Edição 208 | 11 Dezembro 2006

Comportamentos afetivo-sexuais dos jovens

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IHU Online

“Sociocultural e historicamente, exigir proteção sexual implica desconfiança”, constata a psicóloga Helen Gonçalves em entrevista por e-mail, exclusiva à IHU On-Line.

Graduada em Psicologia pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL), Gonçalves é mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sua tese leva o título Aproveitar a vida: um estudo antropológico sobre valores, juventudes e gravidez em uma cidade do interior. Autora do livro Peste branca: um estudo antropológico sobre a tuberculose. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2002, escreveu o artigo Juventude na era da Aids: entre o prazer e o risco, parte da coletânea organizada por Maria Isabel Mendes de Almeida e Fernanda Eugênio, intitulada Culturas juvenis: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. Confira, a seguir, a entrevista em que ela fala sobre a juventude e as doenças sexualmente transmissíveis, em especial a Aids.

IHU On-Line - O que a epidemia da Aids mudou no comportamento da juventude? Quais foram os impactos na sociedade?

Helen Gonçalves
- Ressalto que pensar na juventude como algo homogêneo é um problema, mas vamos tentar amenizar isso, falando de comportamentos afetivo-sexuais de homens e mulheres mais recorrentes, embora devêssemos falar deles considerando os distintos segmentos sociais. A Aids é um bom exemplo de que ter conhecimento pode não ser suficiente para alterar o comportamento; o prazer desconsidera perigosamente a possibilidade de vir junto o adoecimento. O que se observa no segmento jovem é que há uma maior aceitação da camisinha masculina como um método que protege não só das ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), mas também da gravidez (tão valorizada). Entretanto, isso não significa que eles usem para ambas. Em Pelotas, por exemplo, em 2004-5, quando jovens com 22 anos foram questionados sobre o uso de “condom” na sua primeira relação sexual, observou-se que cerca de 53% dos homens e 47% das mulheres afirmaram ter usado – isso ainda é muito pouco. O uso na última relação sexual não difere muito, 52% para homens e 37% para mulheres. Se pensarmos em impacto social, temos aqui uma necessidade maior de educação para saúde e uma postura menos inibida e machista dos pais para ensinar e alertar os filhos e filhas desde muito cedo, visto que a média de iniciação sexual no Brasil é de 14,5 entre os meninos e 15,5 anos entre as meninas.

Pontuando algumas mudanças, ter o “condom” (portá-lo na carteira, bolso ou bolsa) passa a demarcar o início da atividade sexual (ou pelo menos o desejo), quase como uma identidade de não ser mais criança e mostrar-se mais maduro neste aspecto. Isso é algo que só ocorreu pós-Aids. No que se refere às diferenças de gênero ainda temos um poder diferenciado na esfera sexual, com desvantagem para as mulheres. Elas são mais vulneráveis por várias razões. Uma delas é que as mulheres, especialmente as jovens, devem mostrar-se como “direitas”, não “galinhas”, o que significa ser ignorante e passiva sexualmente. Ainda se dá muito valor à virgindade vaginal – ao contrário dos homens, que, quanto mais “garanhões” são mais masculinos, viris. Portanto, se ela no início de uma relação propõe que ele use camisinha, pode ser considerada promíscua, não confiável e já experiente. Infelizmente, o preservativo, como destacado no livro, continua a ser uma experiência mais masculina do que feminina. Há muita vergonha entre os jovens para dialogar sobre proteção e sexo.

Assim sendo, essas representações impedem o uso continuado/regular do “condom” em todas as relações. Neste ponto, outro aspecto comprova a descontinuidade de uma proteção efetiva. Mesmo naqueles casos em que houve uso nas primeiras relações, quando ela passa a ser classificada como estável, há uma tendência ao abandono do uso regular, pois pode significar preocupações com possíveis infidelidades ou uma ofensa para a parceira. Sociocultural e historicamente exigir proteção sexual implica em desconfiança.

IHU On-Line - O que os jovens pensam sobre o uso de preservativo? Eles entendem a importância da prevenção?

Helen Gonçalves
- Em tese, os jovens sabem que devem se proteger. No entanto, na prática usar o “condom” ou a camisinha feminina não é uma questão tão simples. Uma parte dos motivos que levam à irregularidade ou não-uso foi mencionada na resposta anterior. Atualmente, persiste, em diferentes contextos sociais, a idéia de que o “condom” torna a relação sexual menos natural, isto é, tem que pensar em doença durante o envolvimento sexual, amoroso e/ou afetivo. Mas, se fosse só pensar seria mais fácil para a prevenção e controle das ISTs. No entanto, colocar em prática o que se sabe (que às vezes não é muito) é que passa a ser um problema. Ter que se proteger, agir, se impor e ter autonomia e liberdade para dizer não, quando um parceiro/a não quer se prevenir, requer uma postura que nem sempre condiz com a que socialmente é representada pela juventude. Uma representação social forte é a de que os jovens têm muitas relações efêmeras, pouco estáveis e desejos incontroláveis – a prática do ficar ajudou a manter e a incrementar esta imagem –, porém esse comportamento não é generalizável e deve ser desconstruído. Esse tipo de representação ajuda a perpetuar a “juventude” como transgressora e problemática, muito atrelada ainda aos aspectos teóricos psibiológicos e etários.

Mas não é raro ouvir: nem pensei em nada, ela não vai engravidar, ou mesmo, eu não tinha na hora e não ia deixar passar – em alguns contextos a prática e o aprendizado da sexualidade estão desvinculados do risco por estarem mais presentes os valores mais tradicionais de gênero, ou seja, a mulher se submete, e o homem deve provar sua virilidade, tem “necessidades” que devem ser satisfeitas sem perder a espontaneidade. A desigualdade das relações entre homens e mulheres ressalta as vulnerabilidades sociais e influenciam a prevenção.

Saber compartilhar a responsabilidade por sua saúde e pela do outro é uma questão que os jovens (e muitos adultos) têm que aprender. Há muitos preconceitos que é preciso experimentar e vencer. Independente da idade, o uso do preservativo implica negociação em algum nível. Portanto, esse pré-requisito pontua outras razões para o não-uso, como medo de parecer mais inexperiente ou desconfiado, perder o parceiro, parecer inseguro/a etc.

Sobre o que os jovens entendem por prevenção, primeiro devemos nos perguntar o que é entender? Se entender, é saber que a Aids é uma ameaça e que, para preveni-la, é melhor se proteger, a resposta é sim, eles entendem e não, eles não conseguem se prevenir 100%. O Brasil tem realidades juvenis bem distintas; o acesso e as barreiras para uma prevenção não são iguais em uma mesma sala de aula. Além disso, a escolaridade da mãe e do jovem tem se mostrado como um fator associado ao maior ou menor uso de preservativo. Os menos escolarizados desconhecem mais da transmissão e da prevenção do que os com maior graduação escolar, cuja mãe também tem mais anos de estudo. Em síntese, são muitos fatores que vão determinar quando, como e com quem o uso do preservativo é adequado.

IHU On-Line - Como a sexualidade é tratada nas famílias de hoje? O que está acontecendo? Existe mais diálogo entre pais e filhos, ou não?

Helen Gonçalves
- A sexualidade é um assunto que mobiliza as famílias. Como as classificações das sexualidades em grupos – feminina, masculina, infantil, adolescente – são advindas dos saberes biomédicos, psicanalíticos e sociais, é de esperar-se que a sexualidade se constitua como um campo a ser controlado e categorizado em nome da “saúde”. A primeira transa, as experimentações com diferentes parceiros/as são eventos demarcadores da transição de uma fase a outra da vida, assim como o ingresso na universidade, a licença para dirigir, a gravidez, a inclusão no serviço militar, a procura e a admissão no mercado de trabalho, entre outros. Muitos desses eventos ocorrem na juventude, quando os jovens percebem na prática as diferenças socioculturais de gênero, quando elas tornam-se mais explícitas no jogo de sedução e poder entre os sexos. Essas diferenças não são construídas e ensinadas pelas famílias desde tenra idade, portanto, a defesa da desigualdade entre homens e mulheres demonstra que as famílias (não todas) conservam muito dos seus valores sociais.

No estudo realizado em três capitais do país com jovens de 18-24 anos, demonstrou-se que a família, especialmente na figura da mãe, e a escola são as fontes de informação mais mencionadas para o sexo. As jovens, cujas mães conversaram com elas na fase de socialização para a sexualidade, tendem a conversar mais com o parceiro sobre contracepção/prevenção. No entanto, outro estudo encontrou que, particularmente no universo masculino, a importância da família pode ser sentida mesmo nos poucos casos de rapazes que referiram ter recebido do pai as primeiras informações sobre métodos anticoncepcionais. Nestes, o uso do preservativo na primeira relação sexual foi maior. Pai e mãe são importantes fontes de esclarecimento, desde que se dispam de vários preconceitos para orientar e esclarecer seus filhos. É importante que tenha se criado um espaço possível de diálogo, pena que ele tenha se incrementado pela preocupação com a Aids ou com a gravidez.

Todavia, infelizmente, ainda é recorrente o medo de “tocar no assunto”, pois pode despertar desejo ou maior curiosidade, isto é, estimular quem não devia ser estimulado. Onde é que vamos chegar é o que muitos pais e/ou outros familiares se perguntam quando vêm novos hábitos e costumes sociais e morais se firmando. Talvez seja este um dos motivos que fazem os jovens mais conservadores serem quase esquecidos nos estudos. Eles são, porém, exaltados no interior das famílias, visto que pouca ou nenhuma provocação fazem aos mecanismos sociais mais rígidos no sentido de dar continuidade a eles (‘é um bom moço, sempre ajudou os pais’). No entanto, contrapõem-se a outros comportamentos, mais modernos, dando destaque aos grupos antagônicos, às normas sociais mais estreitas. Quando os meios de comunicação abrem espaço para a juventude como um “grupo” são os comportamentos que ferem a moral religiosa familiar, como os sexuais, que geralmente tomam a frente e se indivíduos como dos serviços que buscam apoiá-los.

IHU On-Line - A família deixou de ser o principal campo de informação dos jovens de hoje? Quem eles procuram para se informar sobre as DSTs?

Helen Gonçalves
- Os jovens conversam com amigos e colegas de escola, aprendem nas aulas de ciências, na televisão (propagandas, especialmente na época do carnaval), nas revistas/jornais e internet. Acredito que a família seja uma fonte importante, mas, muitas vezes, ela serve apenas para esclarecimento de aspectos específicos e não é a fonte principal para a educação sexual, daí aprender em conversas com amigos/as e não ser tão eficiente.

O conhecimento sobre como evitar outras DSTs (cancro mole, condiloma acumulado ou HPV, gonorréia e clamídia, herpes, linfogranuloma venéreo, sífilis, tricomoníase) é reduzido. Não só as famílias, mas também as instituições de saúde têm relegado a outro plano, nas suas campanhas, que além do uso do “condom” em todas as relações sexuais vaginais (e/ou orais e anais), é necessário, para algumas doenças, a higienização dos órgãos genitais após o ato sexual e o não-compartilhamento de objetos íntimos. As campanhas mais populares e a mídia, em geral, dão pouco espaço para esta gama de doenças, como se não existissem ou estivessem sob controle. O foco está na Aids que mata e que vende notícia.

Historicamente, a sexualidade feminina tem sido mais carregada de tabus, deveres e avaliações. De uma forma ou de outra, a identidade feminina esteve mais ligada à maternidade, o que desvincula o sexo nas mulheres da busca do prazer e o une a reprodução, ao contrário dos homens. Especialmente em uma cultura machista, as mulheres devem ser mais cuidadosas, e isso seria importante ressaltar a todos que desejam que suas próximas gerações sejam mais saudáveis e vivam sua sexualidade de outra maneira. O ambiente familiar é um locus fundamental para esta mudança.

IHU On-Line - A mídia tem um papel fundamental na construção social da Aids, quais as conseqüências disso?

Helen Gonçalves
- A mídia foi quem informou e caracterizou os movimentos da epidemia, fez a Aids estar no cotidiano das pessoas e denotou sentidos para a doença no decorrer destes anos positiva e negativamente. Um exemplo da força dessa divulgação é o uso fora do meio biomédico da expressão “grupo de risco” para contrair e disseminar.

As conseqüências do poder do discurso midiático têm ramificações em diversas áreas do comportamento e das percepções das pessoas sobre a Aids. Seria complexo falar sobre todas ou mesmo saber quais foram elas e quais ainda são construídas. Talvez as mais importantes e elogiáveis implicações da divulgação e diálogo sobre a Aids, a meu ver, sejam a necessidade da solidariedade e a de fazer valer os direitos dos adoecidos. O tratamento da doença e o programa desenvolvido no Brasil são exemplos deste processo, exigindo do orçamento da União uma fatia de recursos para a saúde dos infectados.
Apesar dos espaços adquiridos na mídia, os desafios ainda persistem, tais como a conscientização da prática do sexo seguro e da adesão à medicação (de portadores) ou aos serviços de saúde. E o maior dele, a meu ver, segue sendo o estabelecimento de relações menos desiguais entre homens e mulheres, homens e homens, mulheres e mulheres em qualquer idade e condição social, incluindo aqui as atuações dos serviços de saúde. A dimensão cultural e moral do sexo é muito forte e, geralmente, acusatória, denegrindo e dificultando todo o processo para a “saúde”, desde a prevenção à transmissão e tratamento.

IHU On-Line - Quais são as estratégias acionadas pelos jovens com relação a Aids? Quais os limites e desafios?

Helen Gonçalves
- Os jovens representam uma parcela da população que tem crescido nos números de infectados. No mundo inteiro, 30% de todas as pessoas portadoras de HIV/AIDS têm entre 15 e 24 anos. Segundo a Unadis (Unione Nazionale dei Dirigenti dello Stato aderente alla CIDA), um terço das pessoas que estão infectadas na América Latina são brasileiras. Com relação à população do país, a população jovem (15-24 anos) no Brasil tem representado e variado entre 19-21% do total. Isso por si só é um grande desafio. Soma-se a isso que jovens e adultos estão em interação e que a Aids não se resume à transmissão sexual, embora eu esteja mais enfocada aqui neste tipo de infecção.

Sobre o contato sexual, a estratégia juvenil mais freqüente e “arriscada”, ante a ameaça da Aids, é a de estabelecer uma classificação da biografia amorosa e da aparência da pessoa com quem pretende ou vai se relacionar mais intimamente. A escolha pelo uso do “condom” durante a atividade sexual, comumente, predomina nos casos em que a pessoa é desconhecida, é um profissional do sexo, ou o local onde se conheceram leva à desconfiança. O preocupante é que essa prevenção passa por uma análise situacional e relacional, muitas vezes envolvendo o que o grupo de amigos pensa sobre determinada pessoa. Isto significa, igualmente, que nem sempre aquele que foi avaliado como do “grupo de risco” permanece nele, pode, com o tempo, mudar sem a confirmação de que não está infectado, pois a idéia de que o risco pode estar sempre muito distante, só com aqueles que permanecem desconhecidos ainda prevalece.

Os limites e os desafios para mudar tal quadro não se resumem na atuação dos jovens apenas. A concepção de sexualidade é restrita nas políticas públicas e está calcada na mudança do comportamento individual, desconsiderando que os comportamentos são socialmente apreendidos e construídos e que as diferenças de gênero orientam decisões em todos os momentos.
Nossas campanhas, ainda que criativas, não dão destaque suficiente para a assimetria de gênero e nem do poder que as jovens (e as adultas) devem ter na suas relações sem prejuízo moral para sua imagem. Durante o trabalho de pesquisa, conversando com jovens, muitas moças falam da vergonha de buscar “condom” no serviço de saúde, por duas razões basicamente: primeiro, porque os funcionários das Unidades Básicas de Saúde (postos) conhecem sua família e vão “fazer fofoca” e segundo, porque não querem ouvir piadas e ver expressões de deboche ao pedirem camisinha. Ao deixar para o namorado ou parceiro a posse do “condom” a decisão também passa a ser dele e tornam-se extremamente vulneráveis.

Entretanto, este medo ou reserva das moças em irem solicitar camisinha não está fora do contexto da saúde - há desarticulação entre o programa de saúde da mulher com o uso do “condom”. O fato de os homens não possuírem um programa específico na área da saúde sexual, nos serviços de saúde é um ótimo indicativo do tipo de responsabilidade atribuída aos sexos e gêneros. Logo, entre outras possibilidades, as estratégias de prevenção da infecção pelo HIV devem propor reforço da auto-estima, menor assimetria e empoderamento dos mais vulneráveis socialmente.

Outro desafio nacional é trabalhar as quatro principais características da infecção atualmente: interiorização, heterossexualização, pauperização e feminilização. Os jovens neste quadro são fundamentais e seriam ótimos agentes de transformação social, mas para isso teríamos que rever nossas concepções e representações sobre o que é ser jovem.   

 

 

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