Edição 493 | 19 Setembro 2016

E o Mercosul?

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Gabriel Adam

“O avanço dos Estados sul-americanos no sentido de angariarem poder de decisão sobre seus destinos na política mundial contrariava frontalmente os interesses estadunidenses. (...) O processo de retomada da influência estadunidense na América do Sul é fortalecido com a eleição de Maurício Macri na Argentina e com a deposição de Dilma Rousseff. É neste ponto que cabe questionar sobre o futuro do Mercosul, tendo em vista que os dois países são o coração, o pulmão e o cérebro do bloco regional”, analisa Adam.

Gabriel Adam é formado em Ciências Jurídicas e Sociais, possui mestrado em Relações Internacionais e doutorado em Ciência Política. É professor dos cursos de Relações Internacionais e Direito na Unisinos.

 

Eis o artigo.

 

No dia 30 de junho de 2016, foi consumado o impeachment sem crime de responsabilidade comprovado da Presidenta Dilma Rousseff. Entre os efeitos imediatos de tal ato estão desde planos de concessão à iniciativa privada de estradas e de setores estratégicos do país, até a dilapidação das reservas do pré-sal em prol de empresas transnacionais do petróleo. O rompimento de um processo de diminuição das desigualdades sociais que assolam o Brasil desde sempre, a perda de autonomia governamental e a renovação de riscos para a nossa democracia eternamente incipiente podem ser citados como alguns dos efeitos mediatos. Mas, em que pese a relevância das transformações domésticas pelas quais o Brasil passará nos próximos anos, o presente artigo tem como foco a política externa do Governo Temer, e, mais especificamente, o futuro do Mercosul em meio a uma nova conjuntura regional que se avizinha no horizonte sul-americano. 

A compreensão mais precisa do estágio atual do Mercosul depende do resgate de dois movimentos históricos que foram traçados em paralelo. O primeiro é a posição dos Estados Unidos de enxergar as Américas como sua zona de influência exclusiva, o que implica em evitar que qualquer potência estrangeira procure projetar poder no continente, bem como sabotar os processos dos países latinos de emergirem como atores com voz independente na política regional e global.

A construção deste domínio estadunidense teve três atos sequenciais e complementares. O primeiro deles foi o lançamento da Doutrina Monroe em 1823, o segundo foi o Corolário Roosevelt, na virada do século XIX para o XX, e o terceiro foi a criação da Organização dos Estados Americanos, em 1948. O outro movimento histórico é justamente a tentativa de países latino-americanos de se livrar do jugo estadunidense mediante a formação de organizações regionais próprias. Assim, em 1961 foi fundada a Associação Latino-Americana de Livre Comércio - ALALC, que acabou fracassando. No ano de 1980, veio a segunda tentativa, com a Associação Latino-Americana de Integração - ALADI, organização ainda vigente, mas sem impacto econômico ou político. Nos anos 1990 os países da América do Sul seguiram a tendência mundial e criaram ou reinventaram blocos regionais (caso do Pacto Andino que virou Comunidade Andina das Nações em 1996). Neste contexto surgiu o Mercosul, em 1991.

Na sua origem o Mercosul não tinha objetivos políticos de autonomia tão explícitos, pois sua natureza é comercial, e de outra forma não poderia ser, pois seus dois principais líderes, Brasil e Argentina, eram governados por Presidentes de cepa neoliberal, Fernando Collor e Carlos Menem, respectivamente. Contudo, com o tempo, o caráter estratégico do Mercosul foi sendo reconhecido pelos governos dos quatro Estados membros originários (além dos já citados, Paraguai e Uruguai).

No alvorecer do novo século, com a chegada ao poder de Lula no Brasil, de Néstor Kirschner na Argentina, da Frente Ampla no Uruguai e de Fernando Lugo no Paraguai, o bloco regional assumiu contornos mais nítidos de ser um dos instrumentos disponíveis aos seus membros para projeção política e econômica nos planos regional e mundial, em especial no caso brasileiro. Ou seja, se nunca se cumpriu como catalisador de um mercado comum do sul efetivo, o Mercosul se legitimava pela sua relevância geoestratégica. 

Com a ascensão de Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador e com a consolidação de Hugo Chávez na Venezuela, a América do Sul viveu um momento único de governos efetivamente autonomistas que almejavam um afastamento político de Washington e pensavam no subcontinente sul-americano como um local de desenvolvimento conjunto e autônomo. O resultado prático desta comunhão de interesses foi a criação da Unasul (União das Nações Sul-Americanas), em 2010.

O avanço dos Estados sul-americanos no sentido de angariarem poder de decisão sobre seus destinos na política mundial contrariava frontalmente os interesses estadunidenses. Assim sendo, em 2012, Washington patrocinou a formação da Aliança do Pacífico, cujos Estados membros são México, Colômbia, Chile e Peru. O objetivo da junção dos principais países latino-americanos que permaneciam aliados dos EUA Latina era enfraquecer os movimentos questionadores do status quo, a Unasul e o Mercosul. 

O processo de retomada da influência estadunidense na América do Sul é fortalecido com a eleição de Maurício Macri na Argentina e com a deposição de Dilma Rousseff. É neste ponto que cabe questionar sobre o futuro do Mercosul, tendo em vista que os dois países são o coração, o pulmão e o cérebro do bloco regional. Desde que assumiu o governo argentino, Macri tem se aproximado enormemente de Washington. Em termos de multilateralismo, tem advogado pela aproximação do Mercosul com a Aliança do Pacífico e com a Parceria Trans-Pacífica (TPP na sigla em inglês), o que seria prejudicial às indústrias sul-americanas em função do livre comércio que se estabeleceria com os Estados Unidos. 

Na mesma toada, desde que assumiu o posto de Chanceler brasileiro, José Serra vem agindo no sentido de retomar um alinhamento com Washington não visto desde o Governo Collor. Acerca do Mercosul, Serra está numa cruzada para impedir que a Venezuela assuma a Presidência rotativa no bloco, sob alegação de que o governo daquele país não cumpriu exigências formais para com o bloco e de que não é democrático, discurso este idêntico ao que os mandatários estadunidenses dirigem a Caracas desde que Chávez se elegeu Presidente do país vizinho. 

Ainda sobre este tema, Serra foi acusado de tentar comprar o voto uruguaio para negar o acesso da Venezuela à presidência. A forma como lidou com o desmentido sobre tal procedimento revelou uma postura arrogante para com o Uruguai, o que em nada lembra a ideia de liderança compartilhada na América do Sul, lançada no Governo FHC e seguida no Governo Lula. Em suma, os primeiros indícios dos governos Macri e Temer sinalizam que o Mercosul deixará de ser utilizado como um meio para que seus membros adquiram efetiva independência política e econômica nas Américas e no mundo. 

É bem ao contrário; o futuro do Mercosul aponta para dois caminhos, ou ocorrerá o seu esvaziamento ou ele será submetido aos interesses de Washington ao ponto de sua descaracterização completa. De um modo ou de outro, o bloco regional será muito prejudicado, e mais uma vez na história os países sul-americanos não conseguirão se libertar da malfadada Doutrina Monroe. ■

 

Expediente

Coordenador do curso: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme

Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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