Edição 493 | 19 Setembro 2016

A caricatural identidade gaúcha

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Vitor Necchi | Edição Ricardo Machado

Para o jornalista Moisés Mendes, o passar dos anos levou a busca da identidade gaúcha ao ápice de sua simplificação

“A busca por uma identidade, que funda o tradicionalismo e espalha os Centros de Tradições Gaúchas - CTGs, lá nos anos 1950, chega agora ao estágio da supremacia da caricatura”, analisa o jornalista Moisés Mendes, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ao se debruçar sobre a maneira pela qual as identidades gaúchas se manifestam nos dias atuais, Mendes tenta demonstrar como certos traços culturais se processam socialmente. “A argumentação do gaúcho está quase sempre contaminada pela ideia do confronto, da guerra. O gaúcho disputa espaço no trânsito como se estivesse numa batalha a cavalo. A internet potencializa esses defeitos”, destaca.

Não obstante, há uma série de narrativas que descomplexificam as diferentes matizes que compõem o gauchismo em seu sentido mais amplo, com indígenas, mulheres que não são prendas e negros. O passar dos anos fez com que, sob a desculpa da tradição, houvesse um certo aprofundamento do primitivismo. “Os gestores gaúchos sempre acharam que criança não precisava de creche e de pré-escola, porque as mães (diziam os homens) estavam historicamente em casa. O atraso na educação do estado, que pune as crianças e suas mães, é também resultado da cultura primitiva e machista do gauchismo, que continua viva no século XXI”, pondera. 

Moisés Mendes é nascido em Rosário do Sul (RS) e criado em Alegrete (RS), onde começou sua carreira jornalística aos 17 anos na Gazeta de Alegrete. Atuou também em A Plateia (Santana do Livramento) antes de se transferir para Porto Alegre. Nos últi­mos 27 anos, a partir de 1989, exerceu as funções de repórter, repórter espe­cial, editor, editorialista e colunista do jornal Zero Hora. Publicará, ainda este ano, o livro Todos querem ser Mujica, pela Editora Diadorim.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Costuma-se dizer que o Rio Grande do Sul é o estado mais politizado do país. Admitido o exagero da afirmação, o que poderia explicá-la?

Moisés Mendes - A fama viria do tempo da ditadura. Gente de fora contribui para isso. Artistas chegam aqui exaltando as qualidades do gaúcho sabido e esperto. O estado tinha quadros importantes na oposição ao regime iniciado em 1964.  E, para desqualificar os outros, diziam que aqui sim se fazia política de qualidade. Não sei se há estudos acadêmicos sobre isso (diziam até que a presença em eleições aqui sempre foi maior). Mas não é um dado que nos favoreça, ou no que, afinal, essa virtude se manifesta como vantagem? Só para dar um exemplo, na ditadura tínhamos um Leitão de Abreu  (poderoso chefe da Casa Civil de Médici  e de Figueiredo ) e um Daniel Krieger  (senador da Arena). Hoje, o talento  gaúcho é representado pelo superministro Eliseu Padilha. 


IHU On-Line – O entendimento mais corrente de identidade gaúcha ou, em outras palavras, o modo de ser do gaúcho, é algo que afeta a maneira como se faz política no Rio Grande do Sul?

Moisés Mendes - Aqui, há mais do que trabalhistas querendo ter Getúlio Vargas  como modelo. Mas a leitura é enviesada. Getúlio pacificou o estado, antes de 1930. O que vem depois é uma involução, é a precarização do jeito de fazer política, desde a chamada política representativa, a institucional, até a cotidiana. É peculiar do gaúcho a ideia sempre presente, em especial entre os conservadores, de que não conseguimos consensos. Nosso atavismo belicista seria impeditivo para entendimentos. O estado não sabe é lidar com o dissenso, com a discordância, a diferença, porque o ponto de vista a prevalecer deve ser sempre o conservador, se for preciso, pelas elites.

Um exemplo concreto da desculpa (conservadora) de que tudo vira briga de maragato e chimango foi o caso recente do projeto de revitalização do cais do porto da Capital. Por que a cidade não poderia debater a ocupação de um espaço público? Mas o reacionarismo acusa os discordantes de serem sempre do contra, porque o espaço, para ele, é para ser sempre apropriado pelo privado. É assim que todo debate no estado estará sob a suspeita de que expressa um boicote.


IHU On-Line – O senhor se tornou mais conhecido do grande público depois que passou a ocupar espaços frequentes de opinião. O retorno dos leitores, fosse positivo ou negativo, traz marcas do gauchismo?

Moisés Mendes - Sim, a argumentação do gaúcho está quase sempre contaminada pela ideia do confronto, da guerra. O gaúcho disputa espaço no trânsito como se estivesse numa batalha a cavalo. A internet potencializa esses defeitos. O historiador Tau Golin  diz que o tradicionalismo tira a complexidade do gaúcho e transforma tudo numa grande estância. Tudo aqui tem hierarquias, até o debate. Para muitos leitores que discordavam do que eu escrevia, eu era um subalterno rebelde, mais ou menos como um peão que afrontava o patrão (o assinante). Mas eu tenho um dado a meu favor: eu sou fronteiriço, conheço todos esses macetes. O gaúcho do campo, da Fronteira, não tem nada, mas nada mesmo desta caricatura grotesca, fanfarrona e cetegista que fazem dele.


IHU On-Line – Por que muitos colunistas em atividade no Rio Grande do Sul são tão conservadores, machistas e preconceituosos? Reflexo da sociedade ou consequência das linhas editoriais?

Moisés Mendes - Porque os veículos de comunicação demarcaram muito bem os limites e o alcance da sua vocação ultraconservadora, que foi exacerbada de forma nunca vista agora, no golpe. Assim o reacionário aparece mais, porque tem mais espaço. Ele está ali à espera de pista. E a imprensa brasileira vive um contexto conturbado pelo dilema da transição da informação impressa para a on-line. Ficou claro, nos últimos movimentos, que a opção é esta: salvemos os leitores que nos sustentam, e que são a maioria conservadora, e esqueçamos a ideia da pluralidade. É uma festa para o jornalismo de opinião mais à direita. O jornalista gaúcho conservador (para usar um eufemismo) manda amarrar bandido em poste, em pregação ao vivo, em programas de rádio. E houve no jornalismo em geral um rebaixamento da opinião, com o fim dos oráculos clássicos da imprensa. O jornalismo gaúcho de exaltação da violência está próximo de involuir à época das degolas.


IHU On-Line – O conservadorismo é um traço cultural gaúcho. Como isso se manifesta na produção jornalística?

Moisés Mendes - A busca por uma identidade, que funda o tradicionalismo e espalha os Centros de Tradições Gaúchas - CTGs, lá nos anos 1950, chega agora ao estágio da supremacia da caricatura. O gaúcho deve ser o brasileiro mais inseguro como macho valente. E acaba virando um tipo grotesco, quase um ogro. Veja o caso do casamento de gays no CTG de Livramento, há pouco mais de um ano. O casamento, dizem os cetegistas, não iria afrontar costumes, mas a tradição. E a tradição seria a raiz protetora do macho. Parte do jornalismo urbano, atrasado, mas com lustro de esclarecido, contribuiu muito para que aquele episódio se transformasse num case nacional, com os olhares do Brasil dirigidos ao estado mais politizado, mais educado e mais fino da nação...


IHU On-Line – Qual o peso que a tradição e o bairrismo próprios da população do Rio Grande do Sul têm na hora de se fazer jornalismo?

Moisés Mendes - O localismo é forte no estado. E fica mais evidente com a busca pela fidelização não só do assinante, mas do leitor avulso, no caso do jornal. O Diário Gaúcho é um exemplo de fenômeno a ser ainda melhor explicado, um jornal popular, vendido apenas em banca, que é comprado diariamente por cerca de 150 mil pessoas somente na Grande Porto Alegre. O que explica isso? A tradição do jornalismo local? É um feito a ser melhor analisado.


IHU On-Line – Um dos critérios usados pela imprensa para definir o que publicará é a proximidade, ou seja, o que ocorre perto do público tende a despertar mais interesse. No caso dos veículos do Rio Grande do Sul, não há exagero na aplicação desse critério?

Moisés Mendes - O bairrismo é do jornalismo mundial. O filme americano O Jornal, do início dos anos 90 (dirigido por Ron Howard, e com a Glen Close como diretora de redação), mostra uma reunião de editores em que alguém anuncia um acidente não sei onde, e um editor pergunta: tem alguém de Nova York? Um paulista me contou como verdade que Zero Hora deu esta chamada na capa: Gaúchos poderão ver hoje o eclipse da lua. É uma boa piada. Parece que só os gaúchos veriam o eclipse. O jornal de Nova York talvez não chegasse a tanto.


IHU On-Line – Os veículos de comunicação não deveriam ser mais críticos na hora de discutir a sociedade gaúcha?

Moisés Mendes - O jornalismo perdeu em algum momento a vocação para o debate das grandes questões de comportamento, que envolvam cultura local, postura crítica, preconceitos etc. E isso muito antes da internet. Mas foi há uns cinco anos ou pouco mais que os polemistas sumiram mesmo dos jornais e foram para as redes sociais. O jornal sempre foi um espaço ocupado por gente da academia, por intelectuais, colaboradores avulsos. Hoje, a temática é quase toda nacional, por causa das circunstâncias. O Facebook absorve os grandes debates que aconteciam nos jornais. Perdeu-se um mediador, mas ganhou-se em autonomia e liberdade. É caótico, mas é bom.  


IHU On-Line – Durante muitos anos, o senhor foi editor de economia. Quais as características do empresariado local?

Moisés Mendes - Não sou do tempo da cobertura de economia mais empresarial, do grande empreendedor. Eu entro na Zero no final dos anos 1980, quando as crises fazem com que a economia se volte para o leitor comum. Mas sempre me pergunto: por que aqui as lideranças empresariais existem como liderança e depois desaparecem? Não vou citar nomes, mas ninguém sabe dizer onde foram parar dirigentes de entidades do grande empresariado das últimas décadas. Se eram líderes, porque não continuaram líderes, até em suas áreas ou atividades? O Rio Grande do Sul sempre foi o quarto em questões econômicas (PIB, exportações, renda etc.) e agora seria o quinto, atrás de São Paulo, Rio, Minas e Paraná. Daqui a pouco será o sexto? Há anos os gaúchos não têm uma grande ideia.


IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Moisés Mendes - No ano passado, o nosso Tribunal de Contas realizou um estudo fantástico, por iniciativa do presidente Cezar Miola, mostrando o déficit de 196 mil vagas em creches e na pré-escola no Rio Grande do Sul. Na pré-escola, só não estamos em pior situação que Roraima. Os gestores gaúchos sempre acharam que criança não precisava de creche e de pré-escola, porque as mães (diziam os homens) estavam historicamente em casa. O atraso na educação do estado, que pune as crianças e suas mães, é também resultado da cultura primitiva e machista do gauchismo, que continua viva no século XXI. Copiando Tau Golin, eu diria que o Rio Grande precisa finalmente deixar de ser uma estância. ■

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