Edição 497 | 14 Novembro 2016

Polícia falha na defesa do cidadão

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Adilson Paes de Souza

Adilson Paes de Souza destaca que, para se ter uma corporação eficiente, antes de tudo é preciso transparência

O tenente-coronel Adilson Paes de Souza trabalhou por 30 anos na Polícia Militar de São Paulo. Portanto, conhece intimamente o funcionamento da corporação. Na metade da sua carreira, passou a olhá-la criticamente, quando não ficava mais satisfeito com as explicações que as autoridades forneciam sobre determinadas ocorrências policiais. Para aprofundar seu questionamento, em sua pesquisa de mestrado, tratou do desempenho da polícia em sua função social de proteger os cidadãos. No seu entendimento, a polícia falha neste papel, e as pessoas não confiam nela. “Todos se sentem mais inseguros. As pessoas evitam comunicar a ocorrência de delitos à polícia (subnotificação), pois sabem que, além de levar um tempo excessivo para efetuar o registro, além de serem tratadas de maneira não adequada, de nada adiantará. As taxas de elucidação de delitos são pífias. No caráter preventivo ocorre o mesmo, nunca há viatura disponível. A tarefa preventiva praticamente inexiste”, descreve em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Ao pensar um modelo ideal para a polícia no Brasil, Souza destaca que, antes de mais nada, é preciso transparência. O caminho para isso seria a desmilitarização. “Esse é um conceito amplo, muito difundido e muitas vezes mal-empregado”, avalia. Ele defende a revogação da legislação que regula as forças policiais, elaborada em 1969, durante o período ditatorial. “Assim teremos uma polícia de caráter civil (não quer dizer sem uniforme, sem o qual não há como realizar o policiamento ostensivo).” O policial destaca a importância de haver um efetivo controle da sociedade sobre a polícia, situação que não ocorre, pois não há transparência, nem prestação de contas.

Souza aponta que atividade policial é estressante por natureza, por isso que, além de uma boa formação com efetiva participação da sociedade, “é necessário haver um sistema de amparo à saúde psíquica deste policial”. Ao mesmo tempo, para barrar os crimes cometidos por PMs, reforça a importância de haver limites à atuação policial e uma efetiva punição daqueles que transgredirem as normas e cometerem excessos, eliminando a impunidade.

Adilson Paes de Souza é tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo. Possui mestrado em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. É bacharel em Direito pelo Centro Universitário Faculdades Metropolitanas Unidas. Integra a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Autor de O Guardião da Cidade - Reflexões Sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Editora Escrituras, 2013, 256 páginas), fruto de sua dissertação de mestrado intitulada A Educação em Direitos Humanos na Polícia Militar.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual o papel da Polícia Militar?

Adilson Paes de Souza - Na Constituição Federal (artigo 144, § 5º), compete a ela o policiamento ostensivo e a manutenção da ordem pública. Esse último conceito é bem amplo e dá margem a uma ampla gama de interpretações, desde a atuação nas manifestações públicas, nos eventos realizados nos logradouros públicos, nos eventos esportivos etc. Tem-se utilizado desse argumento para permitir ou não a realização de atos públicos e, até mesmo, determinar o percurso que deve ser utilizado.

 

IHU On-Line - No que consiste o caráter militar da Polícia Militar?

Adilson Paes de Souza - Consiste em dar uma atuação mais militarizada da Polícia Militar junto à população. Em 1969, foi editado o Decreto-Lei Nº 667, baseado expressamente no AI-5  e que estabelecia uma nova estrutura às polícias militares e aos corpos de bombeiros militares. Com esse decreto, eles passaram a ter estrutura e designação de postos e graduações semelhantes ao Exército. Na nossa Constituição, as polícias militares são consideradas forças auxiliares e reserva do Exército. Os policiais militares são considerados militares estaduais.

Na verdade, o Decreto-Lei 667/69 foi editado sob a influência da Doutrina de Segurança Nacional , que embasou não somente o golpe, mas toda a ditadura militar. Deu-se uma nova forma de atuação às polícias, para que fossem empregadas, em conjunto com as Forças Armadas, no combate aos subversivos, tidos como inimigos internos da nação. Nesse contexto, boa parcela da população era vista como suspeita e sofria os impactos da atuação das forças de segurança. Esse quadro permanece até hoje. O referido decreto está em plena vigência até os dias atuais, tendo sobrevivido ao dito processo de redemocratização do país.

 

IHU On-Line - As polícias militares e os corpos de bombeiros são coordenados pela Inspetoria Geral das Polícias Militares – IGPM, órgão criado em 1967 pelo Exército Brasileiro. Para além de um organograma, na prática, o que isso impacta no funcionamento dos policiais e dos bombeiros?

Adilson Paes de Souza - No controle das Forças Armadas sobre o efetivo e a aquisição de bens pelas polícias militares. Para adquirir desde viaturas, até munição, precisa de autorização do Exército. Para aumentar o efetivo, idem. Periodicamente são enviados relatórios de controle à IGPM, bem como há visitas de inspeção em determinadas unidades da polícia.

 

IHU On-Line - O que significa desmilitarizar a polícia?

Adilson Paes de Souza - Esse é um conceito amplo, muito difundido e muitas vezes mal-empregado. Para mim, significa banir da vida da nossa sociedade a Doutrina de Segurança Nacional, começando pela revogação do Decreto-Lei 667/69, já mencionado. Assim teremos uma polícia de caráter civil (não quer dizer sem uniforme, sem o qual não há como realizar o policiamento ostensivo), diferentemente do estabelecido pelo referido decreto. Com efetivo controle da sociedade, o que não ocorre hoje, pois não há transparência e prestação de contas. Que trate os cidadãos como tais, e não como inimigos da sociedade. Enfim, uma polícia que tolere e aceite o contraditório.

 

IHU On-Line - A ideia é não cair em teorias conspiratórias, mas faz sentido pensar que os policiais, tanto civis quanto militares, obedecem a códigos e ordens que necessariamente não sejam oficiais e previstos na legislação?

Adilson Paes de Souza - Sim, o espírito de corpo cria regras próprias. Nos Estados Unidos, eles chamam de blue curtain. Isso é típico de instituições fechadas, principalmente naquelas calcadas na estética militar e que se veem em uma guerra constante.

 

IHU On-Line - Falta autocrítica aos sucessivos comandos das polícias? E para os integrantes das corporações?

Adilson Paes de Souza - Não tenho dúvidas. Nunca se admite o erro. Sempre há menção às falhas individuais e não às falhas do sistema. Sempre dizem que a formação é perfeita, contudo não permitem a participação da sociedade na elaboração e na avaliação do sistema de formação dos policiais. Justamente a sociedade, para utilizar uma linguagem do mercado, que é a principal cliente da polícia.

 

IHU On-Line - O senhor é um oficial da Polícia Militar que critica a violência da corporação, o que lhe transforma em uma voz dissonante. Isso acarretou problemas ou animosidades com seus colegas?

Adilson Paes de Souza - Oficialmente não, mas chegaram ao meu conhecimento críticas bem negativas a meu respeito. Mas também chegaram muitas críticas bem positivas, não só aqui de São Paulo, mas de outros estados da federação.

 

IHU On-Line - Quando começaram suas críticas à corporação para a qual dedicou 30 anos de serviço?

Adilson Paes de Souza - Mais ou menos na metade da minha carreira, quando as explicações que as autoridades forneciam, sobre determinadas ocorrências policiais, não mais me satisfaziam.

 

IHU On-Line - Em seu livro O Guardião da Cidade- Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares (Escrituras, 2013), baseado em sua dissertação defendida na Universidade de São Paulo, o senhor trata do desempenho da polícia em sua função social de proteger os cidadãos. Qual a sua análise sobre o trabalho da corporação?

Adilson Paes de Souza - Ela falha nesse papel. As pessoas não confiam na polícia (ver dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública ). Todos se sentem mais inseguros. As pessoas evitam comunicar a ocorrência de delitos à polícia (subnotificação), pois sabem que, além de levar um tempo excessivo pata efetuar o registro, além de serem tratadas de maneira não adequada, de nada adiantará. As taxas de elucidação de delitos são pífias. No caráter preventivo ocorre o mesmo, nunca há viatura disponível. A tarefa preventiva praticamente inexiste.

 

IHU On-Line - No seu livro, o senhor também aponta caminhos para construir uma polícia mais humana. Que caminhos são estes? Que desenho pode ser considerado ideal para uma instituição destinada a atuar na segurança pública no Brasil?

Adilson Paes de Souza - Antes de mais nada, é preciso transparência. O que não há. No estado de São Paulo, um decreto do governo declarou que os currículos das escolas de formação da polícia são documentos secretos. Não há prestação de contas sobre investigações instauradas contra policiais militares. Há um distanciamento da sociedade. Na Irlanda do Norte, reformaram a polícia e criaram uma Comissão Independente de Polícia, composta por membros da sociedade sem vínculos com o governo. Pode ser uma boa ideia.

 

IHU On-Line - A hierarquia é um dos pilares do Exército e da Polícia Militar. Ela deve ser mantida com a mesma primazia, no caso de ocorrer a desmilitarização das corporações policiais no Brasil?

Adilson Paes de Souza - Não há instituição sem hierarquia. Contudo, ela não pode ser, por si só, uma fonte de arbítrio e de abusos. Daí a importância de um efetivo controle externo.

 

IHU On-Line - Durante a ditadura, a tortura foi usada como uma política de Estado aplicada pelo Exército e pelos órgãos de repressão. A rigor, nunca houve uma condenação da tortura no país, mesmo ela sendo considerada ilegal. Isso não favorece a continuidade dessa prática?

Adilson Paes de Souza - Sim. Transmite a mensagem de estímulo e de acobertamento dessas práticas, de que há um sistema que assegura impunidade.

 

IHU On-Line - Pode-se afirmar que as manifestações ocorridas a partir de junho de 2013 inauguraram um novo tempo na Polícia Militar, no que tange às táticas empregadas e ao grau de violência?

Adilson Paes de Souza - Creio que não. Apenas as tornou mais visíveis. Escancarou o que já existia.

 

IHU On-Line - Qual o limite de um policial em serviço?

Adilson Paes de Souza - A lei. Fora disso, ele é igual ou pior que um infrator da lei. Espera-se muito dele, tanto é que ele é um dos poucos agentes públicos que possui autorização legal para portar arma de fogo e para interferir na vida das pessoas.

 

IHU On-Line - Que preparo o policial deve ter para cumprir os limites aludidos na questão anterior, principalmente em situações de grande tensão e violência inerentes à atividade?

Adilson Paes de Souza - Além de uma boa formação, e isso só será possível com a efetiva participação da sociedade, é necessário haver um sistema de amparo à saúde psíquica deste policial. Não somente após o seu envolvimento em ocorrências graves, mas também de forma periódica e preventiva, o que, de fato, não existe. Penso em algo que atue na detecção do problema antes que ele ecloda. A atividade policial é estressante por natureza.

 

IHU On-Line - Quando um policial é morto em serviço, seus colegas reagem com rapidez em busca de vingança, e o autor do crime inicial acaba, quase sempre, assassinado. Na população, percebe-se uma sensação de vitória, como se fosse uma conta de “menos um”. Como deter a sanha vingativa dos policiais, de maneira que os ritos legais sejam cumpridos?

Adilson Paes de Souza - Através da sedimentação, na formação, dos limites da atuação policial e através da efetiva punição daqueles que transgredirem as normas e cometerem excessos. Ou seja, com o fim da impunidade.

 

IHU On-Line - De que maneira as questões relacionadas a direitos humanos são discutidas no processo formativo dos policiais e durante o exercício profissional?

Adilson Paes de Souza - De maneira meramente formal, protocolar. Os currículos reservam baixa carga horária, e os conteúdos das disciplinas são inadequados.

 

IHU On-Line - Em registros de operações policiais, os homicídios cometidos por agentes são registrados como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte”, o que sugere legalidade para o ato e a possibilidade de absolvição do autor. É difícil condenar um policial que comete excesso?

Adilson Paes de Souza - Esses eufemismos procuram retirar a carga negativa da atuação do policial. Ele sempre será vítima. Creio que, nas condições atuais, é bem difícil condenar. As apurações, quando há, são mal feitas, o que acarretará em grande chance de absolvição no Tribunal do Júri.

 

IHU On-Line - Em setembro, o Judiciário paulista anulou a sentença condenatória de 74 policiais militares envolvidos no Massacre do Carandiru, em 1992, quando 111 presos da Casa de Detenção de São Paulo foram mortos. A decisão passa que recado para a sociedade e para os integrantes das corporações?

Adilson Paes de Souza - No último relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há uma pesquisa em que 57% dos entrevistados eram a favor da tese “bandido bom é bandido morto”. É essa a mensagem que essa sentença transmitiu à sociedade em geral.

 

IHU On-Line - A desmilitarização da polícia é apontada como algo positivo para combater as arbitrariedades e os excessos cometidos pelos agentes de segurança do Estado, mas as perspectivas de que isso ocorra são mínimas, pelo menos atualmente. Sendo assim, o que pode ser feito para reverter o histórico de violência das corporações, mesmo que mantida a natureza militar?

Adilson Paes de Souza - A aplicação da lei para todos, de maneira indistinta. Como? Que o Ministério Público efetivamente cumpra a missão constitucional de exercer o controle externo da atividade policial (artigo 129, inciso VII), de fato. Que os Programas Estaduais de Direitos Humanos dos estados sejam efetivamente implantados. O do Estado de São Paulo existe desde 1997 e até hoje não foi implantado.

 

IHU On-Line - Uma série de projetos de Emenda à Constituição - PEC tramitaram ou estão tramitando no Congresso Nacional tratando da desmilitarização da polícia e temas correlatos. Qual a sua análise sobre essas PECs? Elas permitem avanço?

Adilson Paes de Souza - A única que contempla uma reforma efetiva e necessária do sistema de segurança pública do Brasil é a PEC 51 . Não conheço todas as demais, mas, das que tomei conhecimento, não produzirão, ao meu ver, mudanças significativas necessárias. ■

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