Edição 495 | 17 Outubro 2016

A era da agonística e o capitalismo vigilante

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Ricardo Machado | Edição: Márcia Junges

Figura do funcionário que coloca em marcha a máquina da vigilância é fundamental para gerir os sistemas de dados, observa Guilherme Castelo Branco

As categorias clássicas do soberano e da soberania já não mais existem. São figuras de um outro tempo, do passado. E “pensar a política através dessas figuras é uma caricatura da mídia e dos velhos e ultrapassados partidos políticos. Agora somente existem poderes e resistências, gestores e manifestantes, controladores e insubmissos. Nossa era é a da agonística, é a da luta incessante para se respirar o ar da liberdade”, pontua Guilherme Castelo Branco em entrevista por e-mail à IHU On-Line. E acrescenta: “No fundo de todo nosso mundo democrático sempre está presente a ameaça de que os direitos podem ser suspensos e que as garantias podem ser deixadas de lado. Toda crise pode ser motivo para a perda das condições de normalidade jurídico-política”.

O gerenciamento da vida é feito a distância, gestionado pela ordem burocrática “através de sistemas de dados que coordenam e detêm informações sobre nossas performances e nossos movimentos, do trabalho, ao uso das operações bancárias, ao uso da internet e do acesso às redes sociais, até mesmo do uso do cartão de crédito”. Esses bancos de dados são controlados não por altos figurões da política, mas por funcionários da burocracia, aqueles ilustres desconhecidos que mantêm em marcha a máquina da vigilância. 

Guilherme Castelo Branco é graduado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, onde também realizou doutorado em Comunicação. Atualmente é professor de Filosofia da UFRJ trabalhando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia. É líder do Laboratório de Filosofia Contemporânea da UFRJ. Em 2015 publicou dois livros: Michel Foucault. Filosofia e Biopolítica (Rio de Janeiro: Editora Autêntica, 2015) e Clássicos e Contemporâneos em Filosofia Política: de Maquiavel a Antonio Negri (Rio de Janeiro: Relicário Edições, 2015).

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O século 21 nos tornou mais livres ou mais vigiados?

Guilherme Castelo Branco - Desde a implantação de um sistema de gestão das pessoas, que se faz por funcionários, burocratas e controladores, em consolidação a partir do final do século XIX, vivemos em sociedades que, em nome do controle dos gastos e do bem-estar coletivo, buscam fazer com que as pessoas acreditem que estão mais seguras ao estarem mais controladas. A ordem burocrática que nos gestiona e supervisiona é feita a distância, através de sistemas de dados que coordenam e detêm informações sobre nossas performances e nossos movimentos, do trabalho, ao uso das operações bancárias, ao uso da internet e do acesso às redes sociais, até mesmo do uso do cartão de crédito.


IHU On-Line - Como a vigilância se constitui em um modo de governamentalidade?

Guilherme Castelo Branco - O governo, na Modernidade, é feito em nome da boa administração das condições econômicas daqueles que estão adequados e subordinados aos princípios da vida idealizada pelos poderes hegemônicos e pelas próprias pessoas que admitem e usufruem do mundo entreaberto pelos vários tipos de liberalismo e neoliberalismo. Há, todavia, os excluídos.


IHU On-Line - De que modo a vigilância impacta na política?

Guilherme Castelo Branco - A vigilância não é o monitoramento do movimento das pessoas nos espaços públicos. Fazer vídeos das movimentações das pessoas é apenas fatia ínfima do controle social. A gestão da vida da população é feita por inumeráveis saberes e instituições que entram na vida íntima das famílias e das pessoas, através de obtenção de informações dadas por educadores, escolas, psicólogos, médicos, dentistas, advogados. Todo este conjunto de informações está cada vez mais concentrado em bancos de dados a serviço dos Estados e de seus dirigentes, que não são os grandes nomes da política, mas, isto sim, os funcionários anônimos e desconhecidos que fazem a máquina burocrática seguir adiante.


IHU On-Line - Uma das principais justificativas a uma espécie de “Estado de vigilância” diz respeito a certa necessidade de segurança, não somente social, mas biopolítica (o controle e vacinação parece ser um caso positivo). No entanto, como transitar nesse tênue limite entre seguridade e estado de exceção?

Guilherme Castelo Branco - Não existe estado de direito que não tenha previsto o estado de sítio e o estado de exceção. Está em toda Constituição, em todo o mundo. O Brasil também tem sua versão do estado de exceção. No fundo de todo nosso mundo democrático sempre está presente a ameaça de que os direitos podem ser suspensos e que as garantias podem ser deixadas de lado. Toda crise pode ser motivo para a perda das condições de normalidade jurídico-política.


IHU On-Line - Parece haver um paradoxo: de um lado, há cada vez mais controle, biométrico inclusive, por parte do Estado; de outro, cada vez menos controle da sociedade civil sobre o Estado. O senhor concorda? Por que isso ocorre?

Guilherme Castelo Branco - No mundo da governamentalidade existem instâncias sociais que não se ajustam mais aos processos de gestão biopolítica. Talvez o que chamamos de sociedade civil seja uma delas.


IHU On-Line - As grandes corporações mundiais que integram a Gafam (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft) tornaram-se ainda mais gigantes devido ao trabalho de vigilância dos algoritmos. Para além da questão puramente tecnológica, como o capitalismo contemporâneo se tornou dependente da vigilância?

Guilherme Castelo Branco - O capitalismo é a própria vigilância. Dinheiro, celular, internet, guardas e gerentes, tudo faz do cliente o seu serviçal, não é? Tudo está facilitado, controlado, documentado, e pode ser posto à disposição da máquina capitalista. O consumidor é marionete do sistema financeiro. O controle, hoje, é significativo, salvo o sonho, os amores, a criação, a imaginação indomável, as paixões incontroláveis etc., que não podem estar nem entrar na contabilidade praticada pelas empresas e pela estatística.


IHU On-Line - De que forma a categoria de liberdade é atualizada na contemporaneidade, sobretudo em contextos de constante vigilância?

Guilherme Castelo Branco - O que é livre escapa, desliza, não se revela. Liberdade e estratégia não se excluem. A liberdade não pede respeito ou direito, conquista direitos e se impõe. Depois do fascismo e da manipulação midiática das populações, depois dos campos de concentração, sob um mundo de controle estadunidense, o campo de luta toma nova roupagem. De fato, a força da liberdade é e tem que ser selvagem.


IHU On-Line - A liberdade e a vigilância do soberano continuam sendo um dos temas mais sensíveis à filosofia política? 

Guilherme Castelo Branco - O soberano e a soberania não existem mais. São figuras do passado, e pensar a política através dessas figuras é uma caricatura da mídia e dos velhos e ultrapassados partidos políticos. Agora somente existem poderes e resistências, gestores e manifestantes, controladores e insubmissos. Nossa era é a da agonística, é a da luta incessante para se respirar o ar da liberdade. Não são mais os votos, mas sobretudo as manifestações que vão modificar a vida social e política. 


IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Guilherme Castelo Branco - Defendamos a vida, nosso mais precioso bem, defendamos a biosfera, cada vez mais exposta aos malefícios causados por aqueles que querem tanto e nada sabem. ■

 

Leia mais

- A loucura como produção e construção sociais. Entrevista com Guilherme Castelo Branco. Revista IHU On-Line, edição 364, 6-01-2011. 

- O mundo para além da casca da noz. Entrevista com Guilherme Castelo Branco. Revista IHU On-Line, edição 470, 17-8-2015.

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