Edição 494 | 03 Outubro 2016

“Empoderamento” e idealização do Judiciário e o descrédito da representação política

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor dos Santos | Edição Márcia Junges

Espaço representativo democrático é esvaziado por discurso midiático movido a escândalos, disseminando uma ideia de que esse sistema não consegue resolver conflitos sociais e buscar soluções coletivas, pontua Fabiano Engelmann

Por um lado, “os próprios atores políticos, ao recorrerem instrumentalmente às instituições judiciais como estratégia política”, conferem poderes aumentados ao Judiciário, reflete Fabiano Engelmann na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Sob outro aspecto, ocorre ainda um empoderamento simbólico, com uma “campanha diuturna da grande mídia contra os partidos políticos, a equivalência da prática política à corrupção e a heroicização de uma instituição e de seus agentes que seria capaz de oferecer uma solução ‘fora da política’”.

Para ele, “temos uma cultura autoritária brasileira onde se recorreu, ao longo da história, a soluções ‘fora da democracia’ para as crises políticas. Um Executivo forte, ou ancorado em regimes de força, com grande poder de agenda política e um Legislativo fundado predominantemente na mediação de interesses locais baseados em redes de clientela.” E acrescenta: “Nessa configuração surgiu o Poder Judiciário, que foi adquirindo maior independência a partir da década de 1930 com a profissionalização das carreiras judiciais e um maior distanciamento das magistraturas de base da prática política.”

Fabiano Engelmann é graduado em Ciências Sociais e Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde cursou mestrado e doutorado em Ciência Política com a dissertação A formação da elite jurídica no Rio Grande do Sul e a tese Diversificação do espaço jurídico e lutas pela definição do direito no Rio Grande do Sul. Na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS, França, realizou doutorado em Ciências Sociais com a tese La formation des juristes dans le monde international et la recomposition du champ juridique au Brésil. É professor no Departamento de Ciência Política da UFRGS e autor do livro Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2006). 


Confira a entrevista.


IHU On-Line - É possível afirmar que “há política no âmbito do Judiciário ”? Por quê? E que política é essa?

Fabiano Engelmann - Sim, a política sempre esteve presente no âmbito do Judiciário, assim como no conjunto das instituições judiciais (ministério público, procuradorias, defensorias etc.), tanto internamente, quando se trata da sua hierarquização, das escolhas sobre quem ocupará cargos de direção e representação da instituição, quanto nas indicações para a composição dos tribunais superiores. Da mesma forma, na relação do Judiciário enquanto poder de Estado com outros poderes. Com o Executivo, por exemplo, quando ocorrem as negociações para a definição de seu orçamento, ou com o Legislativo, em assuntos que respeitem a aprovação de leis ou projetos de interesse das corporações de juízes, ou do Judiciário enquanto Instituição. As relações e alinhamentos políticos ocorrem como em qualquer outro poder de Estado ou Instituição. A diferença é que se dão em bases mais dissimuladas, pois, mesmo parecendo algo contraditório, o pressuposto da legitimidade pública das instituições judiciais é dissimular a sua natureza política apresentando-se como um “poder neutro”.


IHU On-Line - Que relações são possíveis estabelecer entre política, Direito, Judiciário e poder? 

Fabiano Engelmann - As relações são muito estreitas. Tradicionalmente no mundo ocidental, os juristas sempre ocuparam lugar no âmbito do poder. O direito funciona como discurso performativo das instituições, como certificador do poder político dos governantes. Mesmo os regimes autoritários recorrem aos juristas e ao direito para legitimar-se. Doutrinariamente, nos regimes democráticos o Judiciário serviria como um poder contramajoritário, para controlar a legalidade dos atos dos governantes, frear abusos, proteger os cidadãos contra o arbítrio. Para cumprir essa função de poder contramajoritário, o Judiciário e seus agentes necessitam de independência institucional e funcional em relação aos governantes. 

Em termos concretos, esse modelo que contempla todo um processo de incremento institucional, associado a diversos fatores históricos e políticos mais específicos em cada país, pode gerar corporações judiciais poderosas que capturam as instituições judiciais. Da mesma forma, pode multiplicar os usos e a mobilização do espaço judicial por diversos grupos políticos em função de suas estratégias de poder. Por consequência, podemos ter configurações que têm pouca relação com as “finalidades doutrinárias” da independência do Judiciário no regime democrático. 


IHU On-Line - Como compreende a ideia de judicialização da política? Em que medida é possível afirmar que o Judiciário acaba ocupando espaços deixados vagos pela inoperância e omissão dos Poderes Legislativo e Executivo, levando diversas instâncias da vida para o âmbito jurídico?

Fabiano Engelmann - A ideia mais geral da “judicialização da política” vem de um trabalho dos americanos Neal Tate  e Torbjorn Vallinder , The global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics. In: ______ (Orgs.). The global expansion of Judicial Power (New York: New York University Press, 1995). Esses autores mencionavam — a partir da leitura de casos comparativos da atuação do Judiciário em regimes democráticos — que haveria uma delegação às cortes superiores de “assuntos políticos problemáticos” (envolvendo questões que envolvem dilemas morais como o direito ao aborto, por exemplo), que não interessariam ao Legislativo e ao Executivo resolver. Da mesma forma, o sistema partidário estaria perdendo a capacidade de canalizar determinadas demandas, em detrimento das instâncias judiciais. Então, nessa perspectiva, a “judicialização da política” seria um fenômeno negativo para o regime democrático, pois implicaria uma crescente deslegitimação de outros atores políticos.

Entretanto, houve também uma série de trabalhos muito influenciados pela noção de esfera pública de Habermas  que apontaram em um sentido um pouco diferente. Chamaram a atenção de que grupos políticos, grupos de interesse e movimentos sociais mobilizavam o Judiciário estrategicamente como arena de luta política. Nessa linha, o Judiciário, o espaço judicial, em sentido largo, era permeado por essas demandas coletivas, configurando-se como “mais um espaço político” em conjunto com os partidos políticos e arenas legislativas. Em síntese, essa noção de “judicialização da política” é muito controversa nas ciências sociais e na ciência política, pois é importante sempre ter em conta as duas dimensões na análise: o ativismo dos juízes nas respostas a demandas, avançando ou não na definição de políticas ou extrapolando a “técnica”. E, ao mesmo tempo, ter presente quais as estratégias, nos cursos das batalhas políticas, de quem mobiliza e por que mobiliza o Judiciário. Em muitos casos são os próprios partidos e suas lideranças que estão “judicializando” questões, fazendo um uso instrumental deste espaço e, por consequência, alimentando a “judicialização da política”.


IHU On-Line - Em geral, nas pesquisas de opinião, o Judiciário/Ministério Público gozam sempre de prestígio popular. Como compreender esse grau de confiança das pessoas “na Justiça”? Em que medida isso coloca o Judiciário como um superpoder? Quais os riscos dessa concepção para a próxima sociedade?

Fabiano Engelmann - Essa questão decorre da anterior. Quem “empodera” o Judiciário? De um lado, os próprios atores políticos, ao recorrerem instrumentalmente às instituições judiciais como estratégia política. Mas há também um empoderamento simbólico, ou seja, a campanha diuturna da grande mídia contra os partidos políticos, a equivalência da prática política à corrupção e a heroicização de uma instituição e de seus agentes que seria capaz de oferecer uma solução “fora da política”. 

Não vemos na mídia matérias mais aprofundadas sobre o nepotismo ou os casos de corrupção no Judiciário, ou matérias sistemáticas sobre desvios de conduta de magistrados ou outros agentes. Se elas são noticiadas, não se comparam em volume ao massacre que sofrem determinados grupos políticos. Em alguma medida, todo o espaço da representação política é afetado com a produção de escândalos político-midiáticos cotidianos que contribuem para um disseminado (des)crédito dos políticos e, em última instância, da própria ideia de representação política e da democracia como método de resolução dos conflitos sociais e da busca por soluções coletivas. Então esses fatores repercutem nas pesquisas de opinião, contribuindo, em algumas conjunturas, para uma percepção idealizada do Judiciário em relação aos atores políticos.


IHU On-Line - O que, numa perspectiva histórica, a constituição dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário brasileiros revela sobre as elites nacionais?

Fabiano Engelmann - Temos uma cultura autoritária brasileira onde se recorreu, ao longo da história, a soluções “fora da democracia” para as crises políticas. Um Executivo forte, ou ancorado em regimes de força, com grande poder de agenda política e um Legislativo fundado predominantemente na mediação de interesses locais baseados em redes de clientela. Nessa configuração surgiu o Poder Judiciário, que foi adquirindo maior independência a partir da década de 1930 com a profissionalização das carreiras judiciais e um maior distanciamento das magistraturas de base da prática política. 

Entretanto, o Judiciário foi pautado significativamente por uma cultura jurídica que remete ao velho bacharelismo imperial. Uma cultura retórica, burocrática e que tem dificuldade de se subordinar a uma lógica de eficiência e celeridade na prestação jurisdicional e no cumprimento mais estrito da sua função social. Paradoxalmente, a cultura do bacharelismo perdeu espaço nas arenas do Poder Executivo e ancorou-se na construção de um Poder Judiciário independente, mas permeado pelo corporativismo. 


IHU On-Line - A partir dos dados elencados até agora pelo seu atual projeto de pesquisa, como analisa as Instituições Judiciais e Combate à Corrupção no Brasil pós-redemocratização?

Fabiano Engelmann - A pesquisa iniciou este ano como uma tentativa de compreender mais amplamente o reposicionamento das instituições judiciais no espaço do poder político brasileiro. Um dos primeiros resultados que se pode verificar é a circulação de agentes do Ministério Público e do Judiciário em cursos, eventos e redes temáticas que têm por foco a promoção do discurso do “combate à corrupção” e de modelos de operações e investigação. Tanto promovidos no quadro de associações corporativas, quanto no âmbito de convênios mais específicos interinstituições. Nesse espaço da circulação de ideias e doutrinas, destaca-se também o adensamento de relações entre agentes envolvidos diretamente na coordenação das operações e combate à corrupção com agências e think thanks internacionais promotoras dos modelos do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional - FMI de difusão do ideário do “rule of Law”. 

Esse ideário prevê um modelo de Judiciário fortemente articulado ao espaço das trocas econômicas internacionais no sentido de garantir a ordem social e econômica internamente. Isso em muitos casos, na América Latina em especial, tensiona uma ideia de “Estado de Direito” ancorado em instituições autônomas e com agentes com forte poder com a ideia de regimes políticos democráticos que promovem programas sociais e muitas vezes contrariam interesses econômicos poderosos. Claro que isso é apenas uma parte de um fenômeno muito mais complexo que se coaduna com outras dimensões, como por exemplo, a configuração de modelos de “excelência profissional” difundidos entre os magistrados, promotores, delegados etc. que aproximam as carreiras a partir da ideia de uma posição de “agente político” legitimada a partir da aprovação em um concurso. Tais elementos interagindo com fatores peculiares à história política brasileira favorecem o corporativismo e o surgimento de uma cultura autoritária e voluntarista entre os agentes judiciais de agir em nome dos “interesses gerais” ou do “povo”.


IHU On-Line - Como a Operação Lava Jato  se inscreve nesse contexto histórico de combate à corrupção no Brasil pós-redemocratização? Que avanços e que fragilidades emergem a partir da Operação?

Fabiano Engelmann - Nos últimos vinte anos ocorreram diversas operações policiais de combate à corrupção, em que se pode destacar, além da “Lava Jato”, a Satiagraha , por exemplo. Também houve iniciativas do Ministério Público Federal em punir políticos e ministros acusados de corrupção. Essas operações resultam do fenômeno de autonomização e crescimento tanto dos marcos legais, quanto do incremento de recursos institucionais de diversos organismos de controle, tanto Judiciário e MP, quanto burocracias como a Receita Federal, Controladoria Geral da União - CGU, Tribunal de Contas da União - TCU etc. Adiciona-se a esses fatores o  recrutamento de novas gerações de agentes afinados com versão punitiva do Rule of law em relação à política e a ampla cobertura midiática, bem como o crescimento no Brasil e América Latina de movimentos integristas, pela “moralização da política”. 

A especificidade da Operação Lava Jato é que ela se voltou especificamente contra um partido político e, a partir de uma forte articulação com a grande mídia, foi instrumentalizada para seletivamente aniquilar simbolicamente dirigentes partidários e uma organização política. Isso fica bastante claro nos vazamentos de partes de depoimentos, peças processuais, assim como no atropelo de garantias individuais com a decretação de prisões muito antes de apurações mais detalhadas. Esse modelo de operação e convergência mídia-agentes judiciais é inclusive propagado pelos líderes dessas operações em posições publicadas em artigos na imprensa, palestras ou nas entrevistas convocadas para divulgar as operações. 

A grande lição dessa operação é que, se de um lado, o combate à corrupção avançou no Brasil a partir da consolidação da independência das instituições judiciais, do incremento de recursos e autonomia da política federal patrocinada pelos últimos governos refletindo um importante avanço nos modelos de accountability, por outro lado revelou que essas operações podem ser instrumentalizadas por determinadas forças políticas. Podem, também, ser capturadas por uma lógica corporativa presente entre alguns agentes judiciais, portanto, precisam ser repensadas no que concerne ao seu controle.


IHU On-Line - Como analisa as inúmeras comparações que se faz entre a Lava Jato e a operação italiana Mãos Limpas ? É possível afirmar que há um limite, um tempo de vida para ações como essas de combate à corrupção?

Fabiano Engelmann - Para além da operação Mãos Limpas na Itália, tivemos casos semelhantes na França, Espanha e mesmo nos Estados Unidos. Ciclos de operações contra a corrupção com muitas denúncias, cobertura midiática e mobilização de opinião pública. É claro que nenhuma talvez tão profunda como a Operação Mãos Limpas, que resultou na liquidação de partidos políticos, grande número de presos e, em sentido geral, uma grande repercussão no sistema político representativo. Entretanto, a despeito dos efeitos positivos no combate à corrupção, muitos também atribuem à Operação Mãos Limpas na Itália a emergência de uma liderança política com o perfil de Silvio Berlusconi , ele próprio um protótipo de político corrupto. 

A questão está, portanto, em qual o saldo que se pode recorrer em termos de modificação de práticas políticas, estruturação das instituições representativas a partir desses ciclos de grande ativismo no combate a corrupção? Será que elas, da forma como são conduzidas, não contribuem para um perigoso descrédito na representação política e na possibilidade de emergência de lideranças populistas ou autoritárias, que se posicionam “fora da política”, contra tudo e todos e no final se mostram apenas mais uma versão das velhas práticas de clientela, como já temos exemplos na democracia brasileira recente?


IHU On-Line - Em perspectiva a outros países, como avalia o sistema Judiciário brasileiro? Como conceber um sistema judiciário nacional que extrapole os conceitos de justiça e democracia?

Fabiano Engelmann - O Judiciário brasileiro possui uma independência consolidada institucionalmente e politicamente, o que não ocorre em todos os países da América Latina, por exemplo. Essa independência é fundamental para o funcionamento do regime democrático para que o sistema judicial possa cumprir a sua função contramajoritária e de garantia dos direitos do cidadão. Entretanto, há muitos problemas, como o alto custo para a sociedade que se estende desde altos salários de seus quadros, superior à média mesmo de países desenvolvidos, e a morosidade em grande medida vinculada ao arcaísmo dos códigos e práticas processuais.

Outro problema que eu destacaria é ausência de controle externo com efetiva participação da sociedade. O atual formato do Conselho Nacional da Magistratura - CNM, em especial a forma como são recrutados seus membros, permitiu que ele fosse completamente capturado por práticas corporativistas presentes entre lideranças institucionais da magistratura. Então, nesse campo há muito a evoluir na gestão, na melhoria da eficiência da prestação jurisdicional e em um maior controle da sociedade sobre o poder.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição