando os impostos, apenas 1.200 euros por mês e são totalmente sujeitados aos mecanismos do mercado. Quando alguém começa a mudar o modelo de produção para a agricultura verde, encontra dificuldades para encontrar distribuidores que estejam dispostos a trabalhar com alimentos não modificados geneticamente. O fato é que as cotas para os produtores são muito pequenas.

As terras na França estão há mais de um século recebendo fertilizantes; pesticidas faz um pouco menos tempo, pois começou a ser utilizado massivamente a partir da Segunda Guerra Mundial. Isso significa dizer que não se consegue imediatamente uma terra arável limpa para fazer qualquer tipo de produção orgânica. O modelo econômico para esse tipo de produção é muito fraco. Por isso a renda universal poderia dar a eles a possibilidade deste tipo de produção, independente das grandes redes produtivas.

A luta por comida limpa

Não há controle sobre os grandes agricultores para saber se estão cumprindo as normas previstas. Com a renda mínima, poderia haver um grupo de pessoas trabalhando gratuitamente nas associações para monitorar se os grandes produtores estão seguindo as normas. Por exemplo, na França foi proibida a pulverização com avião, porque isso mata não somente as abelhas, mas mata tudo, e naturalmente os agricultores do agronegócio pediram exceção. Em certos vales, como no Vale do Rhône, na França, há autorização dos prefeitos para os grandes produtores, mas não para os pequenos.

Atualmente fala-se em usar drones para polinização, somente para justificar o uso da pulverização com aviões. Nos próximos anos, o que se vislumbra é uma disputa entre as populações que querem ter uma comida mais limpa e os produtores do agronegócio que tentam enganar os consumidores sobre a realidade da produção de alimentos.

Monitoramento

Com a renda universal, torna-se possível que grande parte das pessoas que gostariam de trabalhar no monitoramento de ações ilegais o façam, como no caso do uso de defensivo tóxico por avião. De outra forma isso não é possível. Quando eu me refiro a uma renda decente, estou dizendo que se abre a possibilidade de trabalhar, inclusive, na economia de mercado sem perder a renda. 

Esta renda muda o mundo do trabalho em todos os âmbitos, porque a população urbana também pode receber e trabalhar no que quiser. Há muitas atividades para melhorar a qualidade de vida nas cidades que não podem ser feitas por meio dos servidores públicos, porque parte das pessoas que receberão a renda podem e gostariam de se comprometer com o melhoramento das condições de vida urbana. Um exemplo, bem simples, é a revisão e notificação, por parte dos moradores, de lâmpadas que ficam acesas durante o dia, gastando energia, o que geraria impactos não somente na economia do erário público, mas também preservação ambiental. Isso significa que, se uma pessoa desejar, ela pode optar por uma atividade de utilidade pública. Além disso, a renda universal decente cria um tensionamento nas empresas que pagam muito mal seus empregados. 

No trabalho cognitivo, há casos de pessoas que estão vinculadas a dois, três, quatro empregadores e isso é um tipo de trabalho muito precário, os freelancers. Pode-se imaginar que com essa garantia de uma renda contínua as pessoas tenham a liberdade de escolher as coisas que mais lhe interessam fazer, o que de outro modo não seria possível.

 

IHU On-Line – E de onde viria o subsídio para pagar a renda mínima?

Yann Moulier Boutang – A renda universal viria do Estado e seria uma coisa que não necessita muita gestão, porque sem a imposição de condições múltiplas não há o que controlar, por isso também ela é adicional à renda das pessoas, permitindo com que se possa permanecer no mercado de trabalho assalariado. Naturalmente as pessoas vão pagar impostos sobre a renda se atingirem um determinado teto. É possível que os mais ricos recebam essa renda universal, mas, como seus rendimentos são muito altos, talvez essa renda possa ser totalmente revertida por meio de impostos. Mas isso seria a exceção, não a regra.

 

IHU On-Line – Em um sentido mais amplo, é possível fazer uma leitura conjuntural da Europa a partir das três crises?

Yann Moulier Boutang – Não somente a partir das três, pois há dois outros elementos importantes. O primeiro é o da crise política da Europa que está ligado à questão do porvir político das instituições europeias. A Europa, como processo político, é uma coisa muito estranha. Há questões que são de âmbito puramente federal, as políticas agrícolas, o banco, o tribunal supremo são todos federais, e outras que são estruturas intergovernamentais. Estas últimas possuem regras muito precisas do Conselho Europeu, cujos chefes de Estado tinham o direito de recusa, não importando o tamanho do país, fosse uma nação como a Alemanha com 80 milhões de pessoas ou o Chipre com uma população bastante reduzida.

O projeto inicial, ainda na década de 1950, era de uma união comum em todos os sentidos. No entanto, depois da estabilização do Mercado Comum  foram desenvolvidos projetos mistos, fazendo a interconexão de áreas como segurança, fronteiras e o projeto de cooperação atômica. Com o Ato Único Europeu  estabeleceu-se uma relação complicada entre o Banco Central e a Comissão do Parlamento Europeu.  

Unificação

Uma estrutura completamente federal seria o parlamento com o governo da comissão responsável que seria escolhida por meio do sufrágio universal. É importante compreender o processo histórico, pois o projeto de unificação germânica, em 1848, tinha como bandeiras a moeda única e a unidade territorial ante o confederalismo do Império Austríaco. A Alemanha, atualmente, segue no mesmo ritmo, defendendo mercado comum e moeda comum. Por que todos concordaram? Porque havia muita gente que tinha medo de uma reação nacionalista e, por isso, houve quem dissesse que não estava havendo uma unificação política entre os países, mas somente uma unificação dos negócios. É como os ingleses diziam, “by interest” (Por interesse). 

Esse processo produziu uma coisa muito estranha, pois a Europa inicialmente era confederada e negava essa ideia de federalismo. Houve uma justificação, em 1965, em que o tribunal de Luxemburgo decidiu que a legislação da constituição europeia pudesse ser obrigatória para as legislações nacionais e constituições nacionais. É por isso que há a revisão contínua das constituições europeias dos países membros. Naturalmente não era fácil de construir uma ideologia de identificação política com base na livre concorrência não modificada, isto é, seguindo o modelo neoclássico.

Crise como estratégia

Cada crise produziu, paradoxalmente, um aprofundamento da relação entre os países. Esse reforço da relação com a crise econômica de 2008 levou à unificação bancária, à possibilidade de unificar as políticas econômicas e o orçamento dos Estados. 

A Grã-Bretanha entrou no processo da União Europeia para apagar o federalismo. Eles tentaram isso em 1947, depois constituíram, em 1963, a Associação de Liberação contra o Mercado Comum e, desde essa época, os ingleses sempre adotaram uma linha política — seja os conservadores ou os trabalhistas — de fazer da União Europeia, no máximo, um grupo de interesse econômico. 

O fato é que o movimento de unificação nunca foi conquistado inteiramente e os problemas graves que enfrenta vêm desse impasse histórico. A derrota do Cameron  no Brexit  foi um jogo em que a estratégia deu errado, pois o que ele e seus apoiadores queriam era manter a Inglaterra com um pé dentro e o outro fora do grupo, dizendo “vamos ganhar”, mas imaginando que o melhor era uma vitória apertada de 51% a 49%, porque assim ele poderia dizer à União Europeia “não podemos fazer mais”.

Xenofobia

A Grã-Bretanha foi eurocética desde o início, defendendo o mercado único e livre, mas limitando a liberdade de circulação e de instalação dos imigrantes dos demais países do bloco. Quando a Suíça fez um referendo sobre imigração, não se referia aos integrantes da UE, mas a pessoas do chamado “terceiro mundo”. O resultado do Brexit é muito grave porque a Grã-Bretanha não foi unânime na decisão de deixar o bloco, a Escócia votou contra a saída. Há também um movimento massivo de separação e de cidadania da Irlanda do Sul.

Outro problema grande é a questão espanhola que hoje está quebrando todas as possibilidades de coalizão, porque o Podemos está defendendo um referendo sobre a independência na Catalunha que os socialistas não aceitam, então os dois estão juntos a lutar contra a direita, mas discordam radicalmente nesse aspecto. A separação catalã seria o início do fim do Reino da Espanha. Depois ainda tem a Andaluzia, os Bascos, a Galícia. 

Crise Política

Isso é uma crise política profunda. Não se trata somente de uma impotência, mas uma crise estrutural que na história da constituição dos Estados Unidos e da Europa é um episódio importante. Os únicos que têm uma ideia política são os alemães, e ela foi apresentada por Joschka Fischer,  em um discurso na Universidade de Humboldt, em Berlim, com o intuito de transformar os parlamentos nacionais da Europa em Senado Europeu, fazer um governo unificado e deixar para os parlamentos nacionais somente coisas como identidade, educação e cultura. A resposta francesa foi não. 

O Banco Central Europeu é que está governando e ele é que dita as normas para os países, inclusive as horríveis condições impostas aos governos latinos que não têm a produtividade esperada. O que o Banco Central faz é usar meios inconvenientes para pressionar os países, já que não pode fazer isso pelas vias normais porque contraria seu estatuto em nome da ideologia monetarista do Banco Central, o que é perfeitamente ilegal. 

Não sei o que vai acontecer, mas esse processo de federalização não se podia fazer com a Grã-Bretanha dentro, porque ela era uma trava. Essa é a Europa e sua conjuntura é muito particular. 

 

IHU On-Line – Como seria possível a renda universal em um contexto destes?

Yann Moulier Boutang – Precisamos pressionar o Banco Central que usou o quantitativismo somente para a consolidação dos bancos. Isso é ruim porque criou-se como moeda uma quantidade enorme de valores em ativos futuros. O problema é que os bancos não estão usando isso para retomar os investimentos, dar créditos às empresas, mas somente fazendo a limpeza de seus próprios papéis, prática usada após a crise do subprime. É preciso usar essa capacidade de criar liquidez fazendo, por exemplo, com que o Banco Central dê suporte ao plano de investimentos aos equipamentos voltados à população, como os investimentos na área da saúde e educação. 

Isso é mais do que necessário porque o nível do emprego tende a piorar, sobretudo levando em conta as ameaças da robotização ao trabalho operário e da “uberização” do emprego e da automação intelectual. Isso criará uma situação política muito perigosa porque o desemprego pode acelerar movimentos populistas na Europa. A Europa não tem condições de fazer déficit financeiro, mas faz através da criação de ativos futuros por meio do Banco Central.

Por fim, o Banco Central poderia dar apoio à renda universal com uma faixa financiada conjuntamente por cada um dos Estados, destinando mais dinheiro para os países menos desenvolvidos, estabelecendo uma renda mínima de acordo com a economia de cada país. Assim, na Romênia a renda poderia ser em torno de 400 ou 500 euros, na França por volta de 1.200 euros, na Alemanha talvez um pouco mais, enquanto nos países nórdicos e na Península Ibérica seria menos. Isso poderia melhorar o nível da renda nos países menos desenvolvidos e forçaria o Banco Central a mudar a composição de sua formação monetária. Esse é o cenário em que a União Europeia está imersa e precisa resolver a crise política e institucional. ■

Leia Mais

- O poder das finanças e as estratégias para romper a crise sistêmica. Entrevista com Yann Moulier Boutang, publicada na revista IHU On-Line nº 492, de 5-9-2016. 

- A financeirização e as mutações do capitalismo. Entrevista com Yann Moulier Boutang, publicada na revista IHU On-Line nº 468, de 29-6-2015.

- A bioprodução. “O capitalismo cognitivo produz conhecimentos por meio de conhecimento e vida por meio de vida”. Entrevista com Yann Moulier Boutang publicada na revista IHU On-Line nº 216, de 23-4-2007.

- “O sistema financeiro de mercado é como o sismógrafo desta crise”. Entrevista com Yann Moulier Boutang publicada na revista IHU On-Line nº 301, de 20-7-2009. 

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