Edição 496 | 31 Outubro 2016

Música contribui para ressignificar a morte

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João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

José Reinaldo Felipe Martins Filho ressalta que composições próprias para celebrações religiosas são um instrumento do simbólico — quem sabe um instrumento do próprio sagrado

A experiência humana é representada pelas artes, e a morte ocupa um lugar privilegiado neste enredo, afirma o professor José Reinaldo Felipe Martins Filho, que tem formação em Filosofia, Teologia e Música. “Desde as antigas tragédias gregas é possível encontrar o contraste entre vida e morte, o desfecho infortúnio do herói trágico, as desventuras coadjuvantes dos que apenas incrementavam a trama com sua morte.” Com a ascensão do cristianismo e sua promessa de uma vida eterna, a música foi impactada.

Martins Filho, em entrevista concedida por e-mail para a revista IHU On-Line, diz que, frente à impossibilidade de compreender a morte, “nada mais oportuno que diante dela silenciar-se”. E o silêncio fúnebre é evocado de diferentes maneiras pelas mais diversas religiões, “seja com um toque instrumental, uma peça para órgão ou, mesmo, algumas badaladas de sinos”.

A história da música apresenta recorrências na maneira de representar elementos que caracterizam a morte: “sons graves indicam movimento descendente, isto é, para baixo, para o que está embaixo (inferno, túmulo, morte), enquanto o agudo tende para cima, para o alto e as coisas eternas (a vida celestial, a eternidade)”.

O professor ressalta que a música, “inserida no âmbito das celebrações religiosas como um instrumento do simbólico — quem sabe como um instrumento do próprio sagrado”, não contribui em nada para o entendimento da morte. Porém, pode ajudar a ressignificar a morte e o morto, “quem sabe até ao ponto de aceitá-la como parte do fluir natural de todo ser vivente”.

José Reinaldo Felipe Martins Filho possui formação em Filosofia, Teologia e Música, com mestrado em Filosofia e em Música, ambos pela Universidade Federal de Goiás - UFG. Atualmente desenvolve sua pesquisa de doutoramento em Ciências da Religião junto à Pontifícia Universidade Católica de Goiás - PUC-Goiás. Desde 2010 é membro colaborador do Círculo Latino-Americano de Fenomenologia - CLAFEN, a partir de 2014 do Laboratório de Musicologia Braz Wilson Pompeu de Pina Filho, da UFG, e do Grupo de Pesquisa em Religião, Cultura e Sociedade, da PUC-Goiás. Atualmente é professor no Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás - IFITEG, no Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz e na PUC-Goiás. É autor de Fenomenologia e Subjetividade: a retomada e a crítica de Husserl a Heidegger, pela Editora Prismas, e de uma série de artigos publicados em revistas nacionais e internacionais.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Como a morte está presente na música?

José Reinaldo Felipe Martins Filho - Em primeiro lugar, acredito que falar sobre a morte significa tocar um dos principais simbolismos do ser humano, em qualquer realidade ou cultura. Em diferentes épocas e lugares, a morte sempre despertou o interesse do homem. Conforme um antigo ditado alemão, basta nascer e já se é velho o suficiente para morrer. Ou ainda, como diriam os medievais, a morte é uma realidade da qual nenhum ser vivente pode escapar; uma realidade capaz de igualar ricos e pobres, bonitos e feios, homens e mulheres. Diante de sua soberania, todos perecem. A esse respeito escreveria o cisterciense Hélinand de Froidmont , em 1194: “a morte libera o escravo / a morte submete rei e papa / e paga a cada um seu salário / e devolve ao pobre o que ele perde / e toma do rico o que ele abocanha”. Os medievais a tomavam como companheira e musa inspiradora. Declamada por alguns, esculpida, desenhada ou pintada por outros e, enfim, cantada. Se as artes souberam representar o ser humano em seus dramas e esperanças, é verdade que a morte ocupou neste enredo um lugar privilegiado. 

Desde as antigas tragédias gregas é possível encontrar o contraste entre vida e morte, o desfecho infortúnio do herói trágico, as desventuras coadjuvantes dos que apenas incrementavam a trama com sua morte. Por conseguinte, com a ascensão do cristianismo — e, mormente, de sua promessa de uma vida eterna, que jamais encontraria ocaso —, a relação morte/vida ganharia um novo acento. Assim, na história da música, como não poderia ser diferente, identificamos a morte do começo ao fim. Já Monteverdi , em uma das primeiras óperas de que se tem notícia, narrara a trama do grande Orfeu, o filho da Musa, que não apenas testemunhou a morte de sua amada Eurídice, como, também ele próprio, descera às profundezas do Hades , encantando os deuses com sua música e, consequentemente, sobrevivendo a tais façanhas. Quem sabe Monteverdi já estivesse consciente desta capacidade inerente à música de transitar entre o mundo dos vivos e dos mortos. Dali em diante, seja como tema dos mais variados estilos musicais (e a narrativa da morte de Cristo seria uma das mais recorrentes), seja como estilo autônomo para as liturgias cristãs (o réquiem , por exemplo), a morte sempre estaria presente como tema para a composição dos tecidos musicais. 


IHU On-Line - Qual o papel da música nos rituais fúnebres e de morte?

José Reinaldo Felipe Martins Filho - Se, como acabo de afirmar, parece impossível tomar em conta a história da música sem perceber as diferentes ênfases dadas à morte por parte dos compositores, há, certamente, espaços privilegiados para esta manifestação, entre os quais não poderíamos deixar de recordar os rituais fúnebres. Aqui reside uma ambiguidade. Entre as várias tentativas de exprimir conceitualmente o que vem a ser a música, é possível dizer: música é uma combinação ordenada entre sons e silêncios. Desse modo, por mais que sempre nos refiramos à música como o resultado de uma produção sonora, não há música que prescinda do silêncio. 

Noutras palavras, silêncio e som são as duas faces do fenômeno musical. Digo isso porque, caso pensemos os ritos fúnebres das diferentes religiões, iremos logo identificar estruturas rituais em que a música desempenha um papel secundário ou, na melhor das hipóteses, a incumbência de facilitar o silêncio. Há, por assim dizer, uma música cuja finalidade não é outra senão construir o silêncio. Já que a morte não pode ser efetivamente compreendida, nada mais oportuno que diante dela silenciar-se. Distintas tradições religiosas possuem distintos modos de evocar o silêncio fúnebre. Seja com um toque instrumental, uma peça para órgão ou, mesmo, algumas badaladas de sinos. Em casos como estes, o fenômeno sonoro propriamente dito atua como preâmbulo para o espaço do luto, para a resignação e a sobriedade próprias à celebração de um funeral. 

Em outros casos, no entanto, a música constitui-se como o próprio rito fúnebre. Entre estes, vale a pena recordarmos o réquiem, título pelo qual se convencionou denominar uma peça ritual específica para as missas dos defuntos, amplamente divulgada no período clássico. Ao longo de suas estrofes, esta narrativa cantada avança desde o momento da morte, passando pela súplica dos fiéis reunidos pelo “descanso eterno” do falecido — e aqui enfatizamos uma das principais analogias para falar da morte: o descanso, o sono dos sonos etc. — pelo juízo final e, enfim, pela graça da salvação. Cada momento traz a sua marca característica, variando do grave extremo (utilizado para a voz de Deus no juízo final) ao canto das vozes agudas (que representam a acolhida da alma na corte celestial). 

Esta lógica, aliás, parece fazer sentido mesmo para os “não músicos”, já que sons graves indicam movimento descendente, isto é, para baixo, para o que está embaixo (inferno, túmulo, morte), enquanto o agudo tende para cima, para o alto e as coisas eternas (a vida celestial, a eternidade). Desse modo, o efeito catártico da arte pode ser sentido pelo espectador (fruidor) que, de repente, se enxerga no intermezzo entre a vida e a morte, como se o juízo final ali encenado se aplicasse à sua própria vida. Pela música, todos os presentes de algum modo “experienciam” a morte do morto, sua descida ao abismo dos mortos e consequente ascensão à vida eterna. 


IHU On-Line - De que forma a morte é construída pelas músicas da liturgia cristã?

José Reinaldo Felipe Martins Filho - Esta pergunta é bastante interessante, não apenas de um ponto de vista estético (musical), mas também teológico ou, no mínimo, relativo a toda uma cosmovisão. Digo isso porque entre as principais características da música litúrgica cristã está o estabelecimento de uma profunda simbiose entre o texto e a música que o reveste. Esta, por assim dizer, é uma herança que nos faz remeter ao canto dos primeiros cristãos, inserido na tradição medieval e, aos poucos, convertido no que conhecemos hoje como canto gregoriano  ou, como o denominaram mais tardiamente, cantochão . Neste gênero da música cristã, melodia e ritmo seguem a fruição natural da palavra falada, enfatizando e realçando o que o texto diz.

Desse modo, há melodias apropriadas tanto para quando o texto discorre a respeito das alegrias, como quando chora as dores e tristezas da comunidade. Na verdade, o sistema modal , vigente já entre os gregos e, consequentemente, ao longo de toda a Idade Média, resguardava a adequação de alguns modos para as diferentes nuances da vida cotidiana. Alguns modos gregos eram, inclusive, proibidos para os mais jovens, por despertarem sentimentos que estes ainda não estavam “aptos” a controlar. Logo, podemos concluir que as composições musicais — e, neste sentido, as composições litúrgicas — nunca estiveram isentas da intenção prévia de provocar alguma afetação, seja ela de caráter dramático, cômico, entre outros. 

No caso das músicas específicas para os rituais fúnebres na liturgia cristã, há, de igual modo, profunda identificação entre o texto cantado e a melodia que o evidencia. Em sua maioria, referem-se aos episódios bíblicos atinentes à ressurreição de Cristo, à vida eterna, entre outros. Mas a capacidade de construção de um discurso cristão sobre a morte não está, como insistimos, apenas a cargo do texto. Aliás, o texto, por si só, não é a música. Melodia e texto se complementam mutuamente na tentativa de estabelecer a “imagem” da morte como o simples término de uma etapa, ou melhor, como a passagem para uma realidade outra e, por ora, dotada de significação e plenitude. Como se o período da vida terrena não representasse outra coisa senão o estágio preliminar, uma antecipação de alegrias cuja plenitude apenas se efetivaria no plano da eternidade. Assim, o uso de tonalidades menores e o recurso às dissonâncias apresentam-se como formas eficazes de, já a música, apontar para a ausência de um término, do que se pode apreender a morte não como o final, mas como a passagem, a transição. 

Vale a pena observar o quanto as canções litúrgicas para ritos fúnebres exploram as dissonâncias. Na dissonância, a cadência final permanece em suspensão. O sutil incômodo à nossa audição — acostumada, como é, à dinâmica de conclusões do sistema tonal — contribui, ainda que de maneira inconsciente e instintiva, para o entendimento da morte como travessia. O término tão aguardado está do outro lado da margem, além deste frontal pelo qual todos, necessariamente, deveremos passar. A despeito dos expoentes da música litúrgica contemporânea, a fim de compreender a construção da morte pela música interessei-me, sobremaneira, pelo Barroco tardio, especificamente na primeira metade do século XVIII. 


IHU On-Line - Como compreender o lugar da morte no barroco do século XVIII?

José Reinaldo Felipe Martins Filho - Na verdade, o meu interesse pelas representações da morte na música Barroca setecentista foi despertado pela leitura de uma obra bastante significativa, qual seja, o trabalho de doutoramento de Walter Benjamin , intitulado Ursprung des deutschen trauerspiels . Como disse, a leitura deste trabalho me impressionou muito, especialmente pela riqueza extraída das análises propostas por Benjamin. Ao que parece, a tradição literária havia se consolidado ao redor dos dois grandes esteios propostos já desde Aristóteles , como segue: a tragédia e a comédia. No entanto, Benjamin identifica um terceiro gênero, se é que assim podemos denominá-lo, como ponto de confluência entre os dois antigos extremos. Trata-se do que denominou trauerspiel, um termo cuja tradução para o português é bastante controversa e sujeita a divergências, mas que, de maneira geral, reúne a ambiguidade do luto (trauer) e do jogo (spiel) em sua composição. 

Poderíamos talvez falar de uma espécie de hibridação entre a comédia e a tragédia (numa tragicomédia, ou comédia trágica), para a qual a morte emergiria como imagem não apenas central, mas catalisadora de todos os acontecimentos. Em se tratando do Barroco no século XVIII, parece mesmo possível afirmar com Benjamin que a morte se constitui como a moldura trágica de toda a dinâmica existencial daquele período. Na mesma direção, por exemplo, valeria a pena verificar o trabalho do holandês Johan Huizinga , para o qual mais que qualquer devoção a este ou àquele santo ou, mesmo, à Virgem Maria, a morte pode ser tomada como a imagem mais significativa de todo o Barroco. Assim, não é difícil encontrarmos representações plásticas ou descrições literárias que toquem a temática da morte neste período. Entre outros, destacamos o “anjo da morte”, “o ceifador”, as várias representações da “dança macabra”.

Em todos estes exemplos, a impressão unilateralmente trágica da morte dá lugar à ironia. O morto não é simplesmente a vítima de um assassínio ou outra eventualidade, mas o protagonista que, passando da dimensão dos vivos para a dos mortos, pode zombar de seu malfeitor, como se este lhe tivesse aferido um benefício ao lhe ceifar a vida. À revelia de toda a tragicidade circundante, os esqueletos tocam instrumentos e dançam, festejando o seu novo estado de incorruptibilidade. Estes exemplos, como dissemos, são abundantes tanto na literatura, quanto nas artes barrocas. É claro que, em grande medida, podemos compreender esta significação como uma consequência natural dos cultos aos mortos iniciados já nos primórdios da Idade Média. Isso, contudo, em nada diminui a impostação dada a este tema em pleno Barroco. 

Benjamin, como disse, deu cabo de sua empresa tomando como campo de estudos o universo da literatura e do teatro. Tentei fazê-lo, muito modestamente, confesso, no âmbito da música, auxiliado, para isso, de alguns exemplos escolhidos da vasta obra do alemão Johan Sebastian Bach . Para tal, fez-se necessário o uso de conceitos extraídos da retórica musical a fim de melhor identificar os momentos em que melodia, harmonia e ritmo atuavam como reforço ao texto cantado. A título de ilustração, é curioso como em Matthäuspassion  Bach alterna entre o uso do agudo ou do grave conforme as diferentes ênfases propostas pelo texto. O uso de dissonâncias ou tonalidades menores (que à época eram consideradas dissonantes) como formas de realçar os episódios de morte, frequentes na obra bachiana, rechaça o que afirmei acima com respeito às representações da morte na música. 


IHU On-Line - Como a morte aparece nas produções musicais do século XXI e o que revelam da concepção sobre o fim da vida na sociedade contemporânea?

José Reinaldo Felipe Martins Filho - Não me considero com propriedade para caracterizar como a música contemporânea tem trabalhado a temática da morte. Nos últimos tempos, tenho me dedicado a pesquisar as religiosidades populares, com ênfase para o catolicismo popular em Goiás, estado em que resido. Por esse motivo, a respeito das produções musicais do século XXI — e aí particularmente daquelas que extrapolam o universo religioso em sentido estrito —, tenho um conhecimento bastante incipiente, este de apenas ouvir vez ou outra pelo rádio ou em uma apresentação ao vivo. Confesso que nunca me pus a pensar mais profundamente sobre as implicações da música contemporânea acerca da construção de nossa compreensão a respeito da morte. Ainda assim, sinto-me em condições de sugerir um exercício. Eu mesmo o tenho feito sempre que tenho a oportunidade. 

Quando possível, visite um concerto de música contemporânea, e aqui não me refiro unicamente à música tida como clássica, de algum modo menos acessível para a grande maioria da população brasileira, mas à música contemporânea de maneira geral, desde o sertanejo universitário (um tanto em voga nas mídias com alcance das massas), ao funk, ao samba ou a qualquer outro gênero musical disponível. Em seguida, tente experimentar o que esta música lhe comunica, como alcança a sua dimensão sensorial — não apenas à audição, mas aos demais sentidos, fazendo acelerar ou acalmar o coração, causando náuseas ou excitação por conta de seu frenesi, intensidade de volume etc. Feito isto, tente emitir algum significado para esta experiência. Ou melhor, tente comunicá-la a outrem. Perceba como a música, à semelhança das demais produções artísticas do homem contemporâneo ou da dinâmica cada vez mais intensa dos grandes centros urbanos, parece realçar a dimensão da nossa finitude. 

A música atual expressa, com toda a força que lhe é própria, não apenas a morte corporal, mas as diferentes experiências de morte pelas quais passamos todos os dias: a morte da ética na política, a morte dos relacionamentos amorosos, a morte da dimensão social, a morte da educação e da saúde e, consequentemente, a morte dos que nos cercam e a nossa própria morte. Esta música, noutras palavras, traz a marca da finitude como nossa única possibilidade de ser no mundo contemporâneo. Somos, portanto, cercados pela aura da morte e esta se apropria da finitude como seu modus operandi. Isso ao ponto de a própria morte tornar-se para nós uma realidade cotidiana, costumeira, incapaz de nos causar perplexidade; como se o fato de morrermos, ou de as pessoas que nos cercam também morrerem, não mais representar para nós um assombro, mas, justamente, o limite necessário para empreendermos a vida o quanto pudermos. Quem sabe Saramago  tenha mesmo razão e a finitude seja, de fato, o destino de tudo.


IHU On-Line - A partir de sua experiência na observação da religiosidade popular goiana, como a música contribui para uma aceitação e entendimento sobre a morte?

José Reinaldo Felipe Martins Filho - É curioso pensarmos a respeito de aceitação e/ou entendimento com relação à morte. Isso, aliás, faz com eu me recorde de uma experiência concreta. Estava eu, certa vez, em um funeral. O morto havia tirado a própria vida e deixado para trás um filho pequeno — naquela época com sete anos — e a esposa. Enquanto o velório seguia, conversávamos sobre como aquela criança estaria compreendendo aquele momento, ao que alguém comentou: “Ele é muito jovem para compreender”. Imediatamente após ouvir esta afirmação, um velho senhor ao lado retrucou: “Eu tenho 70 anos e ainda não compreendo o que é a morte”. 

De fato, não sei em que medida é possível entender a morte, senão como um fenômeno constantemente à espreita, do qual nunca participamos diretamente. Isso não é diferente em se tratando das religiosidades populares, cada uma ao seu modo tentando perscrutar este indescritível mistério da existência humana. Minha pesquisa se dirige particularmente ao catolicismo popular goiano, pelas vias de sua musicalidade. Também neste universo de expressão da experiência religiosa é possível encontrar elementos atinentes à temática da morte. Na verdade, esta é uma característica que poderia ser estendida ao catolicismo como um todo. 

Entre todos os expoentes do cristianismo, o catolicismo é o que certamente se mostra mais afeito à morte. Tal afirmação pode ser constatada de maneira privilegiada em três aspectos, notadamente interligados entre si, os quais apresento na seguinte ordem: as insistentes relações de intermediação entre céu e terra, o papel determinante dos santos e santas e, nesta categoria, dos santos domésticos, isto é, das almas dos parentes e amigos que já passaram pela experiência da morte e agora se tornaram agentes intermediadores entre os dois mundos e, por último, a consequente necessidade de representação deste sagrado intermediador por meio das imagens, pinturas, estampas, fotografias, relíquias e do culto aos demais instrumentos materiais (velas, crucifixos, vestimentas) e espaços (igrejas, cemitérios etc.) de intermediação. No catolicismo popular, a morte do outro é celebrada como prenúncio de uma realidade outra, uma realidade de vida, de continuidade. Celebrar a morte torna-se, então, um modo eficaz de atribuir-lhe sentido, de encarar a dimensão trágica da vida numa perspectiva de algum modo iluminada, de fazer da morte, enquanto fenômeno existencial, um incentivo para que a vida continue. 

Inserida no âmbito das celebrações religiosas como um instrumento do simbólico — quem sabe como um instrumento do próprio sagrado —, a música em nada contribui para entender a morte, mas para ressignificá-la (à morte e ao morto), quem sabe até ao ponto de aceitá-la como parte do fluir natural de todo ser vivente. Nessa direção, há experiências muito significativas, desde os cantos já solicitados pelo falecido quando este ainda vivia, entoados durante o seu funeral, passando pela experiência dos cantos fúnebres tradicionais do catolicismo popular (note-se, por exemplo, o uso ritual das “incelências ” como motivo estético para composições destinadas ao rito católico das Exéquias, como bem fez Joaquim Fonseca ), até, quem sabe, a canção de despedida e o uso de músicas específicas, consolidadas pelo costume, para o velório.


IHU On-Line - O que é a morte?

José Reinaldo Felipe Martins Filho - Para mim, numa leitura confessadamente heideggeriana , a morte é a possibilidade da nossa impossibilidade. Não simplesmente a impossibilidade das nossas possibilidades, como o término, mas a concretização do que para nós — existentes — seria necessariamente impossível — citando Epicuro : “A morte não é nada para nós, pois, quando nós existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos nós”. De fato, a morte se afigura para nós como a única possibilidade realmente possível e certa. O limite da existência que, no entanto, abre-se numa via de dupla interpretação: como o término de um ciclo biopsíquico e como a abertura para a Vida em sua plenitude. Isso porque, a morte é o ponto mais alto da experiência humana, sem a qual ninguém jamais poderá dizer-se completamente homem. Um homem completo é um homem morto, diriam. Como ideal a ser alcançado — ainda que muitos hesitem quanto a isto —, a morte torna-se incentivo para uma vida vivida com intensidade. Assim sendo, viver-para-a-morte, a condição mais elementar de cada ser vivo, requer viver para a vida, não no sentido inconsequente de um mero carpe diem, mas como a assumência do compromisso ético como ideal de ser, numa convivência harmoniosa com os outros e com a natureza de maneira geral, valorizando cada instante como irreparável e único. ■

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