Edição 496 | 31 Outubro 2016

A compreensão cosmológica sobre o fim da vida

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João Vitor Santos |Tradução Henrique Denis Lucas

Diego Irarrazaval analisa a morte desde a perspectiva dos povos originais, pontuando no que pode inspirar a cultura urbana ocidental

Na cultura indígena, morrer é não acabar-se. É voltar à integralidade da Terra, da natureza. “A condição humana se desenvolve na Mãe Terra, que pressupõe uma espiritualidade terrestre. Ao morrer na Terra, há um reencontro com os antepassados, a comunidade se reconstitui e a reciprocidade entre homem e mulher se revigora. Nada termina sem sentido: tudo recomeça”, completa Diego Irarrazaval, religioso com larga experiência na cultura de povos originais, essencialmente os latino-americanos. Para ele, essa concepção sobre o fim da vida é diametralmente oposta à cultura urbana ocidental da atualidade. “A ordem social hegemônica tende a suprimir a morte. E, quando a leva em consideração, é apenas como espetáculo”, critica.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Irarrazaval aprofunda sua reflexão destacando que “o conjunto dos comportamentos indígenas pode ser compreendido a partir de seu interior, com sua espiritualidade cósmica e histórica, além de sua lógica não ocidental”. Entretanto, alerta que “o indígena se opõe ao espiritualismo esotérico, de onde só sobrevivem o espírito e a consciência”. “A população indígena encara a morte muito bem e também visualiza, a seu modo, a nova vida. Diz-se que a assimilação da morte dá origem ao religioso. Na minha opinião, a morte permite, sobretudo, entender e agradecer à vida”, completa.

Diego Irarrazaval é escritor e teólogo chileno, presbítero da Congregação de Santa Cruz. Viveu mais de 30 anos nos mundos indígenas, principalmente nas terras altas do Peru. Ele define-se como “urbano e mestiço”. E faz questão de deixar claro: “espero que a minha morte e enterro sejam na região andina (com suas crenças, música e convivência). Assim tenho suplicado para amigos e familiares”. Entre seus livros publicados, destacamos Itinerarios en la Fe Andina (Cochabamba: Verbo Divino, 2013).

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Como compreender a morte desde a perspectiva das culturas andinas?

Diego Irarrazaval - O habitante nativo não é considerado arcaico e exótico na América Latina, já que as comunidades originárias se misturaram e reconstruíram o moderno segundo o paradigma indígena de relacionalidade. Trata-se, pois, de entender vivências interculturais e polissêmicas. O jeito Andino de sentir/entender a morte tem como fundamento a corporeidade cósmica. A condição humana se desenvolve na Mãe Terra, que pressupõe uma espiritualidade terrestre. Ao morrer na Terra, há um reencontro com os antepassados, a comunidade se reconstitui e a reciprocidade entre homem e mulher se revigora. Nada termina sem sentido: tudo recomeça.

Assim, sua simbologia se contrapõe ao cientificismo moderno. Este, entre outras coisas, entende a morte como o término da existência. Por outro lado, o indígena se opõe ao espiritualismo esotérico, de onde só sobrevivem o espírito e a consciência. Adverti a comunidade onde estive inserido, em parte na brincadeira, em parte com seriedade, que no meu funeral se serviria torresmo preparado a la aimara, acompanhado de vinho chileno. Morrer implica viver, pressupõe estar com pessoas amáveis, comer bem, beber solidariamente. 


IHU On-Line - De que forma a memória, a lembrança aos mortos é realizada nas culturas dos povos originais latino-americanos? 

Diego Irarrazaval - Na América Latina, são desenvolvidos rituais e celebrações curativas com os falecidos. A população indígena encara a morte muito bem e também visualiza, a seu modo, a nova vida. Diz-se que a assimilação da morte dá origem ao religioso. Na minha opinião, a morte permite, sobretudo, entender e agradecer à vida. Na atualidade, o povo aimara (e também quíchua, maia, entre outros) dá comida para seus "mortos-vivos". Eles seguem enterrando-os nas terras de cultivo, onde descansam seus antepassados que hoje cuidam dos que têm vida. Desenvolve-se, pois, uma clara compreensão da corporeidade cósmica.

No início de novembro (Dia dos Mortos e da Festa de "Todos-os-Santos"), família e amigos se reúnem para consolidar os vínculos. Preparam e oferecem, em rituais, as comidas e as bebidas preferidas a cada pessoa falecida. Há uma programação de homenagens, diálogos, banquetes, orações, ritos de boas-vindas e de despedida da "alma" (que chega no dia primeiro e se retira no segundo dia de novembro). Há também uma convivência humana e sagrada nos primeiros aniversários de falecimento — por mês, por ano e aos três anos de falecido. Esses costumes estão mudando, dependendo das circunstâncias e lugares, e têm surgido substitutos (um funeral rápido e moderno, cerimônias de diferentes denominações cristãs etc.).


IHU On-Line - O que a ideia de morte pode suscitar acerca de reflexões sobre a vida?

Diego Irarrazaval - A população indígena da América Latina (aproximadamente 50 milhões de pessoas com diferentes culturas e contextos) alimenta a paixão pela vida em plenitude. Ela cultiva "outros imaginários" mediante comportamentos e ritos em torno à morte. A isto se somam inúmeras iniciativas e redes humanas (que foram sintetizadas por cada Fórum Social Mundial: um outro mundo é possível). 


IHU On-Line - É possível afirmar que a morte hoje, essencialmente nas sociedades ocidentais, sofre um processo de desumanização. Por quê?

Diego Irarrazaval - A morte é maquiada e ocultada. A temática da recordação é deixada de lado e o processo da morte é desumanizado, assim como o enterro e o duelo. A ordem social hegemônica tende a suprimir a morte. E, quando a leva em consideração, é apenas como espetáculo. Esta trivialidade preenche os meios de comunicação. Diz-se que com a morte "tudo acaba". Na verdade, no mito do progresso, tudo continua preso às suas ilusões. Na realidade contemporânea, a morte tornou-se banal e trivial.


IHU On-Line - E, nesse sentido de “desumanização da morte”, que reflexões a cultura de povos originais nos inspiram?

Diego Irarrazaval - A espiritualidade cristã engloba nas festas a percepção do Crucificado, que empodera os marginalizados, e o sentir Deus. Em cada morte é celebrada a vida (e não o seu término). Lamentavelmente, muita reflexão cristã desqualifica o indígena, seja a partir da filosofia de caráter personalista ou a partir de um dualismo em que uma realidade não inclui a que é diferente ("esta" e "outra" vida, "alma" que continua e "corpo" que acaba etc.).

O conjunto dos comportamentos indígenas pode ser compreendido a partir de seu interior, com sua espiritualidade cósmica e histórica, além de sua lógica não ocidental. Além disso, a leitura analítica examina vários fatores, tais como os familiares, econômicos, psicossociais, entre outros. Quando o que foi vivido pela população é interpretado por nós, acompanhantes não indígenas, nossas categorias culturais e espirituais têm de ser empregadas com muito cuidado. Há de se evitar o pensamento unilateral de uma filosofia ou uma teologia. Além disso, a população indígena de hoje se movimenta entre vários mundos e é largamente pluricultural. Tudo isso dificulta, mas também faz do esforço para compreender as experiências policromáticas, apaixonante.


IHU On-Line – Qual a importância e como compreender os rituais, os chamados ritos de passagem, relacionados à morte?

Diego Irarrazaval - O ciclo de falecimento, velório e enterro tem profundas linguagens com signos relacionados ao reviver. Há velas acesas e flores ao redor do cadáver, a quem se reza, pois está ali presente. Há pessoas escolhidas para lavar e preparar o corpo para sua "viagem" ao descanso. Durante noites e dias intensos, a pessoa falecida e aqueles que sobreviveram são bem "acompanhados" (já que deixá-los sozinhos seria um crime). Ao redor da morte, a comida saborosa e as bebidas são compartilhadas generosamente. Outros signos de vida são o sinal da Cruz, rezar o Pai Nosso e a Ave Maria, utilizar água benta, hinos, prece do Rosário e outros gestos católicos enculturados no morrer andino. Uma cruz é colocada no caixão e no túmulo. Em cima e dentro do caixão são colocados oferendas rituais e elementos vitais. É feita uma saudação cerimonial ao falecido, que ouve e recebe vários sinais de convivência, além de cumprimentos entre as pessoas presentes.

A pessoa falecida está presente e se fala com ela e dela. São orados "responsórios", alimentos são preparados e compartilhados (especialmente no início de novembro). As "almas" se retiram satisfeitas e a família também se sente protegida pelos antepassados e falecidos especiais. No entanto, também se manifestam desconfiança e medo. Às vezes, as pessoas falecidas enviam sinais através de sonhos. Às vezes, castigam e causam desgraças, e é necessário apaziguá-las mediante rituais. 


IHU On-Line – A partir de suas experiências ocidentais urbanas e da cultura dos povos originais, que conceito de morte elabora? 

Diego Irarrazaval - O ponto central é que, ao morrer, a vida é afirmada no contexto da família, da comunidade, do cosmos e da história. Em poucas palavras: a relacionalidade "salva" as entidades frágeis do universo e dá significado ao morrer . No México, e em todo o continente, há uma "intensa rede de relações que ligam a comunidade dos vivos com a dos mortos... nos meios populares latino-americanos, cada morte implica uma reativação especial da comunidade ao redor da família do falecido" . Nas sociedades da África, a relação entre mortos-vivos (‘the living-dead’) também é cálida. Segundo John Mbiti ,  "eles continuam a ser pessoas" e são os "melhores intermediários entre a humanidade e Deus" . Cabe, portanto, apreciar o que existe em cada universo simbólico onde a morte não é a palavra final, mas uma crise radical que a vida proporciona. 

Para concluir, saliento a reconexão humana e espiritual que ocorre em torno da morte. São manifestados vínculos com antepassados e seres sagrados. Desenvolve-se uma reconexão de uma pessoa consigo mesma e com os(as) outros(as). A corporeidade conjuga dimensões do futuro, presente e passado. Isto se contrapõe à cotidianidade moderna.■

 

Leia Mais

- San Romero da América, mártir! Entrevista especial com Diego Irarrazaval, publicada nas Notícias do Dia de 23-03-2009, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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