Edição 208 | 11 Dezembro 2006

O corpo como última utopia

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IHU Online

Docente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Francisco Ortega afirmou em entrevista realizada por e-mail à IHU On-Line “o corpo ocupou o lugar do outro. Ele é o outro, nosso parceiro e confidente privilegiado, por isso, mesmo em reuniões sociais, falamos sempre dele, das dietas que estamos fazendo, da nova academia, de nossas taxas de colesterol etc. É por isso que o interesse pelo corpo gera desinteresse pelo mundo”. E continua: “Daí que o lugar da utopia se desloque para o corpo. A utopia passa a ser uma utopia corporal de descoberta e colonização do continente corpo”.


Graduado em Filosofia pela Universidade Complutense de Madri, Espanha, Ortega é doutor em Filosofia pela Universidade de Bielefeld, Alemanha, com a tese Freie Formen von Sozietät als Problem einer Ethik der ästhetischen Selbstkonstitution in Foucaults historischer Anthropologie des Subjekts.

Escreveu dezenas de artigos para periódicos especializados, bem como capítulos de livros e obras, das quais citamos Intensidade: para uma história herética da filosofia. Goiânia: Editora da Universidade Federal de Goiás - UFG, 1998; Para uma política da amizade - Arendt, Derrida, Foucault. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000 e O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. É autor do capítulo Das utopias sociais às utopias corporais: identidades somáticas e marcas corporais, publicado no livro Culturas jovens: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, organizado por Maria Isabel Mendes de Almeida e Fernanda Eugenio.

IHU On-Line - Nossa aparência virou nossa essência? Quais são os principais problemas desse deslocamento de sentido?

Francisco Ortega
- O problema principal é que em culturas nas quais existia uma diferença entre essência e aparência, ou seja, entre o que “eu verdadeiramente sou” e “como me apresento” ao outro e à sociedade – obviamente existiam nas diferentes culturas e sociedades diversos modos de articular essa diferença e de valorizar ou salientar mais um dos dois elementos – o indivíduo podia esconder seus verdadeiros sentimentos do outro. Em contrapartida, na cultura somática contemporânea, perdemos essa capacidade de fingir, de dissimular, de esconder nossas intenções ou de escolher quando e a quem mostramos o que verdadeiramente somos, pois, se essência e aparência se identificam, o que verdadeiramente sou se confunde com a forma da apresentação, o que sou está exposto ao olhar censurador do outro, estou a mercê dele, não posso me esconder. Paradoxalmente com a valorização da aparência e da imagem do corpo, preciso constantemente desse outro ao qual estou exposto, preciso ser percebido por ele para poder existir, de um outro que me diga se meu corpo está o suficientemente malhado ou sarado como nossa cultura exige. Conseqüentemente, os indivíduos tornam-se superficiais (não sentido literal e metafórico do termo), desconfiam constantemente do outro, isto é, são cada vez mais paranóicos e melindrosos. Esses indivíduos têm uma forma de fugir da cultura e da tirania da aparência, mas essa forma é uma armadilha, pois a única maneira de esconder-se numa cultura na qual o que existe está sempre exposto é se igualando ou se identificando com normas de comportamento, de alimentação, de regimes de condicionamento físico etc. Ser idêntico e conformista é a única maneira de proteger-se do olhar censurador do outro.

IHU On-Line - Nossa aparência virou nossa essência? Quais são os principais problemas desse deslocamento de sentido? E o senhor poderia explicar sua afirmação “o interesse pelo corpo gera o desinteresse pelo mundo; a hipertrofia muscular se traduz em atrofia social”?

Francisco Ortega
– Essas perguntas estão relacionadas e de alguma maneira seguem a resposta dada à primeira pergunta. Claro, poderíamos responder a um nível muito simples e dizer que quem se ocupa do corpo obsessivamente não tem tempo, energia, interesse ou motivação para se ocupar do outro e da sociedade. Mas é mais do que isso, pois o corpo ocupou o lugar do outro. Ele é o outro, nosso parceiro e confidente privilegiado, por isso, mesmo em reuniões sociais, falamos sempre dele, das dietas que estamos fazendo, da nova academia, de nossas taxas de colesterol etc. É por isso que o interesse pelo corpo gera desinteresse pelo mundo. O interesse pelo corpo nas sociedades clássicas greco-latinas e nas culturas orientais não se esgota no próprio corpo: a ação sobre o corpo (a ascese) se constituía amiúde como objeto de resistência cultural e política; podia visar à constituição de si como sujeito moral da Antiguidade greco-latina, a auto-renúncia e a pureza do cristianismo, a interioridade cristã e burguesa. Em contrapartida, observamos na cultura somática contemporânea que o cuidado excessivo com o corpo se traduz em uma vontade de uniformidade, de adaptação à norma e de constituição de modos de existência conformistas e egoístas, visando à procura da saúde e do corpo perfeito. Falta nela, a preocupação pelo outro e pelo bem comum, a qual é substituída pela preocupação pelo corpo. Daí que o lugar da utopia se desloque para o corpo. A utopia passa a ser uma utopia corporal de descoberta e colonização do continente “corpo”.
 
IHU On-Line - O senhor poderia explicar a diferença entre modificações corporais mainstream e nonmainstream? O que elas revelam sobre seus atores? E como é possível entender a dor e o risco contidos nessas práticas?

Francisco Ortega
- Os estudiosos dessas práticas localizam nas tatuagens e piercings  as práticas mainstream, isto é, as mais comuns e difundidas, deixando as nonmainstream para falar de piercings genitais, queimaduras, cicatrizes, implantes de silicone, amputações, entre outros, as quais são restritas a comunidades e subculturas específicas. À medida que as modificações corporais vão se difundindo e atingindo um público maior, aumenta a procura por formas menos difundidas e mais radicais para poder definir um grupo ou subcultura determinada. Quando qualquer adolescente tem uma tatuagem no pescoço, nas costas ou barriga, tatuar-se não representa mais uma prática alternativa de modificação corporal, daí que tenham aparecido recentemente tatuagens sem tinta! Diretamente na carne, com sangue e arrancando a pele. Pensei que a dor e o risco supunham, para além de interpretações mais convencionais, as quais não excluo, mas não privilegio nas minhas análises, uma forma de reclamar a autenticidade dessa prática corporal, de experienciar a corporeidade numa cultura que anestesia a dor e as experiências sensoriais e que nos diz que o corpo é obsoleto, que deve ser superado ou que é uma mera imagem.

IHU On-Line - Por que o senhor discorda de Baudrillard quanto à questão das modificações corporais?

Francisco Ortega
- Baudrillard  representa uma das abordagens privilegiadas pelos estudiosos das modificações corporais. Segundo essa abordagem, as modificações seriam um “carnaval de signos sem significado anexo”, isto é, um elemento a mais da sociedade do consumo, do espetáculo e do mundo da moda. Não digo que não exista essa leitura nem que não tenha sua validade, simplesmente tento propor uma leitura alternativa mais complexa que focalize na experiência corporal mesma, na fenomenologia da corporeidade. Acredito que alguns elementos ressaltados pelos atores envolvidos nas práticas, tais como o caráter permanente da marca corporal, a planificação e a dor, escapam do ecletismo superficial do mundo da moda.

IHU On-Line - É possível relacionar a busca do corpo perfeito e sua construção com a autonomia do sujeito?

Francisco Ortega
- Em nossa cultura somática, esses dois elementos estão unidos, pois privilegiamos os ideais de liberdade e de autonomia entendidas como liberdade e autonomia de cuidar e atingir a perfeição corporal. Não devemos esquecer que a ênfase na autonomia individual está indissoluvelmente ligada à desmontagem do estado de bem-estar assistencial e a privatização das políticas públicas e de saúde. Nesse cenário, a dependência é criticada e tratada com desdém. Reivindicamos uma autonomia que se encontra na base das diferentes tecnologias que nos governam, como diversos autores têm sublinhado. É uma autonomia enganosa, a autonomia e a liberdade de nos vigiar e nos tornarmos expertos de nossa saúde e de nosso corpo, como analiso no meu texto.

IHU On-Line - Como esse culto ao corpo se apresenta no Brasil? Há muitas diferenças nesse comportamento conforme as regiões de nosso país?

Francisco Ortega
– O Brasil, como todo o mundo sabe, é campeão em obsessão pelo corpo, academias de ginástica, cirurgias estéticas, entre outros. Sobre as diferenças regionais não saberia dizer, mas imagino que, onde aumente a concentração de renda, a obsessão deve ser maior, nas zonas de praia mais do que no interior. 

IHU On-Line - Em seu artigo o senhor afirma que os tabus passaram da cama para a mesa. O homem contemporâneo está obcecado pelo que come? O que há por trás disso? O sexo ficou em segundo plano?

Francisco Ortega
- O que está por trás disso é precisamente a cultura somática com sua insistência pela saúde e a busca do corpo perfeito. Sobre os tabus, acredito que a sexualidade tenha sido deslocada como espaço de problematização na nossa cultura. Durante séculos, a verdade de si mesmo, a distinção normal/patológico e os tabus giravam em torno dela. Não quer dizer que hoje a sexualidade não seja mais “problematizada”. Obviamente existem ainda preconceitos, bem como atos de violência contra homossexuais, travestis etc. Parece-me, no entanto, que os indivíduos hoje em dia lidam com mais facilidade com suas escolhas sexuais, as quais provocam menos angústia e ansiedade. Novas patologias que assaltam os consultórios de psicanalistas e psicoterapeutas, tais como anorexias, bulimias, ataques de pânico, entre outros, apontam mais para distúrbios da imagem do corpo que para uma sexualidade recalcada ou reprimida. Ao dizer que os tabus passaram da cama para a mesa, quis fazer uma pequena brincadeira que visa questionar a moralização da comida e da saúde. Ficamos muito preocupados com o doce demais que comemos no jantar de ontem, o com a picanha que não deveríamos ter aceitado, enfim, é comum nas reuniões sociais as pessoas passarem horas discutindo essas questões. E se vocês deram uma olhada aos sites e blogs de meninas anoréxicas, vemos esse vocabulário recorrente da culpa e da punição em relação à comida. 
 
IHU On-Line - Em que medida a prática de esportes radicais e sexo sem proteção são respostas “à obsessão por comportamentos e estilos de vida sem risco”?

Francisco Ortega
- Só quando nos dizem que devemos evitar continuamente os riscos que a incitação de realizar comportamentos de risco aumenta, desde os esportes radicais ao sexo sem camisinha. Da mesma maneira como a proliferação de formas de vida e de hábitos arriscados deve ser analisada no contexto de uma cultura que prima pelo desvio aos riscos, a mesma cultura que produz a obsessão pela malhação, a dieta saudável, e qualquer produto novo de fitness, saúde ou beleza, gerou também os casos extremos de sedentarismo, a fast-food, e toda uma gama de drogas sintéticas. Corpos malhados e sarados convivem lado a lado com obesos reticentes e fumantes empedernidos. Como testemunham os consultórios dos psiquiatras, psicanalistas e psicoterapeutas, coexistem em numerosos indivíduos, em difícil equilíbrio, hábitos bioascéticos e descuidados, criando estresse psicológico e tentativas de compromisso individual. O aumento na complexidade de um sistema resulta na diversificação periférica, conservando, no entanto, a coerência global, o que faz com que coexistam e se potencializem mutuamente fenômenos tão paradoxais como o bioascetismo e a displicência somática, ambos manifestações da diversidade periférica.

IHU On-Line - Como o senhor percebe a questão da exclusão/estigmatização daquelas pessoas que estão fora do ideal de beleza atual?

Francisco Ortega
- È um absurdo a exclusão e estigmatização de velhos e doentes, afinal, a velhice e a doença faz parte da condição humana. Tem algo de profundamente errado nessa negação de nossa condição.

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