Edição 494 | 03 Outubro 2016

Democracia e responsabilidade devem pautar debate sobre biografias

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Vitor Necchi

Fernanda Nunes Barbosa afirma que a decisão do STF que acabou com a exigência de autorização prévia para publicação de histórias de vida não dá conta da complexidade do tema, pois os critérios ficaram de fora, e propõe em sua obra o aprimoramento do debate

Em um país cuja história recente é atraiçoada pela ditadura e pela censura, a possibilidade de se impedir a circulação de um livro desperta uma previsível polêmica. No que tange às biografias, há casos marcantes no Brasil, como o episódio envolvendo o cantor Roberto Carlos, que não mediu esforços para barrar a circulação do livro que contava a história de sua vida. Uma obra lançada recentemente pela advogada e professora Fernanda Nunes Barbosa, Biografias e liberdade de expressão – critérios para a publicação de histórias de vida (Arquipélago Editorial), aprimora a discussão sobre o tema ao dar subsídios para se responder à seguinte questão: quando a liberdade de expressão confronta o direito à privacidade, quais critérios podem legitimar a publicação das histórias de vida?

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Fernanda defende que a pessoa biografada em vida deve ser uma pessoa pública, e os anônimos devem ser mais protegidos. Propõe também que deve haver interesse público na sua produção, “isto é, o intuito não pode ser revanchista ou de autopromoção, o que se analisa a partir de um outro critério subjetivo: o biógrafo”.

Em 2015, o debate acerca das biografias ganhou fôlego a partir do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 4.815 apresentada em 2012 pela Associação Nacional dos Editores de Livros – Anel no Supremo Tribunal Federal - STF. A ação, acatada pela Corte máxima do país, pretendia impedir a exigência de autorização prévia para publicação de biografias. Para tanto, sustentava que os artigos 20 e 21 do Código Civil atingiam as liberdades de expressão e de informação. Fernanda, em sua obra, afirma que a decisão não dá conta da complexidade do tema, pois os critérios ficaram de fora. Nesse sentido, a professora avalia que o cenário continua sendo de forte insegurança para biografados e biógrafos, pois o STF não tratou do “difícil terreno da construção de critérios de ponderação de quando se deve dar razão ao autor (e considerar a obra biográfica merecedora de proteção legal) e quando se deve dar razão ao biografado (reconhecendo-se que houve abuso do direito de biografar por parte de quem publicou a obra)”.

Fernanda Nunes Barbosa é doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e professora coordenadora da Faculdade de Direito da FAPA/Laureate International Universities. Advogada no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, é também editora da revista eletrônica civilistica.com. É autora de diversos artigos jurídicos e do livro Informação: direito e dever nas relações de consumo, da Biblioteca de Direito do Consumidor da Revista dos Tribunais.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que é liberdade de expressão?

Fernanda Nunes Barbosa - Algumas noções são mais facilmente compreensíveis pelo que não são do que pelo que elas são. As liberdades, assim como a ideia de justiça, são dessa ordem. Frequentemente, explicamos o que sejam a justiça e a liberdade com exemplos concretos de seus opostos. No terreno do jurídico, há ainda um fator extremamente importante. O fenômeno jurídico é uma construção cultural, que frequentemente extrapola o próprio texto de lei, ou seja, podemos ter uma lei dizendo o que seja o casamento, por exemplo, mas, na sociedade, as relações se estabelecem de forma diversa do que ela diz. Como o fenômeno jurídico é cultural – e essa lei não dá mais conta da realidade (ou de toda a realidade) –, teremos uma renovada ideia do que seja o casamento. Essa tarefa de adequação compete fortemente à doutrina e ao Poder Judiciário, como no exemplo do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil.

Dito isso, tentarei responder à sua pergunta. A liberdade de expressão constitui-se em um direito fundamental de toda pessoa, reconhecido em uma série de documentos internacionais e também na Constituição Federal brasileira. É um direito multifuncional, que se desdobra em uma série de outros direitos, tais como as liberdades de expressão stricto sensu, de informação, de investigação acadêmica, de criação artística, de opinião e de imprensa. Em razão de seu conteúdo, desperta uma série de conflitos e dilemas, como as discussões em torno do discurso de ódio (hate speech) e do direito a um julgamento justo (o que sugere cautela nos comentários públicos sobre casos pendentes de decisão judicial). No Brasil, pune-se a conduta racista com a tipificação dos crimes de racismo e injúria racial (Lei Nº 7.716/1989), afirmando-se que um direito individual não pode servir de salvaguarda de práticas ilícitas.

Por fim, à pergunta “Por que queremos liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa?”, o professor Zechariah Chafee Jr. , que muito teria influenciado o ministro da Suprema Corte americana Oliver Wendell Holmes Jr. , autor da metáfora do marketplace of ideas (usada pela primeira vez no caso Abrahms vs. United States, em 1919), respondia a partir da divisão do assunto em duas grandes categorias: 1) a do interesse individual, a partir da necessidade de muitos homens de expressar sua opinião para que a vida valha a pena ser vivida; 2) a do interesse social na obtenção da verdade. Como atualmente refere o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso , há um interesse público da maior relevância no próprio instrumento em si, isto é, na própria liberdade, independentemente de qualquer conteúdo, e isso não pode ser esquecido.


IHU On-Line – E o que é direito à privacidade?

Fernanda Nunes Barbosa - É corrente na doutrina jurídica a afirmação de que foram os juristas americanos os que primeiro defenderam um direito à privacidade, no final do século 19, como um princípio de proteção da pessoa contra a invasão promovida tanto pela grande imprensa quanto pela reprodução de cenas ou sons. Contemporaneamente, esse assédio à vida privada e à intimidade (para usar os termos de nossa Constituição Federal e do Código Civil) é tratado sob uma perspectiva um tanto diversa.

Hoje fala-se largamente em um direito à proteção dos dados pessoais, os quais afetam a autodeterminação informativa dos indivíduos. Ocorre, a partir disso, uma ampliação do então chamado “direito de estar só” (proteção estática, de caráter negativo) para um direito à privacidade como “controle do próprio sujeito sobre a maneira como os outros utilizam as informações a seu respeito”, de forma a evitar discriminações, simplificações do sujeito, objetivações e avaliações fora de contexto, como afirma o professor italiano Stefano Rodotà . Da mesma forma, protege-se o que se tem chamado de “direito de não saber” e o “direito ao segredo da desonra”, expressões dessa ampliada privacidade (proteção de caráter dinâmico, positiva). A privacidade ganha, portanto, o sentido de pessoal, não necessariamente secreto.

Na privacidade — termo que envolve uma grande divergência terminológica na doutrina, nas decisões judiciais (o que chamamos de jurisprudência) e na legislação, englobando noções como vida privada, dados pessoais e intimidade —, incluem-se os elementos da intimidade como aqueles que são pertinentes ao lar da pessoa, aos seus objetos pessoais, móveis, utensílios, roupas etc., mas também tudo aquilo que diz respeito à sua forma de pensar e de agir. É nesse sentido que a proteção à privacidade também foi vista como livre manifestação de opiniões. E eis aí um paradoxo: se, por um lado, a privacidade resguarda, por outro, ela sustenta o direito à liberdade (de crença, de opinião, de manifestação artística etc.), em uma aproximação inter-relacional entre privacidade e liberdade.


IHU On-Line – A resposta a esta pergunta é o seu próprio livro, mas vamos tentar resumi-lo: quando a liberdade de expressão confronta o direito à privacidade, quais critérios podem legitimar a publicação das histórias de vida? 

Fernanda Nunes Barbosa - Vou destacar os mais importantes. Antes de mais nada, os critérios são divididos em subjetivos e objetivos. Dentre os primeiros, defendo que a pessoa biografada em vida deve ser uma pessoa pública (os anônimos devem ser mais protegidos, uma vez que não se colocaram ou foram colocados na arena pública, tendo sua biografia legitimada apenas após sua morte); que deve haver interesse público na sua produção, isto é, o intuito não pode ser revanchista ou de autopromoção, o que se analisa a partir de um outro critério subjetivo: o biógrafo. Considerando que ambos são protagonistas da história de algum modo, direcionar apenas para o biografado a investigação é desequilibrar essa relação. 

Por isso defendo que o biógrafo não pode ser alguém que tenha desfrutado da confiança do biografado, como ex-mordomos (foi o caso de uma biografia de Roberto Carlos escrita no final dos anos 1970 e que foi proibida de circular pelas justiças de São Paulo e do Rio de Janeiro) e ex-amantes ou companheiros. Ao contratar-se alguém para as tarefas domésticas, situação que envolve o desfrute da vida privada e da intimidade da pessoa, é da própria natureza dessa relação a confiança, gerando uma legítima expectativa de que a vida familiar do sujeito contratante, seus segredos e seus conflitos, não serão objeto de revelações futuras, especialmente por meio de uma publicação de fôlego como são, em essência, as biografias.

Outro critério ou filtro que aponto diz respeito ao percurso trilhado pelo biógrafo como critério objetivo a ser apreciado. Assim, deverá o biógrafo apontar suas fontes e subtrair-se ao anonimato, pois a transparência deve ser a principal característica de uma obra que se propõe a revelar a vida de outrem. Ainda que, para muitos, o uso da imagem do biografado possa configurar mais uma forma de violação de seus direitos da personalidade, entendemos justamente o contrário. “Comprovar” o que se afirma por meio delas é um modo de abrir as fontes, como exemplifiquei ao tratar da biografia Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha , e se apoia no próprio dever imposto aos biógrafos. O que para um dos julgadores na época constituía mais um motivo de ofensa a justificar uma decisão contra a editora e seu autor, Ruy Castro , a foto de capa com Garrincha apenas de cueca e jogado em uma poltrona visivelmente em estado de ressaca, para mim é uma boa demonstração de como as afirmações feitas pelo biógrafo mostravam-se verossímeis.  


IHU On-Line – No âmbito do jornalismo, o interesse público é o principal fator que sustenta a publicação de uma notícia. O mesmo motivo pode ser evocado para se justificar uma biografia?

Fernanda Nunes Barbosa - Sim e não. Sim, ele é importante. Não, ele não é suficiente para justificar a biografia, pois não há uma sobreposição do interesse público sobre o interesse privado em sentido abstrato, e o potencial lesivo de uma biografia, enquanto obra de fôlego sobre a vida de alguém, é maior que o de uma matéria jornalística, ao menos em tese. É preciso conjugar diferentes circunstâncias. Além disso, é sempre importante lembrar que “figura pública” não induz, necessariamente, “interesse público”. 

Como exemplo, podemos lembrar aqui o caso da Daniela Cicarelli. A modelo brasileira foi filmada em pleno ato sexual, em local público. A despeito de toda a exposição feita, as matérias publicadas a respeito pela imprensa não se esforçaram em demonstrar qualquer consequência social, política ou econômica, isto é, não produziram qualquer acréscimo para a coletividade ou para um integrante do conjunto social. O interesse público e social era nulo. A curiosidade do público (interesse do público) não corresponde a interesse público, razão pela qual não se verificam consequências que legitimem os relatos e a publicação das imagens em detrimentos dos importantes direitos que lhes foram negados com as divulgações. 

No terreno das biografias, dentre as consequências sociais aferíveis estão as exigências da arte, compreendidas na esfera do interesse público. Assim, se a obra na qual são reproduzidos fatos da vida de alguém tem um valor literário, deve este ser tomado em conta para o fim de consentir-se a sua publicação. Embora esse critério possa parecer demasiado abstrato em um primeiro momento, entendo que ele pode ajudar facilmente em uma série de casos notoriamente abusivos. 


IHU On-Line – No que tange ao debate acerca das biografias, há pessoas e pessoas, se considerarmos os critérios que definem qual sujeito deveria ser objeto de uma?

Fernanda Nunes Barbosa - Uma das coisas que defendo no livro é que os critérios (ou filtros) devem ser interpretados e aplicados em conjunto. Não podemos pegar um critério isoladamente e, a partir dele, legitimar um relato biográfico, tendo em vista as sérias consequências para os sujeitos envolvidos. Devemos lembrar que uma biografia não é escrita contando apenas uma vida, mas as várias vidas que com aquela se relacionam. 

Então, há conceitos sobre os quais devemos refletir. Fama e interesse público não são palavras que podem ser usadas indistintamente. Ainda que a fama seja um atributo de toda celebridade — palavra que assume os mais diversos sentidos — e de grande parte dos agentes políticos, o interesse público pode não estar presente em muitas das narrativas que cercam uns e outros. Dito de outra forma, a fama pode ser medida superficialmente. O interesse público, não. Uma pessoa pode adquirir fama por participar de um programa de entretenimento televisionado e, rapidamente, ser reconhecida com facilidade ao transitar pelas ruas e nas suas tarefas cotidianas. Nem por isso, no entanto, poder-se-á reconhecê-la como protagonista de fatos que revelem o interesse público, mas a mera curiosidade do público.

Uma sátira à fama repentina e totalmente imotivada bastante própria dos dias atuais é feita por Woody Allen  no filme Para Roma com amor. No filme, o personagem Leopoldo, interpretado por Roberto Benigni , torna-se, repentinamente, uma celebridade, sendo perseguido por repórteres e fotógrafos 24 horas por dia. Por ser apenas um homem comum “e previsível”, as perguntas a ele dirigidas em repetidas entrevistas e aparições midiáticas envolvem desde o que ele comeu em seu café da manhã até qual o tipo de roupa íntima que Leopoldo costumava usar em seu dia a dia. No entanto, da mesma forma como repentinamente se tornou famoso, Leopoldo foi esquecido (trocado por outro) pela mesma mídia que o criou como celebridade.


IHU On-Line – A vida de uma pessoa e as possíveis narrativas decorrentes dessa existência não seriam um patrimônio da própria pessoa, cabendo a ela definir se seus feitos deveriam ser compartilhados ou não?

Fernanda Nunes Barbosa - Mais uma vez, depende. Depende da pessoa, depende de seu contexto histórico e cultural, depende de quem pretender escrever a sua história etc. Vou ilustrar com um caso real. Em setembro de 1951, Henrietta Lacks, aos 30 anos, estava morrendo, vítima de um câncer no colo do útero. Negra, pobre, mãe de cinco filhos e sulista de Baltimore (EUA) durante o período de segregação racial, os médicos não conseguiam entender como os tumores haviam tomado seu corpo em tão pouco tempo, vindo a matá-la em 4 de outubro do mesmo ano. A história de Henrietta, no entanto, virou livro, A vida imortal de Henrietta Lacks, de Rebecca Skloot, que foi traduzido para o português por Ivo Korytowski e publicado pela editora Companhia das Letras. Está catalogado como Biografia-Medicina-Saúde, porque um pedaço de seu corpo foi extraído para pesquisas e revolucionou a ciência do século 20. 

Mas a questão que pende é: poderiam tê-lo feito, como de fato o fizeram, ainda que a benefício da ciência, sem o consentimento (autorização) de sua família? Parece-me que casos como esse são bem diversos de casos de publicação de biografias escritas por ex-amantes revanchistas e coisas do gênero. É preciso refletir sobre essas diferenças e apontar critérios objetivos para que não fiquemos apenas nos “achismos” de juízes e doutrinadores. Por isso é importante que se distingam os casos e se apontem soluções que possam ser aplicadas a grupos de casos. É o que busco fazer neste estudo. 


IHU On-Line – Em sua tese, é proposto um conceito jurídico de biografia. Do que se trata? E no que ele permite se avançar na discussão do tema?

Fernanda Nunes Barbosa - O escritor Mia Couto  tem uma passagem em que ele diz assim: “História de um homem é sempre mal contada. Porque a pessoa é, em todo o tempo, ainda nascente. Ninguém segue uma única vida, todos se multiplicam em diversos e transmutáveis homens”. Gosto dessa ideia porque ela expressa um ponto central do conceito jurídico de biografia que eu proponho e que muitas pessoas não enxergam, embora possam saber ainda que por intuição. Uma biografia não é “a” verdade sobre a vida de alguém, e sim “uma” versão.

Assim, o conceito que proponho, após analisá-lo nas perspectivas da Literatura e da História, é o seguinte: biografia em sentido jurídico é toda narrativa longa sobre a vida de alguém contada por outrem, a partir de dados coletados de fontes não anônimas, que resulta em uma versão dentre várias possíveis, com a finalidade de promover valores sociais como a cultura e a preservação da memória.

E à sua pergunta sobre o que um tal conceito permitiria avançar na discussão do tema, eu diria que ele torna possível que todos os interlocutores do debate possam partir de um objeto comum para seus argumentos pró e contra a publicação de obras biográficas. Quando se conceitua o objeto, deixa-se de fora muita coisa. Como o conceito proposto possui elementos estruturais e funcionais, sendo estes a promoção de valores sociais como a cultura e a preservação da memória, já se está dizendo que tudo aquilo que não cumprir tais finalidades não pode ser protegido pelo sistema jurídico da mesma forma que as biografias.

Então, tentando resumir, é dizer que saem do debate argumentos que defendam a proibição da publicação de biografias porque seria a legitimação da fofoca, do espírito vingativo e de promoção de mero entretenimento. Nesses casos, os direitos da personalidade das pessoas deverão ser protegidos, porque de biografias não se tratariam os respectivos relatos.


IHU On-Line – A Associação Nacional dos Editores de Livros – Anel apresentou ao Supremo Tribunal Federal - STF, em 2012, a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 4.815, que pretendia impedir a exigência de autorização prévia para publicação de biografias. Em sua obra, a senhora afirma que a decisão não dá conta da complexidade do tema. O que ficou de fora?

Fernanda Nunes Barbosa - Ficaram de fora justamente os critérios. Nesse sentido, o cenário nacional continua sendo de forte insegurança para biografados e biógrafos, uma vez que o Supremo Tribunal Federal limitou-se a julgar (e afastar) a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias, mas não aprofundou no difícil terreno da construção de critérios de ponderação de quando se deve dar razão ao autor (e considerar a obra biográfica merecedora de proteção legal) e quando se deve dar razão ao biografado (reconhecendo-se que houve abuso do direito de biografar por parte de quem publicou a obra). 

Em termos usados pelo próprio ministro Luiz Fux , o julgado fixou uma “proposta minimalista”, para apenas decidir com relação à exigência ou não de licença prévia para a publicação de biografia, restando exclusivamente nesse ponto o consenso entre os julgadores da mais alta Corte. Inclusive no que tocava às possíveis tutelas em face de uma afronta aos direitos da personalidade no caso concreto, a saber, indenização, proibição de circulação da obra, concessão de direito de resposta, reedição da obra etc., os ministros decidiram por deixar de fora do voto qualquer julgamento nesse sentido, uma vez que não havia concordância suficiente.


IHU On-Line – Em seu pleito no STF, a Anel também argumentou que pessoas “cuja trajetória pessoal, profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública, gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita”. Isto não é muito subjetivo?

Fernanda Nunes Barbosa - Eu diria que não é muito subjetivo, mas um pouco subjetivo. Por isso que o critério não pode ser apenas este de ter uma trajetória pública. É preciso construir mais critérios, de modo que se diminua o grau de arbitrariedade na tomada de decisão por um magistrado e se diminua a insegurança de editores, biografados, familiares e escritores. A insegurança não beneficia nenhum dos envolvidos. Por que uma editora vai investir em uma obra que pode ser retirada do mercado e talvez ainda ter de pagar indenização aos ofendidos (que podem ser muitos)? Por que um autor vai dedicar anos de sua vida a pesquisar um personagem se seu estudo pode não vir a ganhar corpo em uma publicação? Por que uma pessoa pública entrará com uma ação na Justiça se pode vir a perder e ter ainda mais mídia sobre si e também ser condenada a pagar honorários de advogado e custas judiciais? Temos exemplos paradigmáticos dessas três perdas. As biografias de Garrincha, Roberto Carlos e João Gilberto, analisadas no meu livro, são apenas algumas delas.


IHU On-Line – A Anel defendia que a dispensa do consentimento prévio não isentaria o biógrafo de culpa, caso abusasse de seu direito e publicasse informação falsa ou ofensiva à honra do biografado. Se o autor incorrer nesses excessos, quais as consequências jurídicas que pode enfrentar?

Fernanda Nunes Barbosa - Aí temos mais uma insegurança. O STF não analisou essa questão (embora, diga-se de passagem, também não fosse esse o estrito objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815). Mas poderia tê-lo feito, ao menos sugerindo caminhos. Então, temos ainda múltiplas possibilidades no Brasil, que vão desde a retirada da obra de circulação e a condenação do escritor e da editora ao pagamento de indenização por danos morais até a concessão de direito de resposta ao biografado ou a terceiros.


IHU On-Line – Se um biografado considerar que há falsidade no texto sobre sua vida ou que sua honra foi ofendida, ele pode confiar na Justiça? A questão financeira, por exemplo, que poderia permitir a editoras e autores contratarem advogados de maior envergadura, não torna a batalha desigual?

Fernanda Nunes Barbosa - Acredito que não. Isso porque os biografados também costumam ser pessoas com um bom poder aquisitivo. Além do mais, costumam ser vistos com mais simpatia pelos julgadores do que as editoras, que para alguns estariam lucrando com a história alheia. Exemplifico novamente com o caso da biografia Roberto Carlos em detalhes, escrita pelo historiador Paulo Cesar de Araújo  e retirada de mercado após o cantor e compositor ingressar com ações na esfera civil e penal contra a editora Planeta e o biógrafo.

A história desses processos é contatada por Paulo Cesar de Araújo em seu livro O Réu e o Rei. Esse livro, segundo o próprio autor, conta a sua história. Após ser acusado de “usurpador da história alheia” e ver “reduzido a pó um trabalho de quinze anos de pesquisa”, o autor narra a longa e intensa relação com seu objeto de estudo, que resultou numa biografia hoje retirada do mercado e em dois processos judiciais no qual foi réu. Paulo Cesar encerra a introdução de seu livro dizendo: “[Esta] É a história de um brasileiro, vindo do interior, filho de trabalhadores, fã de Roberto Carlos, que contra todas as adversidades estudou, chegou à faculdade, pesquisou e escreveu sobre o maior ídolo da nossa música popular”.


IHU On-Line – Quando a imprensa erra uma informação, a correção costuma ganhar destaque inferior à publicação original, restando a sensação de que há uma discrepância. Partindo de um raciocínio correlato, em caso de abuso do biógrafo, as reparações costumam ser justas?

Fernanda Nunes Barbosa - Sinceramente, acredito que não. Esse é o grande dilema da liberdade de expressão. A liberdade é nosso grande sonho, mas também pode se tornar nosso maior pesadelo. Vou me permitir aqui uma comparação com a filosofia budista, que diz mais ou menos assim: toda fonte de prazer é também fonte de desprazer. Ou seja, se queremos liberdade, temos de aceitar as consequências que dela decorrem, o que não quer dizer que não se deva lutar para amenizar seus efeitos danosos. Agora, que a palavra dita gera danos que não podem ser reparados, mas apenas compensados, isso é uma verdade.


IHU On-Line – A senhora defende que o biógrafo deve apresentar suas fontes e evitar o anonimato. Na prática, nem sempre isso ocorre. Como solucionar este impasse?

Fernanda Nunes Barbosa - Talvez eu possa parecer pessimista, mas mais uma vez não acredito em uma solução plena. Isso exigiria uma sociedade mais responsável, comprometida, lúcida, crítica, enfim, qualidades que ainda estamos construindo no Brasil. Parece indiscutível que, filosoficamente, democracia e responsabilidade são pilares da discussão que cerca o tema da liberdade de expressão para a publicação de biografias. 

Mas aproveito sua pergunta para lembrar uma passagem de Derrida  que acho de extrema relevância. Diz ele que “O direito não é a justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável; e as experiências aporéticas são experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto é, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garantida por uma regra”. Acho que é por aí.


IHU On-Line – A decisão do STF gerou uma nova fase no mercado editorial brasileiro, no que se refere à publicação de biografias?

Fernanda Nunes Barbosa - Acredito que sim. Há uma onda de liberdade literária nesse sentido, especialmente a partir da frase que virou manchete em todos os jornais do país, dita pela relatora do processo no STF e hoje presidente daquela Corte, Cármen Lúcia . “Cala a boca já morreu”, defendeu a ministra em sua fala ao votar pela inconstitucionalidade da exigência de autorização prévia para a publicação de biografias no Brasil. Com isso, um entrave objetivo foi retirado. Agora pode-se publicar obras desse gênero quer o biografado queira, que não queira.


IHU On-Line – Depois da decisão do STF, houve outras decisões legais que tratam deste tema?

Fernanda Nunes Barbosa - Em termos legislativos, tínhamos o Projeto de Lei 393/2011  da Câmara dos Deputados e que, uma vez encaminhado ao Senado Federal, foi para a Comissão de Constituição e Justiça. Lá, o então relator, senador Ricardo Ferraço, opinou pela prejudicialidade da proposta após decisão do STF na ADI 4815, com as seguintes palavras: “Dessa forma, a histórica decisão do STF consolidou a plena liberdade de expressão como instrumento constitucional decisivo na formação da cidadania e no desenvolvimento democrático. Não podemos, nesta Casa, incorrer em retrocesso ou criar dificuldades na plena aplicação do acertado julgado da nossa Suprema Corte”.

Em minha opinião, foi o melhor que aquela Casa poderia fazer nesse caso.


IHU On-Line – No seu entendimento, comprovada a existência de falsidade ou ofensa, caberia retirar uma obra do mercado?

Fernanda Nunes Barbosa - Sim. O que defendo é que não deve haver uma vulgarização desse tipo de medida, isto é, ela deve ser de extrema excepcionalidade. Sustento a possibilidade de o julgador, analisando a própria obra (e não apenas relatos e trechos dela destacados pelas partes), decidir pela provisória retirada do mercado. Destaco que há, nesse sentido, tanto um ônus para a parte que alega abuso, de trazer para o processo uma cópia integral da obra, quanto para o juiz, de realizar a sua leitura como peça fundamental da ação. Sem isso, qualquer juízo legal ficará prejudicado, pondo em risco o valor da liberdade de expressão.


IHU On-Line – Ditadura e censura são fenômenos recentes na história brasileira, e o país ainda se mostra muito sensível a possíveis ocorrências destes episódios. O fantasma da censura interfere no debate acerca das biografias?

Fernanda Nunes Barbosa - Não há como não interferir. Entra-se em todo debate com uma carga de conhecimentos, ideias e opiniões racionais e outro tanto emocionais. E nossa memória emocional ainda está muito ligada a essa triste época de nossa história recente. 

Além disso, há uma certa confusão mesmo entre estudiosos e aplicadores do direito sobre o que seja censura. É muito importante lembrar que a existência de mecanismos de controle procedimental e/ou processual de proteção de interesses legítimos das pessoas não significa censura. Ao contrário, é a afirmação de direitos em uma sociedade que se pretenda democrática.


IHU On-Line – Pesquisadores de áreas como história e ciências sociais elaboram histórias de vida de pessoas notórias ou não. A discussão em torno da exigência de autorização para publicação de biografias não chegou às pesquisas acadêmicas. A disseminação das histórias e a obtenção de lucros inerentes ao lançamento editorial de uma biografia foram determinantes no debate relacionado ao pleito da Anel?

Fernanda Nunes Barbosa - Sem dúvida. Especialmente porque o artigo 20 do Código Civil, objeto da referida ação no Supremo, assim dispõe: “Salvo se autorizadas, ou se indispensáveis à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único: Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes” [grifo da entrevistada].

O outro artigo objeto da ação foi o art. 21, também do Código Civil, segundo o qual “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”. Na prática, não é incomum que os personagens objeto de trabalhos acadêmicos que não venham a ser publicados sequer fiquem sabendo da pesquisa ou, ainda que sejam procurados, não deem maior relevância para o fato diante da limitação de publicidade desse tipo de escrita.


IHU On-Line – Uma pessoa não pode ter direito ao esquecimento?

Fernanda Nunes Barbosa - Pode. Há um autor que trabalhei no livro que bem aborda essa questão. François Ost  diz que toda sociedade precisa, pelo menos parcialmente, desligar o passado e assim ligar o futuro, dizendo ainda que “qualquer organização da memória é igualmente organização de esquecimento”.

Novamente, o ponto central será saber em quais hipóteses se reconhecerá essa garantia. O chamado “direito ao esquecimento” (droit de l'oubli) tem raízes no direito francês, país onde a legislação garante ao criminoso condenado, após o cumprimento da pena imposta e sua reabilitação, o direito a opor-se à publicação de fatos relacionados ao crime pelo qual fora condenado, tendo em vista que o direito a ser esquecido aparece como um componente da vida privada da pessoa. A história legal de cada cidadão é um componente do direito ao esquecimento.

No Brasil, podemos citar o julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do caso do assassinato de meninos na Candelária, Rio de Janeiro, no ano de 1993 (conhecido como Chacina da Candelária ). No julgado, constou que, apesar de verídicas, as informações, além de não serem contemporâneas, davam conta de o autor da ação (que pleiteava o seu direito ao esquecimento) ter sido absolvido do crime, e revolver os fatos da época em programa televisivo causaria ao retratado transtornos das mais diversas ordens. Segundo a decisão, um ordenamento jurídico que leve em conta uma evolução humanitária e cultural da sociedade, entre a memória — conexão do presente com o passado — e a esperança — vínculo do futuro com o presente —, fez clara opção pela segunda. Como disse o ministro relator, “E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, afirmando-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal de regenerabilidade da pessoa humana”.

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