Edição 496 | 31 Outubro 2016

Quando “ela” sequer é mencionada

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João Vitor Santos

A morte vivida de forma hermética, breve e pasteurizada, tão presente nos tempos atuais, é a entrada para as reflexões de Thomas Heimann sobre o fim da vida

“A morte se tornou um tabu da modernidade. Falar dela é obsceno, constrangedor”. A elaboração é do psicólogo e teólogo Thomas Heimann. Para ele, essa postura tem uma explicação: “vivemos na atualidade uma ‘ditadura da felicidade’, mesmo que aparente e superficial, parece não haver mais espaço para a emergência de temas profundos e existenciais como o sofrimento e a morte, especialmente a morte pessoal e íntima que toca a cada um de nós”. Para ele, essa ideia “moderna” de lidar com a experiência da morte pode criar um verdadeiro castelo de areia. Parecemos ter resolvido tudo rapidamente, mas, no longo prazo, toda essa solução rui. “As implicações de toda essa assepsia com a morte normalmente acabarão irrompendo em lutos crônicos e mal resolvidos”, pontua.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Heimann destaca que pensar sobre a morte proporciona um melhor entendimento sobre a vida. “A reflexão sobre a morte possibilita ao ser humano descortinar caminhos para uma vida mais autêntica, na busca da sabedoria do bem viver”, analisa. Por isso condena o que chama de “desumanização da experiência da morte”, que começa já com os cuidados e relação com doentes terminais. “Parece se estar terceirizando o cuidado das pessoas diante da morte e do morrer”, alerta. “Isso também se mostra nos ritos fúnebres, cada vez mais herméticos, breves e pasteurizados. Tudo é controlado, não havendo espaço para sobressaltos ou manifestações de maiores emoções”, analisa.

Thomas Heimann é graduado em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil - Ulbra e em Teologia pela Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia; possui mestrado e doutorado em Teologia pela Escola Superior de Teologia - Faculdades EST. Atualmente é professor titular da Ulbra, na área da Graduação e Pós-Graduação. É o atual coordenador do curso de Teologia da Ulbra, nas modalidades presencial e Ensino a Distância – EAD e também atua como professor convidado do curso de especialização em Aconselhamento e Psicologia Pastoral da EST.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Desde as perspectivas psicológica e teológica, como o senhor constitui o conceito de morte?

Thomas Heimann - Talvez seja mais apropriado iniciarmos por uma definição mais pragmática, a partir de uma perspectiva biológica, que ainda assim não será unânime, visto que, à medida que a ciência avança, mudam os critérios de conceituação. Mondin , por exemplo, define a morte como um cessar do processo vital num organismo vivo, ou, numa linguagem da biologia molecular, como a “dissolução da estruturação molecular necessária para o fenômeno da vida”. . O conceito de morte evoluiu ao longo da história humana, indo da cessação dos batimentos cardíacos ou da atividade respiratória, até o moderno conceito de cessação de qualquer atividade encefálica, que compromete, de forma irreversível, não só uma vida de relação como também a própria coordenação da vida vegetativa. Nessa perspectiva das ciências biológicas, a morte é o ponto final da existência humana. 

 

Morte, teologicamente

Já numa perspectiva religiosa ou teológica a morte, porém, não é o fim, sendo considerada como um momento de transição, de passagem de um estado para outro. Ao plano físico, orgânico e mortal é acrescido um plano espiritual, transcendente, etéreo, imortal e eterno. Cada religião, entretanto, possui singularidades na sua concepção de morte, sendo que nessa multiplicidade são inseridas representações de tempo e espaço como céu, inferno, purgatório, umbral etc. Ressalta-se que, nem mesmo dentro do próprio cristianismo há consenso sobre o que nos espera logo após a morte física ou terrena.

O que pode ser considerado como consensual na religião cristã é a de que, na morte do cristão, ocorre o encontro pessoal da criatura com o Criador, inaugurando o que convencionalmente se chama nos evangelhos de “vida eterna com Deus”. Essa vida será efetivada plenamente na ressurreição, que ocorrerá juntamente com a segunda vinda de Cristo, conforme as promessas bíblicas. Nessas representações entram em cena a dimensão da fé e da espiritualidade, elementos essenciais para o enfrentamento e consolo diante da inevitabilidade da morte física e terrena.

 

Morte na psicologia

Já na perspectiva psicológica, ou filosófica-existencial, o ser humano parece ser o único ser que possui consciência da sua finitude e que pode, portanto, refletir sobre a morte e dar um sentido ou significado a ela. Porém, a morte sempre acabará tendo um sentido único e singular para cada indivíduo, apesar das influências socioculturais, religiosas, familiares que contribuem para a construção da representação pessoal de morte. Portanto, é difícil para a psicologia sistematizar uma definição para a morte, especialmente porque ninguém, de fato, a experienciou realmente.

O que se experiencia é o processo de morrer, mas este ainda está ligado à dimensão temporal da vida. Nesse sentido, a morte propicia um encontro dialógico e dialético com a vida, ou seja, a morte nos faz refletir e dialogar com a vida, numa tripla dimensão temporal, que abarca o passado, o presente e o futuro, ou seja, sobre como vivemos, como estamos vivendo ou como ainda haveremos de viver a nossa existência finita.

O fundador da Psicanálise, Sigmund Freud , afirma que não há como viver a vida sem ter à frente a perspectiva da morte e parafraseia um provérbio latino dizendo “Se queres a vida, prepara-te para a morte”.  Mas, talvez, seja mais apropriado encerrar essa primeira questão com a visão do psicanalista e psiquiatra Roosevelt Cassorla , que diz que “a morte é algo que não pode ser descrito, pensado, nomeado, algo frente ao qual não se encontram palavras” ou ainda, no dizer de Georges Barbarin , de que a morte encerra em si uma definição impossível. 


IHU On-Line - Como a morte é encarada nos dias de hoje? De que forma é representada e construída nas sociedades modernas e pós-modernas?

Thomas Heimann - Falar de morte, para a maioria das pessoas, não é algo fácil nem agradável, até porque não há como embelezar a morte: ela é, invariavelmente, fonte de sofrimento, de dor, de tristeza e de saudade.  Mesmo que o diálogo entre vida e morte devesse ser permanente, por ser ela uma das poucas certezas humanas, o ser humano moderno ou pós-moderno parece que tenta, a todo custo, exorcizar a morte íntima e pessoal de sua consciência, reprimindo-a e negando-se a falar dela, o que não deixa de ser um paradoxo, afinal, negar a única certeza que temos na vida.

Phillippe Ariès , um dos mais eminentes estudiosos do tema da morte, descrevendo a concepção de morte no século XX, fala da morte invertida, isto é, da morte que é escondida, que se torna algo vergonhoso, tal como o sexo havia sido na era vitoriana. “A morte, tão presente no passado, de tão familiar, vai se apagar e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto de interdição”.  

Já para Marie de Hennezel , o mundo moderno não nos ensina mais a morrer. “Tudo é feito para esconder a morte, para incitar-nos a viver sem pensar nela,...”.  A morte, portanto, se tornou um tabu da modernidade. Falar dela é obsceno, constrangedor, mórbido... Por vivermos na atualidade uma “ditadura da felicidade”, mesmo que aparente e superficial, parece não haver mais espaço para a emergência de temas profundos e existenciais como o sofrimento e a morte, especialmente a morte pessoal e íntima que toca a cada um de nós.

Marie de Hennezel vai afirmar justamente que o tabu da morte que vivemos hoje é um tabu da intimidade. “Quando se começa a observar a realidade da morte é para as profundezas de si que o olhar se dirige. E é essa interioridade que nossa sociedade evita e dissimula tanto quanto pode...” 

Para Georges Barbarin, a civilização ocidental introduziu no ser humano a noção de horror à morte e desaprendeu o ato de resignação. É preciso que a sociedade reaprenda a olhar a morte de frente, como de fato ela é, sem ser mascarada. 


IHU On-Line - Que implicações pode haver no tratamento do tema morte de forma mais prática e técnica, quase asséptica, em que todas as questões são “resolvidas” de forma prática e objetiva?

Thomas Heimann - As implicações dessa objetividade e assepsia com a morte, que podem aparentar um controle positivo desse evento a curto prazo, num momento de dor e desorganização familiar, acabam se tornando negativas, especialmente a médio e longo prazo. Landmann , numa perspectiva médica, vai analisar a transição que a morte veio a sofrer desde a Idade Média, apontando para a sua gradativa “tecnologização”.

Para o autor, a experiência individual da morte dá lugar a uma outra concepção, em que a morte deixa de ser um fenômeno espiritual e religioso para se transformar num problema mecânico de funcionamento do corpo e, portanto, passível de prevenção e conquista. “Não se fala mais da extinção de uma pessoa, mas da destruição de uma quase máquina.  Há uma coisificação do ser humano. A morte começa a deixar de ser um fenômeno natural e torna-se um fracasso, um sinal de impotência ou imperícia, por isso devendo ser ocultada. O triunfo da medicalização é manter a doença e a morte na ignorância e no silêncio”. 

Por esse motivo, poucas vezes a morte ainda acontece entre mãos amigas, de familiares, como em séculos passados, sendo transferida hoje para o ambiente frio, asséptico e isolado de um hospital, por vezes em meio a fios e tubos de uma UTI, que possuem com certeza grande valor para a humanidade. Porém, o que queremos afirmar é que parece se estar terceirizando o cuidado das pessoas diante da morte e do morrer. Isso também se mostra nos ritos fúnebres, cada vez mais herméticos, breves e pasteurizados. 

 

Luto crônico

Tudo é controlado, não havendo espaço para sobressaltos ou manifestações de maiores emoções. As implicações de toda essa assepsia com a morte, que é uma perigosa forma de negação da própria morte, normalmente acabarão irrompendo em lutos crônicos e mal resolvidos. Emoções reprimidas, que não encontram espaços de enunciação, acabam sendo fonte geradora de inúmeras doenças de cunho psicossomático.


IHU On-Line - Qual a importância das religiões e da fé na elaboração da ideia de morte?

Thomas Heimann - Sabe-se que as religiões são elementos fundamentais nos processos de representação e elaboração das ideias sobre a morte. Conceitos como ressurreição, reencarnação, transmigração das almas, entre outros, além dos conceitos de salvação e condenação eternas, ligadas a arquétipos de céu e inferno, estão presentes em praticamente todas as religiões. A forma como cada religião constrói esses conceitos e os compartilha com seu corpo de fiéis determina, em grande parte, como cada indivíduo se relacionará com a morte, podendo trazer elementos positivos de consolo e esperança ou negativos como culpa e medo. 

Dados curiosos foram encontrados em diferentes pesquisas sobre o assunto. Algumas sociedades impregnadas de conceitos religiosos, nas quais existia a clara ideia de imortalidade, pareciam ter uma correlação direta com um aumento significativo no que tange ao temor pela morte, temor este que não era percebido em povos primitivos, que não tinham desenvolvido ideias muito elaboradas sobre a vida após a morte. Porém, Lester, após examinar dez estudos nesta área e verificar a existência de resultados discrepantes, postula que “a crença religiosa não afeta a intensidade do medo à morte, mas antes canaliza o medo para os problemas específicos que cada religião propõe”.  

Admite-se, portanto, de que uma espiritualidade ou fé norteadas por determinadas crenças religiosas que, por exemplo, enfatizem o pecado, o juízo e a condenação eternos, possam influenciar negativamente este indivíduo diante da morte e do morrer. Isso vai gerando nele sentimentos de culpa, temor, angústia e medo diante da morte. 

 

Salto na fé

Porém, é indiscutível que para indivíduos que possuem uma espiritualidade positiva, com a crença num Deus salvador e amoroso, a morte até pode passar a ser um ganho e não uma perda. Nesses casos, o indivíduo ultrapassa o limite humano da existência finita para ter um encontro com o infinito.  Porém, tal atitude não ocorreria com qualquer crente, mas somente com aqueles que fazem o salto na fé , ou seja, que depositam toda sua confiança no Ser Transcendente, mesmo que a sua  razão diga que é um absurdo fazer esse salto. Para o indivíduo de fé, morte é ganho, pois encontrará com a razão última do seu viver: a volta para o seu Criador, Preservador e Redentor, tal como propõem, por exemplo, as crenças cristãs.


IHU On-Line - Qual a função dos chamados rituais de passagem ou despedida dos mortos? Como o senhor observa esse momento em diferentes culturas?

Thomas Heimann - Vive-se hoje um paradoxo. Ao mesmo tempo que a sociedade moderna se prepara cada vez melhor para o enfrentamento material da morte através da contratação de seguros de vida e planos funerais, há uma crescente desumanização no tratamento com os enlutados. Isso é retratado não só pela falta de paciência social com as diferentes expressões do luto, como pelo apressamento e secularização dos ritos funerários. 

Antes tão importantes para o processo de elaboração do luto, os ritos fúnebres estão sendo esvaziados de sentido, perdendo sua função simbólica de ressignificação da experiência da morte. Paul e Grosser afirmam que “nada, na era moderna, veio substituir as formas tradicionais de luto. Nossas cerimônias abreviadas, muitas vezes escondidas com cuidado das crianças, não conferem uma compreensão empática nem proporcionam uma catarse para esta experiência”. 

A frieza, superficialidade e racionalidade tem tomado conta de muitos relacionamentos humanos, deixando cada vez menos espaço para a manifestação aberta e sincera dos sentimentos evocados pela morte. Num mundo hedonista o “chorar a morte de alguém” se tornou um incômodo social, quase uma doença contagiosa, que precisa ser evitada a qualquer custo. Como diz Ariès, a sociedade moderna “proíbe aos vivos de parecerem comovidos com a morte dos outros, não lhes permite nem chorar os que se vão, nem fingir chorá-los”. 

 

Armadura humana

O que talvez alguns não percebam é que, quanto mais se interdita o tema da morte no discurso do cotidiano, por temer o desconforto que o tema pode causar, tanto mais força e poder a morte acabará tendo sobre quem a reprime. A tentativa onipotente de negar a morte se configura numa forma equivocada de esconder a impotência, vulnerabilidade e fragilidade humanas. 


IHU On-Line - Como compreender o luto no processo de construção de uma experiência de morte? Em que medida a correria dos tempos contemporâneos abreviam essa experiência do luto?

Thomas Heimann - O luto é um sentimento natural decorrente de uma perda. Ele é imprescindível para o processo de superação de uma experiência de morte. Como dizem Walshe   e McGoldrick , “todas as perdas requerem um luto, que reconheça a desistência e transforme a experiência, para que possamos internalizar o que é essencial e seguir em frente” . A morte de uma pessoa significativa, portanto, gera um impacto que naturalmente causa desequilíbrio funcional no indivíduo e na família enlutada, exigindo uma reorganização individual e sistêmica que começa desde o dia da perda/morte e pode se estender por um longo prazo de tempo.

Importa ressaltar que o luto normal pode também vir acompanhado de uma depressão reativa ou exógena. No contexto da morte, ambos, luto e depressão, se tornam “um par quase indissociável”. Dessa forma, quanto maior o valor ou significado atribuído à pessoa que se perdeu, tanto maior a probabilidade desta perda vir acompanhada de um processo depressivo, que não será necessariamente patológico, mas uma reação natural à perda sofrida.

Com relação à abreviação do luto, é fato que vivemos um mundo neurótico, onde nos tornamos escravos do tempo. Aliados a um hedonismo — a cultura do prazer — está a neurose produtiva, que parece nos inibir para abandonarmos o nosso trabalho até mesmo para prestarmos solidariedade num velório ou enterro. Tudo é apressado, inclusive o tempo de vivenciar a dor da perda e do luto. Importa ressaltar que enlutados que inibem, abreviam, postergam ou negam seus sentimentos de dor e tristeza ficam mais fragilizados e têm uma grande probabilidade de desenvolver distúrbios de ordem psicossomática, que funcionam como válvula de escape das fortes emoções reprimidas. Para Stedeford , estes tipos de pesar ou luto podem ser fatores importantes para o surgimento de sintomas psiquiátricos, dentre os quais a depressão é a forma mais comum.  


IHU On-Line - O senhor já desenvolveu um trabalho junto a doentes terminais. Como essas pessoas e familiares elaboram a morte diante de um momento desses?

Thomas Heimann - Um diagnóstico de doença terminal, normalmente, é fonte geradora de muitas angústias existenciais, tanto para o paciente quanto para seus familiares. Há um estigma em torno da doença terminal, que leva muitas pessoas a vivenciarem esse diagnóstico como um atestado de óbito por antecipação. Cada paciente ou família atravessa esse “vale da sombra da morte” de modo singular, a partir de um conjunto de estratégias, ligadas às suas características de personalidade, suas crenças religiosas, seus valores pessoais, sua capacidade de resiliência, assim como às redes de apoio social (familiares, parentes, amigos, comunidade religiosa etc.). 

Porém, nesse processo de elaboração não há como deixar de citar as cinco fases que a renomada autora Elisabeth Kübler-Ross  identificou no tratamento com pacientes terminais (e que podem também ser percebidas em alguns familiares). 

São elas: a negação da doença e da possibilidade de morte iminente; a raiva contra tal diagnóstico, raiva que pode se voltar contra Deus, contra a equipe de saúde, contra sua família e contra si mesmo; a barganha, onde o indivíduo começa a negociar consigo mesmo e com Deus, dizendo que se tornará uma pessoa melhor se for curado; a depressão, momento crítico em que os pacientes se isolam num mundo interno e evidenciam sua impotência diante da sua finitude; e a aceitação, onde a realidade da doença e da morte são processadas de modo a não mais causar desespero, num atingimento de certa maturidade para o enfrentamento da morte. Esse modelo não é rígido nem sequencial, variando de indivíduo para indivíduo, mas retrata, de modo amplo e geral, como a morte é normalmente elaborada pelos pacientes terminais.


IHU On-Line - Qual o papel dos cuidadores, em casos de doentes em que é preconizado apenas o conforto, nessa constituição de uma narrativa de morte? Quais os efeitos de tantas experiências de morte diante desses profissionais – assim como em outros como médicos, enfermeiros, padres e sacerdotes?

Thomas Heimann - Há duas questões nessa pergunta. A primeira parte parece se remeter à questão dos cuidados paliativos, onde a palavra-chave é proporcionar dignidade e qualidade de vida, mesmo diante da sua terminalidade iminente. O movimento dos cuidados paliativos tem como eixo central uma humanização do processo de morrer, algo que precisa ser reconhecido como muito benéfico, pois quer oferecer conforto, calor e proteção, favorecendo uma sensação de segurança ao que está diante da morte. O conceito que transversaliza os cuidados paliativos é cuidar, com amor e compaixão, a pessoa na sua integralidade. 

 

Os cuidadores

A segunda seção da pergunta remete a uma preocupação com os cuidadores. A prática do cuidado a pacientes graves ou no limiar da morte remete muitos profissionais da saúde, religião e educação a um duro e diário contato com a realidade da dor e do sofrimento. Já foi dito que no meio científico-acadêmico, a morte tem sido tratada como uma evidência de fracasso, impotência e falta de competência, gerando nos profissionais do cuidado uma série de reações e comportamentos de defesa, no sentido de um afastamento dos aspectos emocionais que envolvem a morte e o morrer de seus pacientes.

Isso pode causar um embrutecimento das relações não só da equipe com seu paciente, mas consigo próprio, visto que tratar da morte do outro faz com que o indivíduo entre em contato com suas próprias angústias existenciais diante da sua própria morte ou das pessoas a quem ama. Portanto, ninguém passa incólume ao lidar cotidianamente com o sofrimento e a morte. Estas rápidas referências se inserem como pano de fundo sobre o qual poderão ser instauradas angústias, neuroses e sofrimentos dos que se tornam cuidadores de pacientes no limiar da morte, como estresse, fadiga por compaixão e burnout . Mas esse é um tema que mereceria uma entrevista à parte, pela complexidade que o envolve.


IHU On-Line - Que relação é possível estabelecer entre as ideias de culpa e morte?

Thomas Heimann - É possível estabelecermos diferentes relações entre os dois conceitos. Numa perspectiva cultural-religiosa, a partir do viés judaico-cristão, culpa e morte se mostram como fenômenos indissociáveis no seu nascedouro. O mandamento divino descrito no Livro de Gênesis, de não comer “da árvore que está no meio do jardim”, já trazia consigo o castigo pela eventual desobediência: “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17). A consequência dessa primeira culpa humana confirma-se no anúncio de Deus após a queda: “Porque tu és pó, e ao pó tornarás” (Gn 3.3). O resultado da culpa é reafirmado pelo apóstolo Paulo na sua carta aos Romanos: “O salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). Dessa maneira, numa leitura psicoteológica judaico-cristã dessa primeira experiência humana com a culpa, poderíamos levantar a hipótese de que, sempre que a morte se torna uma sombra ameaçadora ou uma realidade em nossa vida, ela poderia evocar, pelo menos arquetipicamente, a culpa original humana, herança compulsória atribuída aos que vivem sob essa perspectiva cosmoteológica. 

Já pelo viés da psicologia, o fundador da Psicanálise, Sigmund Freud, elabora uma teoria sobre a cultura que também é demarcada pela relação íntima entre morte e culpa, numa ordem inversa à da teologia cristã, ou seja, a morte foi geradora da culpa e não a culpa geradora da morte. Em sua obra Totem e Tabu (1912-13), Freud defende a ideia de que a cultura está fundada na culpa, a partir da descrição do mito do parricídio. A culpa decorrente do assassinato do pai e fundadora da sociedade marca o psiquismo humano de forma duradoura e indelével. Freud sugere que o sentimento de culpa está cravado na carne humana e destinado a orientar os seus caminhos psíquicos seguintes.  

 

Viktor Frankl

Já numa outra perspectiva psicológica, essa de cunho mais existencial, o renomado logoterapeuta Viktor Frankl  faz uma relação direta entre os conceitos de culpa e morte. Na realidade, para Frankl, há três conceitos profundamente imbricados, no que ele denomina de tríade trágica da existência humana, que é formada justamente pelo entrelaçamento da dor, da culpa e da morte, conforme o autor descreve em sua obra Psicoterapia e sentido da vida. Para Frankl, essas são as três principais faces aparentemente negativas da existência humana, mas que podem se converter em algo positivo, na medida em que o indivíduo consiga enfrentá-las com um comportamento e atitude corretos.


IHU On-Line – Como o senhor, particularmente, define a morte?

Thomas Heimann - Múltiplas respostas são possíveis, mas como já dizia Heidegger : “Ninguém pode sentir por mim a minha dor, nem ninguém pode morrer por mim a minha morte”.  Mesmo que a morte atinja a todos, indistintamente, sendo um evento universal, o enfrentamento ou a própria passagem pela morte é um evento pessoal, singular, particular, privado e intransferível. 

Talvez essa seja uma definição impossível de ser feita. Cada um, a partir de suas crenças pessoais e de suas próprias experiências, vai definir o sentido e o significado dela em sua vida. Porém, numa perspectiva de testemunho da fé cristã, poderíamos resumir a definição da morte conforme expressado pelo apóstolo Paulo em Romanos 6.23, onde ele novamente coloca a dialética da morte e da vida em perspectiva, dizendo: “Pois o salário do pecado é a morte, mas o presente gratuito de Deus é a vida eterna, que temos em união com Cristo Jesus, o nosso Senhor”. Vida e morte, novamente num encontro dialógico.


IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Thomas Heimann - André Comte-Sponville  afirma: “Se queres amar a vida, ...se queres apreciá-la lucidamente, não te esqueças de que morrer faz parte dela. Aceitar a morte — a sua, a dos próximos — é a única maneira de ser fiel à vida até o fim”.  A reflexão sobre a morte possibilita ao ser humano descortinar caminhos para uma vida mais autêntica, na busca da sabedoria do bem viver. Como dizia Rubem Alves : “Que sabedoria nos ensina a morte? É simples. Ela só diz duas coisas. Primeiro, aponta-nos o crepúsculo, a chama da vela, o rio, e nos diz: Tempus fugit — o tempo passa e não há forma de segurá-lo. E, logo a seguir, conclui: Carpe diem — colha o dia como quem colhe um fruto delicioso, pois esse fruto é dádiva de Deus” (In: O médico, p.90).

Finalizo essa entrevista reiterando a ideia de que não há como embelezarmos a morte ou tirarmos dela o seu “aguilhão”. Mesmo a fé em Deus não elimina por completo a tristeza, angústia, medo e dor que sentimos diante da morte, seja da nossa própria ou de quem amamos. O próprio Jesus Cristo, em sua humanidade plena, além de chorar pela morte de seu amigo Lázaro, deu mostras de tais sentimentos ao afirmar, próximo de seu sofrer e morrer no Calvário: “Pai, se possível, afasta de mim esse cálice” (Mateus 26.39). Algumas horas depois, pregado na cruz, momentos antes de sua morte, Jesus clama ao Pai dizendo: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mateus 27.46). Aqui descortina-se, a partir do próprio Deus-homem, todo o temor, dúvida e desamparo que a morte evoca, mesmo estando ela sob a guarda do amor e da confiança em Deus. 

O verso do salmista no conhecido Salmo 23 é muito apropriado nesse contexto temático quando nos lembra: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo” (Salmo 23.4).

A presença de Deus no coração humano, que resgata no indivíduo a sua dimensão transcendente e renova a esperança numa vida que não acaba na morte física, além da promessa num possível reencontro nos céus com a pessoa falecida, notadamente são recursos terapêuticos promotores da resiliência, sendo fonte de coragem e consolo, mesmo no pior dos lutos. A perspectiva cristã, que tem na ressurreição um de seus pilares, abre uma perspectiva de continuidade da vida, mesmo diante da realidade terrena da morte.■

 

Leia Mais

- Os desafios nos cuidados dos doentes terminais. Entrevista com Thomas Heimann, publicada na revista IHU On-Line, número 121, de 01-11-2004.

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