Edição 496 | 31 Outubro 2016

Pietàs cinematográficas

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Vitor Necchi

A célebre escultura de Michelangelo que retrata a Virgem Maria amparando em seu colo o Cristo morto é uma referência recorrente para cineastas. Atualmente instalada na Basílica de São Pedro, no Vaticano, ela surpreende pelas circunstâncias. “Maria tem uma fisionomia não apenas resignada, mas jovem. Em seu colo, deitado sobre seu manto, a pose de Cristo se assemelha a uma criança que dorme junto à mãe. As mãos da mulher foram construídas a partir de uma certa ambivalência: a direita sustenta o corpo inerte; a outra, suspensa, parece que apresenta, com alguma incredulidade, o filho desafortunado”, descreve Vitor Necchi.

No artigo , o jornalista e professor identifica na filmografia mundial obras que recriam um dos fatos mais marcantes da cristandade, que no imaginário do mundo ocidental tem na obra de Michelangelo a síntese perfeita. No mármore cinzelado, Jesus Cristo foi representado numa dimensão menor que a de sua mãe, de modo que ela pudesse amparar plenamente o corpo adulto do filho. No cinema, diferentes composições emulam a Pietà e, em sentido mais amplo, a própria história de Maria e Jesus, com variações próprias a cada narrativa audiovisual.

Vitor Necchi é jornalista, mestre e doutorando em Comunicação Social. Lecionou na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e na Universidade Feevale. Atualmente, é jornalista do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Coordenou os cursos de Jornalismo da PUCRS e de Realização Audiovisual da Unisinos. Foi editor da revista NORTE - Livros, artes e ideias; repórter, editor e coordenador de produção do jornal Zero Hora; assessor de comunicação do presidente do Banco do Estado do Rio Grande do Sul - Banrisul e assessor de comunicação do vice-prefeito de Porto Alegre.

 

Eis o artigo.

 

Há criações que representam com tamanha intensidade ou fidelidade uma circunstância ou um sentimento que viram uma espécie de emblema do fato original. É o caso da Pietà, de Michelangelo , escultura terminada em 1499 que se confunde no imaginário do mundo ocidental com a própria cena da comiseração da Virgem Maria, a mãe piedosa, que acolhe em seu colo o rebento morto. Esta é uma imagem tão forte, tão eivada de significado, tão arquetípica, que a visão de uma pessoa jazida sobre o colo de alguém remete à célebre obra que o artista italiano criou em mármore, com surpreendente capacidade de extrair detalhes da pedra bruta.

 

No cinema, que se vale fartamente de citações, é comum associar à Pietà cenas nas quais os personagens compõem uma situação que remete à clássica circunstância do Cristo morto acolhido pela mãe condoída, mas ao mesmo tempo portadora de traços serenos, profundamente serenos. A personagem cinzelada por Michelangelo em plena Renascença subverteu práticas recorrentes na cristandade, que usualmente associa morte a dor e a sofrimento, e legou para a posteridade uma mãe resignada, com uma piedade — pietà — que suplanta a própria dor. 

 

A estátua, atualmente instalada na Basílica de São Pedro, no Vaticano, surpreende pelas circunstâncias. Maria tem uma fisionomia não apenas resignada, mas jovem. Em seu colo, deitado sobre seu manto, a pose de Cristo se assemelha à de uma criança que dorme junto à mãe. As mãos da mulher foram construídas a partir de uma certa ambivalência: a direita sustenta o corpo inerte; a outra, suspensa, parece que apresenta, com alguma incredulidade, o filho desafortunado.

 

Tamanha força alegórica mobiliza vários cineastas a criarem suas pietàs cinematográficas. Algumas cenas já se tornaram clássicas na filmografia mundial. A começar pelo diretor sueco Ingmar Bergman . No claustrofóbico e perturbador Gritos e sussurros (1973), ele conta a história de duas irmãs (interpretadas por Liv Ullmann e Ingrid Thulin) e uma empregada (Kari Sylwan) que acompanham no casarão de campo da família a agonia da terceira irmã (Harriet Andersson). A morte, aliás, é tema recorrente na filmografia do cineasta. O exemplo mais emblemático talvez seja O sétimo selo (1959), em que um cavaleiro retorna das Cruzadas e joga uma partida de xadrez com a Morte.

 

Em Gritos e sussurros, Bergman se vale de closes das personagens para montar uma espécie de galeria da dor, do sofrimento, da incomunicabilidade, da agressão, da repressão e da resignação sustentada por um impressionante elenco feminino e pela dramática fotografia de Sven Nykvist, seu parceiro habitual. O rosto humano é um personagem à parte, devido ao destaque dado à expressividade latente em ângulos, olhares e traços. Em flashbacks pontuados pelas faces das quatro mulheres, os ódios reais e presumidos e a frieza das relações familiares deterioradas ressurgem através das tensões vividas nos longos ambientes mobiliados com comedimento, mas onde o vermelho — no tapete, nas almofadas, nas paredes — se impõe como o tom dominante da trama.

 

Por causa da total incapacidade dos laços sanguíneos na construção ou manutenção de afetos, coube à dedicada e amorosa Anna suprir a patroa acamada, Agnes, de atenção e cuidados, de abraços e beijos suaves que cobrem a boca e o rosto retesados pela dor intensa. É da empregada de corpo farto como uma modelo renascentista que provêm o calor e o amparo do seio desnudo e o colo que dá amparo na morte para a personagem cujo nome remete à Paixão (Agnus Dei, Cordeiro de Deus). Após um improvável diálogo entre as duas irmãs com a caçula morta e depois da recusa delas em lidar com o cadáver, é Anna quem assume para si o papel da Virgem Maria e abriga junto de si a morta. Num ato de piedade, ela é a única que não repele o corpo inerte. Recosta-se na cabeceira da cama e acolhe a patroa em seu colo.

 

No mítico e idealizado Pampa gaúcho, território onde foi forjada a identidade dos brasileiros nascidos no mais meridional dos estados brasileiros, o cineasta Sérgio Silva  subverte as representações mais tradicionais do gaúcho com seu filme Anahy de las Misiones (1997) e ousa ao propor uma versão gay da Pietà. Na trama, a personagem principal, interpretada com vigor por Araci Esteves, tenta manter sua família unida e viva. Para tanto, engendra um êxodo interminável pelo Rio Grande, garantindo a sobrevivência com a prática do carcheio (apropriação de pertences dos mortos após as batalhas a fim de vendê-los para outros combatentes).

 

O filme — ao contrário do que se possa supor num primeiro momento — não despreza os elementos que integram a identidade gaúcha hegemônica. A chave para se entender o que faz de Anahy uma obra distinta na cinematografia produzida no Rio Grande do Sul, no que se refere à representação do gaúcho, remete a um processo de deslocamento de gênero. Isso ocorre na medida em que atributos que se poderiam considerar próprios do gaúcho se encontram registrados no filme não em personagens masculinos, mas em uma mulher. Outro aspecto relevante para se entender a subversão do filme é o fato de que a figura masculina aparece fragilizada em sua representação. A começar pela ausência de batalhas numa história cuja ação transcorre, justamente, durante a mais enaltecida e mítica guerra travada em solo rio-grandense. O filme não mostra cenas de combate, nem guerreiros indômitos. Os soldados apresentados estão derrotados, agonizando, ensanguentados ou mortos.

 

De maneira sutil, o diretor apresenta elementos que sugerem uma relação homoerótica entre Teo e Manoel, mas é na morte do casal de homens que o cineasta, valendo-se da referência, consagra a relação. Num dos tantos campos de batalha por onde a família cruza, a filha de Anahy descobre a dupla morta. O soldado se encontra sentado no chão, recostado em uma pedra. O corpo de Teo repousa inerte sobre o colo do amante, criando uma dramática e pungente cena.

 

Outros dois homens compõem mais uma versão da Pietà, unidos — aparentemente — pela criminalidade, até que o desfecho da trama prove o contrário. Cães de aluguel (1992), estreia de Quentin Tarantino  no cinema, é um filme policial recheado de intriga e comédia. Tem também muita violência, sangue e diálogo para contar a história de um grupo reunido por Joe Cabot (Lawrence Tierney), um tarimbado criminoso, para fazer um grande roubo de diamantes. Ninguém se conhece direito, e cada um tem uma cor como codinome. Na hora do assalto, vários policiais estavam no local. 

 

Mr. White (Harvey Keitel) escapa com Mr. Orange (Tim Roth). Na fuga, Mr. Orange leva um tiro e começa a sangrar. Sangra muito, e vai morrer se não receber cuidados médicos. A dupla foge para um armazém — local de onde partem os flashbacks que conta a preparação do crime e onde todos iriam se encontrar depois do assalto. No meio da agonia, chega Mr. Pink (Steve Buscemi), convicto de que um dos homens é um policial disfarçado. Impõe-se a dúvida: quem é o traidor? Forma-se então um triângulo de desconfianças, em que cada vértice aponta a arma para outro comparsa, estabelecendo um clima de tensão que presumivelmente acabaria em mais sangue.

 

Após a profunda tensão estabelecida pela desconfiança, as armas disparam, e as três pontas do triângulo desabam. Perto deles, Mr. Orange seguia agonizando. Mr. White se arrasta e tenta amparar o moribundo, a quem tentou defender, afirmando para o chefão do bando que se tratava de um bom garoto, que ele não era traidor. Mr. White, embora ferido, encontra forças para acolher um desesperado Mr. Orange, que não suporta a sangueira onde se encontra atirado. Quando a dupla, enfim, encarna a posição da Pietà, Mr. Orange, em seu estertor, balbucia a confissão: ele era tira. Traído, enganado, decepcionado, Mr. White afasta sua mão que acolhia no colo o corpo ferido do bom garoto e aponta a arma para a cabeça do tira, transmutando a piedade em decepção e raiva.

 

E numa inversão de papéis, em Central do Brasil (1998), de Walter Salles , o filho (Vinicius de Oliveira) ampara uma mulher, Dora (Fernanda Montenegro), que assume o papel de mãe durante a viagem. Josué é um garoto cuja mãe morreu atropelada em São Paulo, após ambos desembarcarem na estação. Sozinho e perdido, contrata os serviços de Dora, uma professora aposentada que ganha um troco a mais escrevendo cartas para analfabetos que circulam na Central do Brasil, em São Paulo. Ele quer achar o pai que nunca conheceu. A trama se desenrola até que Dora acaba acompanhando Josué numa imersão pelas entranhas do Nordeste, em busca do pai desconhecido.

 

A dupla embarca num caminhão típico de boias-frias, mas lotado de romeiros que rumam até uma festa religiosa em Bom Jesus, cidade onde supostamente moraria o homem. Anoitece, e a dupla está sem dinheiro, faminta e exausta. Discutem, e o menino dispara para o meio da multidão de fiéis. Dora corre à procura de Josué, entra numa casa lotada de ex-votos e, exaurida, desmaia. Quando ela acorda, a noite já havia dado lugar ao dia, e sua cabeça repousa no colo do menino. Na Pietá original, Michelangelo alterou a proporção dos corpos. Jesus Cristo foi representado numa dimensão menor que a de sua mãe, de modo que ela pudesse amparar plenamente o corpo adulto do filho. Em Central do Brasil, mesmo com pouca estatura, é o garoto que ampara o corpo maior. Despertada pelo brilho da alvorada, Dora sorri no aconchego da perna franzina.

 

As referências cinematográficas em torno da obra de Michelangelo são tantas que o filme vencedor do Festival de Veneza de 2012 se chama Pietà. Dirigido pelo sul-coreano Kim Ki-Duk , conta a história um homem cruel e frio, que trabalha como cobrador para agiotas. Vive solitariamente, mutilando devedores, até que um dia aparece uma mulher dizendo que era sua mãe. A referência à escultura é cena crucial para o filme. Ki-Duk, em entrevista durante o festival, contou: “Estive duas vezes no Vaticano e vi essa obra-prima. Para mim, aquele abraço da mãe em seu filho é um abraço em toda a humanidade que sofre. É um símbolo do compartilhamento da dor e do sofrimento”.

 

A lista vai longe. Na obra de Alfred Hitchcock , há referências à Pietà em pelo menos quatro filmes: Interlúdio (1946), A tortura do silêncio (1953), Janela indiscreta (1954) e Topázio (1969). Outra Pietà similar à de Sérgio Silva aparece em Garotos de programa (1991), filme de Gus Van Sant. Prova de que a cadeia de referências não tem fim, estabelecendo uma teia de sentidos ampliados em torno da experiência humana.■

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