Edição 497 | 14 Novembro 2016

Controle externo sobre o uso da força continua sendo tabu no Brasil

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Para Alberto Kopittke, infelizmente o Ministério Público não assumiu sua competência como órgão de controle externo das polícias, definido pela Constituição, e o país ficou praticamente sem nenhum tipo de controle externo sobre o uso da força

Alberto Kopittke já trabalhou na área de segurança em nível federal, quando foi diretor do Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça. Atualmente, é secretário de Segurança Pública do município de Canoas. Esta trajetória de gestão, mais as pesquisas que desenvolve em âmbito acadêmico, lhe credenciam a discutir as temáticas a partir de um foco relativamente novo, que é o papel dos municípios. “As secretarias municipais de Segurança Pública começaram a surgir há 20 anos, quando teve início no país uma nova concepção de que segurança é compreendida como algo muito mais amplo do que apenas as ações policiais e do sistema prisional”, afirma em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Para reduzir a violência, Kopittke defende que “é preciso implementar um conjunto amplo de ações, especialmente nos territórios onde a violência mais cresce. Nessa nova visão, prevenção e repressão devem caminhar juntas, de forma planejada e integrada em cada território”. As guardas municipais têm espaço em um novo modelo, “como implementadoras de toda a política de prevenção à violência, utilizando o que se aprendeu no mundo sobre policiamento comunitário e trabalho junto aos jovens, enquanto as PMs seguem fazendo o trabalho mais direto de repressão à criminalidade”.

Kopittke avalia que o “grande sucesso da ditadura foi fazer uma transição negociada em que não houve efetivamente nenhuma ruptura com o imaginário militarista, e as pessoas continuaram acreditando que segurança pública é colocar tropa nas ruas e matar inimigos”. Mas também critica os movimentos sociais, que teriam errado ao não aprofundarem o debate sobre segurança. Isso abriu espaço para forças autoritárias manterem forte hegemonia e agora voltaram a ter força política.

Uma das saídas que aponta para o problema da violência policial é democratizar as corporações, de maneira que tenham “controle externo sobre o uso da força, transparência, formação e modelo de governança”. No entanto, aponta que “o controle externo sobre o uso da força continua sendo um tabu no Brasil”.

Alberto Kopittke é advogado, doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Distrito Federal – UDF. Foi diretor do Departamento de Políticas, Programas e Projetos da Secretaria Nacional de Segurança Pública - Ministério da Justiça e diretor executivo do Consórcio Metropolitano Granpal. Atualmente, é secretário de Segurança Pública no município de Canoas.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Não é comum haver secretarias de segurança em municípios. Qual a vantagem de criá-las neste âmbito?

Alberto Kopittke - As secretarias municipais de Segurança Pública começaram a surgir há 20 anos, quando teve início no país uma nova concepção de que segurança é compreendida como algo muito mais amplo do que apenas as ações policiais e do sistema prisional. Isso se fortaleceu a partir do Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania, o Pronasci , na gestão do ministro Tarso Genro , no segundo governo Lula , e que infelizmente durou apenas entre 2007 e 2010. Essa visão vem de experiências exitosas implementadas em várias cidades dos Estados Unidos e em outras como Bogotá e Medelín. Essas experiências mostraram que, para reduzir a violência, é preciso implementar um conjunto amplo de ações, especialmente nos territórios onde a violência mais cresce. Nessa nova visão, prevenção e repressão devem caminhar juntas, de forma planejada e integrada em cada território. 

Esse conceito fica muito claro quando vemos diversas vezes que a polícia faz grandes operações em determinadas comunidades, mas, como não é implementado nenhum outro serviço público especialmente voltado para os jovens dessas comunidades, a violência se mantém estabelecida ali, e a polícia tem que refazer o trabalho muitas e muitas vezes, sem qualquer resultado concreto. É preciso articular desde iluminação, pavimentação, educação, saúde, assistência social e saúde mental. Nessa perspectiva, a secretaria municipal de Segurança Pública tem um grande papel de integração entre as outras pastas e com as polícias, especialmente a Militar e a Civil, para que as estratégias sejam pensadas em conjunto, e os resultados se potencializem. 

 

IHU On-Line - A vida das pessoas ocorre nos municípios. Unidades federativas e União são instâncias muito abstratas para o cidadão. Os municípios não deveriam ter mais responsabilidades no que concerne à segurança pública?

Alberto Kopittke - A Colômbia criou um novo modelo bastante interessante e que deu resultados importantes. Não houve nenhuma modificação institucional na Polícia Nacional, que continuou com o mesmo modelo nacional de comando, mas em cada município ela obrigatoriamente deve estar sob a orientação da política de segurança definida pelo prefeito. Isso possibilitou as grandes estratégias de prevenção à violência em Bogotá e Medelín, onde os prefeitos conseguiram fazer um grande planejamento casando ações de repressão com ações de reforma urbana e políticas de prevenção à violência. Assim, os índices de violência caíram mais de 80%. 

Infelizmente o governo Dilma , em vez de realizar os ajustes do Pronasci e seguir consolidando uma nova visão de segurança, a partir dos municípios e das forças locais de segurança, decidiu pelo caminho da militarização da segurança. O Pronasci deveria ter evoluído para uma política de Estado, criando um grande sistema nacional de financiamento de políticas de prevenção à violência nos territórios mais vulneráveis, criando o Sistema Único de Segurança Pública - SUSP, que o Luiz Eduardo Soares  propôs ainda em 2003. Assim como ocorre no Sistema Único de Saúde - SUS, em nível federal seriam definidas as tipologias e equipamentos da política de prevenção, como os programas de desmobilização de jovens envolvidos com o tráfico, nas casas de juventude ou os Centros de Mediação de Conflito, e em nível municipal se faria a implementação e a integração dessas ações juntos com as polícias estaduais. 

 

IHU On-Line - Que papel as guardas municipais podem desempenhar no campo da segurança pública?

Alberto Kopittke - O grande erro que não podemos cometer é confundir o papel dos municípios com simplesmente tornar as guardas municipais pequenas novas polícias militares. Isso é fruto da velha visão equivocada que resume segurança pública ao papel das polícias e, dessa forma, alguns prefeitos interpretam o seu papel na segurança como simplesmente colocar mais “policiamento” na rua. Dessa forma se cria um clima de confronto e não uma integração entre a cidade e as forças estaduais, e as guardas podem acabar absorvendo alguns problemas das polícias militares, sem absorver as suas qualidades. As guardas têm um grande e fundamental espaço em um novo modelo, como implementadoras de toda a política de prevenção à violência, utilizando o que se aprendeu no mundo sobre policiamento comunitário e trabalho junto aos jovens, enquanto as PMs seguem fazendo o trabalho mais direto de repressão à criminalidade. A guarda é um novo ator, que pode escolher se absorve o antigo modelo ou terá a ousadia de criar uma nova concepção de segurança, integrada e pró-ativa.

 

IHU On-Line - Não é raro o cidadão comum pensar que a proposta de desmilitarizar a polícia signifique extingui-la. Como ampliar este debate? A quem caberia promover essa discussão?

Alberto Kopittke - O grande sucesso da ditadura foi fazer uma transição negociada em que não houve efetivamente nenhuma ruptura com o imaginário militarista, e as pessoas continuaram acreditando que segurança pública é colocar tropa nas ruas e matar inimigos. Mas os movimentos sociais também erraram ao não se aprofundar no debate sobre segurança e acabaram deixando um grande vácuo, onde as forças autoritárias continuaram mantendo uma forte hegemonia e que agora voltaram a ter força política, muito porque as forças progressistas não ofereceram uma alternativa concreta para enfrentar o fenômeno da violência, a partir das premissas democráticas. Infelizmente a esquerda brasileira tratou o problema da segurança como consequência dos problemas sociais e como mera ferramenta de controle da ordem social, sem se aperceber a gravidade e a especificidade do fenômeno da violência nas sociedades contemporâneas, além da grande importância de responder ao sentimento de medo e insegurança.

Embora historicamente o surgimento da polícia esteja exatamente relacionado ao afastamento das Forças Armadas da vida interna dos países, o debate sobre a desmilitarização da segurança pública não deve se confundir com o debate sobre “terminar” com as polícias militares. É verdade que vários países continuam tendo polícias militares, construídas ao longo de sua história, e conseguiram consolidar suas democracias. A grande diferença é que essas polícias militares se tornaram democráticas em seu modelo de gestão. 

Democratizar as polícias significa controle externo sobre o uso da força, transparência, formação e modelo de governança. O controle externo sobre o uso da força continua sendo um tabu no Brasil. Para usar o famoso (e desconhecido) exemplo de Nova York. Em relação à transparência: desde 1973, a polícia é obrigada a publicar um relatório anual sobre cada um dos disparos de arma de fogo efetuados, o que teve um imenso impacto na queda do número de pessoas mortas pela polícia e de policiais mortos em serviço. Sobre o controle: em 1983, a prefeitura de Nova York criou uma ouvidoria externa (Civilian Complaint Review Board), que hoje possui 260 investigadores que não são policiais e recebem as queixas das pessoas contra abuso de autoridade, corrupção e discriminação das polícias, os quais elaboram processos que são julgados por 13 membros, sendo cinco nomeados pelo prefeito, quatro pela Câmara de Vereadores e três pelo chefe de polícia, sendo que nenhum pode ser policial. 

E sobre o modelo de governança: a grande revolução que William Bratton  trouxe a partir de 1993 foi a implementação do CompStat, um modelo de gestão que utilizou os novos sistemas de bancos de dados e georreferenciamento online, para que cada unidade da polícia prestasse contas sobre as suas metas e resultados. Esses três processos, conquistados através de muita pressão dos movimentos sociais, “desmilitarizaram” a Polícia de Nova York, isto é, fizeram ela se abrir para a sociedade, se adaptar aos novos modelos de gestão, de controle e de transparência para compartilhar com as comunidades a superação da violência. E os resultados aconteceram.

 

IHU On-Line - As polícias Militar e Civil deveriam atuar de maneira complementar, mas nem sempre isso ocorre, não sendo raro conflitos explícitos entre as duas corporações. Isto não corrobora a tese não apenas da desmilitarização, mas de unificação das duas polícias?

Alberto Kopittke - Por mais que o debate teórico sobre a unificação das polícias tenha fundamento, eu considero um equívoco se debater a supressão de qualquer instituição, por dois motivos: primeiro, porque as instituições policiais fazem parte do imaginário e das tradições de cada estado brasileiro, pois elas foram organizadas no período de formação do Estado moderno brasileiro. David Bayley  fez um grande estudo sobre 70 países e identificou que praticamente nenhuma polícia criada na formação dos Estados modernos foi suprimida. Nem mesmo grandes revoluções ou quedas de regime suprimiram instituições policiais, com exceção das polícias políticas, é claro. O segundo motivo é que esse debate produz imensas resistências e acaba travando o verdadeiro debate, que é o debate sobre o modelo de gestão das polícias. Seja uma, duas ou várias polícias, nada vai mudar se não tivermos um modelo de gestão democrático, como expus na resposta acima. 

 

IHU On-Line - Faz sentido os bombeiros estarem vinculados a uma estrutura militar?

Alberto Kopittke - Os bombeiros são o pilar central de um outro sistema fundamental que é a defesa civil. O foco da segurança pública é a redução da violência, enquanto o da defesa civil é a prevenção a acidentes e catástrofes naturais. Obviamente que os dois sistemas devem caminhar junto, mas são coisas bem diferentes. Enquanto a defesa civil faz uso de muito conhecimento das áreas de engenharia, por exemplo, a segurança pública deveria fazer uso de psicologia, psiquiatria e ciências sociais. No entanto, continuarem militares já diz respeito a outros fatores, como os seus direitos e sua história, mas efetivamente não faz sentido os bombeiros estarem dentro das polícias militares.

 

IHU On-Line - Há um nítido recorte social nas pessoas mais atingidas pela ação policial, que incide principalmente sobre negros e pobres. Por exemplo: a questão das drogas, que é tratada apenas como um problema policial, e não social. A polícia é discriminatória?

Alberto Kopittke - Desde o início dos anos 1970, quando o trabalho policial começou a ser objeto de pesquisa e a ser mensurado e analisado cientificamente, percebeu-se que o uso da força, assim como o uso do direito, o acesso a saúde e tantos outros aspectos, é muito influenciado pelos padrões de estigmatização e diferença social. Quanto mais reativo for o modelo de policiamento, isto é, quanto mais a polícia apenas atuar de forma reativa às ocorrências de crime ou simplesmente fazendo abordagens sem um planejamento devidamente orientado, mais discricionários são os seus critérios de escolha sobre o que e quem deve ser “enquadrado” e, portanto, maior a possibilidade de que ocorram arbitrariedades contra grupos socialmente vítimas de preconceito. 

Um dos grandes erros de governos progressistas no Brasil foi achar que apenas a educação policial é capaz de mudar esse padrão. O que efetivamente muda esse padrão são atuações proativas das polícias, isto é, ações planejadas, com focos bem definidos e integrados com as demais políticas. Em vez de fazer 20 operações de entrada no mesmo território, é muito mais eficiente fazer uma grande entrada de forma integrada. Além, é claro, do controle social externo forte.

 

IHU On-Line - A sensação crescente de medo e de insegurança respalda o recrudescimento de medidas de segurança e a criação de dispositivos de controle e de vigilância. Nesse contexto, os policiais não estariam se sentindo autorizados tacitamente para ir além da legalidade?

Alberto Kopittke - O vácuo produzido com o fim do Pronasci e o fato de o Governo Federal não ter apresentado nenhuma política nacional de segurança pública abriu espaço muito grande para o fortalecimento do discurso populista e autoritário sobre segurança, do tipo “bandido bom é bandido morto”. Esse discurso (e essa prática), na verdade, nunca deixaram de estar presentes no país. Desde nossa formação escravagista, as forças de segurança são pressionadas a “dar lições” através da violência. A ditadura piorou muito esse quadro, ao empoderar os policiais mais violentos, tanto nas polícias militares quanto nas civis, para fazer o “serviço sujo” que as Forças Armadas não queriam fazer diretamente. Na redemocratização, essas pessoas não foram julgadas, nem punidas. Pelo contrário, se mantiveram em posições de chefia e sendo as grandes vozes da experiência para dentro da polícia. 

Infelizmente, o Ministério Público não assumiu de fato sua competência como órgão de controle externo das polícias, definido pela Constituição, e o país ficou praticamente sem nenhum tipo de controle externo sobre o uso da força. A grande vitória da ditadura foi fazer as polícias acharem que quem defende o controle da atividade policial defende bandidos, o que na prática é o inverso, pois quanto mais legitimidade social a polícia tiver junto aos setores mais vulneráveis, menos o crime vai crescer, mais valorizada será a polícia e melhor satisfação terá o policial em realizar o seu trabalho. ■

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