Edição 493 | 19 Setembro 2016

Tradicionalismo e ditadura são irmãos siameses

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Vitor Necchi | Edição: Márcia Junges

Para Antônio Cecchin, “serviçais pilchados bailavam pelos salões”, enquanto às outras esferas culturais se destinavam tortura, perseguição, censura e morte

Ao ser questionado se é gaúcho, Antônio Cecchin responde ser um “guarani-missioneiro”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele desmistifica o que chama de conluio do farroupilhismo com a ditadura instaurada no Brasil pelo golpe civil militar de 1964. Para Cecchin, “durante a Ditadura Militar, o Tradicionalismo foi praticamente a única ‘representação’ com origem na sociedade civil que fez desfiles juntamente com as forças da repressão”. E enquanto as demais esferas culturais eram perseguidas, com censuras, prisões, tortura e morte, “o Tradicionalismo engrossou os piquetes da ditadura — seus serviçais pilchados animaram as solenidades oficiais, chulearam pelos gabinetes e se responsabilizaram pelas churrasqueadas do poder”.

Esse processo de oficialização dos tradicionalistas resultou na "federalização" autoritária, com um centro dominador (ao estilo do positivismo), com a fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), em 1966. “Enquanto o general Médici, de Bagé, era o patrão da ditadura e responsável, juntamente com seu grupo, pelos trágicos anos de chumbo que enlutaram o Brasil na tortura, na execução, na submissão à censura, na expulsão de milhares de brasileiros para o exílio, os tradicionalistas bailavam pelos salões do poder”, sentencia Cecchin. “Tradicionalismo e ditadura são irmãos siameses. Tendo o mesmo caráter ditatorial, impositivo, sem nenhum respeito para com a história, tornou-se perigoso tomar posição contra algo considerado contrário à opinião pública vigente.”

Antônio Cecchin é graduado em Letras Clássicas (grego, latim e português) e em Ciências Jurídicas e Sociais. Especialista em Economia e Humanismo no Institut de Recherche et de Formation en vue du Développement Harmonisé - IRFED, de Paris, ele já trabalhou, entre outras coisas, como diretor do Colégio Marista São Luís, em São Leopoldo, coordenador da Equipe de Catequese Libertadora do Regional Sul-3, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, secretário particular do Promotor Geral da Fé, no Vaticano, e assessor do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, enquanto esse estava ligado às Comunidades Eclesiais de Base (de 1979 a 1984). É irmão marista, militante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação (Porto Alegre: Estef, 2010). Publica, periodicamente, artigos nas Notícias do Dia do sítio do IHU.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Por ocasião do trabalho da Comissão da Verdade  que foi instaurada no Rio Grande do Sul, o senhor manifestou que tinha vontade de procurar os integrantes do processo, para sensibilizá-los sobre o conluio do “farroupilhismo” com a ditadura. Qual a relação do movimento tradicionalista com o regime instaurado em 1964?

Antônio Cecchin - Logo que terminaram os anos de chumbo da ditadura cívico-militar de 1964  e recuperamos tempos algo mais democráticos para a nação, começou a circular no Rio Grande do Sul o manifesto antitradicionalista. Nesse manifesto, o Tradicionalismo é apontado como uma força institucional e “popular”, em cultura oficial, através dos prepostos da Ditadura Militar no Rio Grande do Sul.

O conluio do farroupilhismo com a ditadura chama a atenção através de inúmeros itens:

a) Na verdade, em 1964, o Tradicionalismo foi incluído no projeto cultural da Ditadura Militar, pois o "Folclore", como fenômeno que não pensa o presente, serviu de alternativa estatal à contundência do movimento nacional-popular, que colocou o povo e seus problemas reais no centro das preocupações culturais e políticas.

b) O Tradicionalismo usurpou, assim mesmo, o lugar do Folclore, e se beneficiou do decreto do general Humberto Castelo Branco , de 1965, que criou o Dia Nacional do Folclore, e suas políticas sucedâneas. A difusão de espaços tradicionalistas no Estado e as multiplicações dos galpões crioulos nos quartéis do Exército e da Brigada Militar são fenômenos dessa aliança.

c) A lei que instituiu a Semana Farroupilha é de dezembro de 1964, determinando que os festejos e comemorações fossem realizados através da fusão estatal e civil, pela organização de secretarias governamentais (Cultura, Desportos, Turismo, Educação etc.) e de particulares (CTGs, mídia, comércio etc.).

d) Durante a Ditadura Militar, o Tradicionalismo foi praticamente a única "representação" com origem na sociedade civil que fez desfiles juntamente com as forças da repressão. 

e) Enquanto as demais esferas da cultura eram perseguidas, seus representantes censurados, presos, torturados e mortos, o Tradicionalismo engrossou os piquetes da ditadura — seus serviçais pilchados animaram as solenidades oficiais, chulearam pelos gabinetes e se responsabilizaram pelas churrasqueadas do poder. Esse processo de oficialização dos tradicionalistas resultou na "federalização" autoritária, com um centro dominador (ao estilo do positivismo), com a fundação do Movimento Tradicionalista Gaúcho , em 1967.  Autoritário, ao estilo do espírito de caserna dos donos do poder, nasceu como órgão de coordenação e representação. Enquanto o general Médici , de Bagé, era o patrão da Ditadura e responsável, juntamente com seu grupo, pelos trágicos anos de chumbo que enlutaram o Brasil na tortura, na execução, na submissão à censura, na expulsão de milhares de brasileiros para o exílio, os tradicionalistas bailavam pelos salões do poder. Paradoxalmente, enquanto muitos frequentadores de CTGs eram perseguidos ou impedidos de transitarem suas ideias políticas no âmbito de suas entidades, o Tradicionalismo oficialista atrelou o movimento ao poder, pervertendo o sentimento de milhares de pessoas que nele ingressaram motivados por autênticos sentimentos lúdicos de pertencimento e identidade fraterna.

f) Através da relação de intimidade com a ditadura, o MTG conseguiu "criar" órgãos estatais de invenção, difusão e educação tradicionalista, ao mesmo tempo que entregou, ou reservou diversos cargos “públicos”, para seus ideólogos, sob os títulos de “folclorista”, “assessor cultural” etc.

g) O auge do processo de colaboração entre a ditadura e o MTG foi a instituição do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore - IGTF, em 1974, consagrando uma ação que vinha em operação desde 1954. A missão era aparentemente nobre: pesquisar e difundir o folclore e a tradição. Mas do papel para a realidade existe grande diferença. Havia um interesse perverso e não revelado. A constituição do quadro de pessoal, ao contrário da inclusão de antropólogos, historiadores da cultura, pessoas habilitadas para a tarefa (que deveriam ser selecionadas por concurso público), o critério preponderante para assumir os cargos era, antes de tudo, a condição de tradicionalista. Assim, um órgão de pesquisa, mantido pelo dinheiro público, transformou-se em mais uma mangueira do MTG. Com o passar dos anos, os governos que tentaram arejar o IGTF, indicando dirigentes menos dogmáticos, invariavelmente entraram em tensão com o MTG.

h) Essa rede de usurpação do público pelo Tradicionalismo, por fim, atingiu a força de uma imanência incontrolável. Em 1985, já na redemocratização, o MTG conseguiu que a Assembleia Legislativa instituísse o Dia do Gaúcho, adotando como tipo ideal o “modelo” tradicionalista.

i) Em 1988, com uma manipulação jamais vista na vida republicana, o MTG se mobilizou pela aprovação da lei estadual que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de folclore; na regulamentação, a lei determinou que o IGTF exercesse a função de suporte técnico, sem capacitá-lo pedagogicamente. De fato, passou a ocorrer uma relação direta entre as escolas e os CTGs. Dessa maneira, o Tradicionalismo entrou no sistema educacional, transgredindo a natureza da escola republicana como lugar de estudo e saber, e não de culto e reprodução de manuais. Hoje, os alunos são adestrados pela pedagogia de aculturação e cultuação tradicionalista.

j) Por fim, em 1989, a roupa tradicionalista recebeu o nome de pilcha gaúcha e foi convertida em traje oficial do Rio Grande do Sul, conforme determinação do MTG.


IHU On-Line - Pouco se fala da relação do tradicionalismo com a ditadura. A que se deve isso? 

Antônio Cecchin - Porque ambos, tradicionalismo e ditadura, são irmãos siameses. Tendo o mesmo caráter ditatorial, impositivo, sem nenhum respeito para com a história, tornou-se perigoso tomar posição contra algo considerado contrário à opinião pública vigente. Infelizmente não dispomos de uma mídia de viés inteiramente popular, que pudesse somar todo o pessoal de esquerda deste nosso Estado sulino, como alternativa à mídia dominante e como um contraponto permanente, apregoando constantemente a verdade histórica a ser ensinada nas escolas e constantemente alimentada com pesquisas históricas, consagrando como lugares históricos os vestígios tanto como sinais dos horrores, como lugares de martírio.

Esse falso tradicionalismo gaúcho, filho adotivo da ditadura, teve todos os meios possíveis e imagináveis ao alcance da mão, com a finalidade de tornar-se avassalador, como de fato aconteceu. Foi internalizado à força como cultura de raiz nossa, graças ao poder principal dessa nossa fase do capitalismo financeiro quando, na realidade, é uma grande mentira. A mídia conservadora se encarregou de consagrar como real aquilo que era apenas fruto da imaginação, pois se trata de algo que acabou absorvido também pela elite dominante no nosso Estado e como tal continua se impondo.

A ditadura e o farroupilhismo se sentem bem ao gosto da colonização portuguesa que durou quatro séculos ininterruptos, no Brasil, desde o ano de 1500 até o ano de 1888 quando, apenas teoricamente, foi suprimida a escravatura. Hoje, vivemos ainda sob a hegemonia das elites escravocratas ou do conservadorismo brasileiro, filhote do colonialismo dos “descobridores” da terra brasilis. Haja vista o golpe que esse Brasil conservador acaba de infligir à nossa presidente Dilma , como exemplo atualíssimo de mais um bote certeiro promovido contra as classes populares. 


IHU On-Line - A ditadura se beneficiou do conservadorismo político e da inspiração oligárquica do tradicionalismo?

Antônio Cecchin - O conservadorismo é a própria ideologia das ditaduras mundo afora. Essa ideologia das elites do sistema capitalista constantemente se reforça com as lutas que sempre abraçam ao longo da história. Por exemplo, quando o governo Lula  propôs a campanha do desarmamento, vimos e assistimos falando na televisão alguns dos grandes próceres do gauchismo farroupilhista ridicularizando a campanha pró-desarmamento, no âmbito do Rio Grande do Sul, porque, segundo eles, é próprio e fundamental para o tradicionalismo gaúcho a faca na bota e o 38 na cintura, como useiros e vezeiros de expressões como esta: “Porque nos gordos eu dou de talho e nos magros eu dou de prancha!”. Ao mesmo tempo exaltando, por exemplo, o rito da dança dos facões ou exaltando sempre a constante inventividade de novos ritos. Inventividade essa que foi fatal quando na boate Kiss, na cidade de Santa Maria, inventavam uma dança de salão acompanhada de fogos.

Qual foi o resultado? Por exemplo, a vergonha que passamos como Estado do Rio Grande do Sul, onde tivemos uma maioria da população contrária à lei do desarmamento, ou então a tentativa que fizeram de, logo depois da ditadura, nas grandes partidas de futebol, nos estádios, ao lado do canto do Hino Nacional, cantar também o Hino da Revolução Farroupilha  com o “sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra!”. São todos esforços inauditos para um falso orgulho nativista.


IHU On-Line - O senhor afirmou que, quando lhe perguntam se é gaúcho, se declara guarani-missioneiro. Por quê?

Antônio Cecchin - Porque através do povo guarani-missioneiro o Rio Grande do Sul dos Sete Povos das Missões entrou decididamente a fazer parte da geografia e da história universal. Os iluminados da Revolução Francesa de 1789 buscaram ideias para a luta em prol dos direitos humanos nos povos indígenas, particularmente o povo guarani das Missões.

Voltaire , que é conhecido como o maior ateu da história, anticlerical grau máximo, não teve vergonha de, em seu romance intitulado Cândido, enviar esse seu herói para visitar as Missões Jesuíticas dos Sete Povos e adjacências, a fim de constatar pessoalmente o “grande triunfo da humanidade” (Le véritable triomphe de l’Humanité).

Alguns anos atrás, quando, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na sala de conferências Ignácio Ellacuria, esteve um conferencista que vinha da cidade de Santiago de Compostella, a primeira frase que ele disse, ao saudar os ouvintes, referindo-se às Missões dos Sete Povos, que tinha orgulho de vir, pela primeira vez, a um lugar da América Latina no qual a presença espanhola dos inícios da descoberta havia dado certo. É um belo exemplo do tipo de orgulho sadio pelas Missões que nossa juventude poderia ostentar e divulgar.

Para esse legítimo orgulho civil e religioso muito contribuem livros como O pedido de perdão ao triunfo da humanidade (Google Books, 2009), do pesquisador José Roberto de Oliveira , ou então outro livro intitulado Deus morto no pampa (Biblioteca Pública Municipal D. Demétrio, 2007), obra fruto de tese universitária em que fica demonstrado que o farroupilhismo se substituiu ao missioneirismo. Foi praticamente morto o Paraíso Terrestre Original do Rio Grande que foram as Missões Jesuíticas , e como nunca nenhum crime fica impune, a criação avassaladora de CTGs como, por exemplo, em Caxias, onde existem nada menos de 86, como uma espécie de saudade daquele paraíso inicial, como uma espécie de réplica única no mundo todo, das Comunidades Cristãs do tempo dos Atos do Apóstolos, de que fala a Bíblia.


IHU On-Line - O fato aclamado como o principal da história do Rio Grande do Sul é a Guerra dos Farrapos. A experiência missioneira não foi pouco valorizada na construção da identidade gaúcha?

Antônio Cecchin - A nossa tradição guarani-missioneira vinha crescendo naturalmente, da maneira como aconteceu com todos os povos, isto é, como um processo histórico em que vão se somando fatos, costumes, ritos etc. Nunca abruptamente como aconteceu aqui com o tal de tradicionalismo: um grupinho de estudantes do colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, no ano de 1948, filhos de grandes latifundiários interioranos, com saudades da vida das fazendas de suas próprias famílias, decidiram criar desde a estaca zero um gauchismo inteiramente artificial, dando-lhe um caráter eminentemente guerreiro, sem se dar conta de que é um tradicionalismo ridículo e vazio do conteúdo de valores que caracterizam uma cultura autêntica. A nosso ver, a preocupação central desses estudantes foi dotar o Rio Grande do Sul de uma tradição eminentemente guerreira. 

Na tal Guerra dos Farrapos, os chefes farroupilhas chegaram ao cúmulo de duelarem entre si; em vez deles próprios, os grandes fazendeiros, lutarem na frente de batalha, obrigaram seus escravos negros a pegarem em armas, prometendo-lhes liberdade total quando a guerra terminasse. Infelizmente nada disso aconteceu. Acabaram os farroupilhistas sendo escravocratas antes da guerra, durante a guerra e também depois, com a guerra terminada. Quase absolutamente nada se fala da degola dos Lanceiros Negros em Porongos . 

A beleza da história guarani-missioneira, na qual brilha como um Facho de Luz a iluminar para sempre os caminhos do Rio Grande do Sul, a figura de São Sepé Tiaraju  é exaltada pelo escritor gauchesco Manoelito de Ornellas  sonhando Sepé Tiaraju como a utopia e o profetismo que convém a toda a juventude brasileira.


IHU On-Line - Entre os vultos históricos do Rio Grande do Sul, usualmente aparecem os heróis farroupilhas. Por que Sepé Tiaraju é pouco homenageado?

Antônio Cecchin - Sepé Tiaraju é um dos poucos, talvez até o único herói-santo popular deste nosso Rio Grande do Sul. Para a opinião pública hegemônica, que é a do conservadorismo das elites no poder, como sucessoras que são das elites escravocratas portuguesas da colonização inicial, Sepé é um herói muito perigoso porque, desde que surgiram no Brasil, particularmente na Igreja Católica, a opção pelos pobres, as Comunidades Eclesiais de Base, a catequese e a Teologia da Libertação , aproveitamos nosso herói-santo-popular para o empoderamento dos nossos Movimentos Sociais tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra - MST, a Via Campesina, os movimentos de mulheres, o Levante da Juventude, os catadores etc.

“Quem tem fome tem pressa!”, dizia o Betinho com suas campanhas nacionais como o Natal Sem Fome e outras. Hoje, está aí nosso papa Francisco a apregoar mundo afora que devem acontecer no mundo os três tês: ninguém sem terra, ninguém sem teto e ninguém sem trabalho.

Esses novos movimentos populares não costumam brincar em serviço. O movimento dos sem-terra não cessa de ocupar terras e repartições públicas, o movimento das mulheres acabou com as mudas de eucalipto em Barra do Ribeiro, os catadores de Porto Alegre e da Região Metropolitana não cessam de ocupar elefantes brancos, e por aí afora.

Lembro os 250 anos do martírio de Sepé Tiaraju, ano de 2006, quando fui convidado pelo amigo Lauro Quadros , no programa Polêmica, que ele mantinha na RBS, o tema foi: “Sepé Tiaraju: Herói ou Vilão?”. Depois de me esbaldar na defesa de São Sepé Tiaraju como herói e santo, no final do programa, quando da proclamação do resultado dos telefonemas dos ouvintes, amarelei ao saber que Sepé Herói e Santo perdeu por completo a parada. O resultado foi: herói-santo 20% e vilão 80%.


IHU On-Line - Deseja acrescentar algo mais?

Antônio Cecchin - Nosso bispo poeta e profeta dom Pedro Casaldáliga  costuma repetir constantemente que uma comunidade que não venera seus mártires não merece nem de longe o nome de comunidade. 

Que diferença entre “heróis” farroupilhistas e heróis missioneiros! Entre esses últimos, temos três deles que já foram proclamados santos pela Igreja Católica: Roque Gonzáles , Afonso Rodriguez  e João del Castilho . Foram eles os primeiros padres que evangelizaram o povo guarani, povo-raiz de nosso Rio Grande. O que acontece com eles? A partir da Região Missioneira, estou informado de que, nem lá nas Missões e muito menos pelo Rio Grande afora, eles são invocados.

Sepé Tiaraju no dia mesmo de sua morte foi canonizado pelo povo guarani. No ano de 2006, quando dos 250 anos do martírio, o recanonizamos popularmente através dos movimentos populares e das pessoas de boa vontade. Pressionamos então nossos governos a fim de que desobstruíssem o caminho de Sepé rumo aos altares, proclamando Sepé herói indígena, guarani-missioneiro, rio-grandense e também brasileiro. Retirado o entulho, no dia 10 de novembro de 2015 entregamos ao bispo de Santo Ângelo o documento Postulação a fim de que o envie a Roma, para a Sagrada Congregação para a Causa dos Santos, a fim do reconhecimento oficial da santidade de Sepé.

Sepé, como herói, tem direito a monumentos em todas as praças públicas deste estado e deste país. Como santo, tem direito aos altares e ao culto dos devotos em todas as igrejas do mundo.

Em face da ignorância generalizada em relação à autêntica tradição cultural do povo raiz do Rio Grande que é o povo guarani-missioneiro, em boa hora o Instituto Humanitas Unisinos - IHU está lançando uma campanha de esclarecimentos da nossa população do Rio Grande do Sul a respeito da autêntica identidade nossa, absolutamente contrária à identidade gauchesca farroupilhista, que é apenas um arremedo identitário.

Temos que desencadear pesquisas e mais pesquisas nas nossas universidades que, por enquanto, “não estão nem aí”.

Bartomeu Melià , o maior especialista em povo guarani, disse-me no ano de 2006 que, no mundo inteiro, nas universidades, se elaboram de 15 a 20 teses anuais sobre as Missões Jesuíticas da América Latina. E aqui, quantas são?

Como conclusão a esta entrevista sobre identidade gaúcha, faço minhas as palavras do escritor rio-grandense Manoelito de Ornellas em seu livro Tiaraju – o santo e herói das tabas (Porto Alegre: Editora Alvorada,1966):

 

 “Quando os povos não encontram na História a figura de sua glória imortal ou de sua própria grandeza, vão buscá-la nos mundos mágicos da fantasia. Ainda assim, o historiador não tem o direito de eliminá-la. E se o historiador quiser destruí-la, cabe ao artista restituir-lhe o vigor e a beleza da vida. Foi o conselho de Cassiano Ricardo.

O Rio Grande do Sul não necessita criar uma figura imaginária. Pode oferecê-la ao Brasil, em carne e osso, na sua realidade histórica. Ela é tão grande, que sua grandeza sobressaiu da história para entrar na lenda, e não saiu da lenda para entrar na história.

Sepé Tiaraju perece às portas dos Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai, à vanguarda dos índios missioneiros, enfrentando os exércitos imperialistas de Espanha e Portugal, em defesa do território da Pátria natural, ainda quase virgem do pé civilizado do europeu, madrugando para a América; pátria telúrica, politicamente indefinida, mas pátria; terra onde nascera, chão nativo, onde plantara seu rancho e acendera seu fogo.

Sepé é o primeiro pronunciamento de uma consciência rio-grandense. Morreu lutando contra a Espanha e Portugal, porque a terra que defendia era sua e de seus irmãos, tinha dono, fora de seus pais e seria de seus filhos.

Sepé ensina à mocidade do Brasil que esta terra tem dono e convida os jovens brasileiros a preservar autônoma, livre, soberana e cristã, esta pátria que nós recebemos de nossos maiores.

Que a figura de Sepé Tiaraju, morrendo no solo gaúcho, pela terra rio-grandense, trazendo ao peito a cruz de seu rosário, seja uma eterna visão seráfica ao espírito livre da mocidade do Brasil”. ■ 


Leia mais...

- Os pobres me evangelizaram. Entrevista com Antônio Cecchin, publicada na revista IHU On-Line nº 223, de 11-07-2007. 

- São Sepé Tiaraju: exemplo heroico guarani. Entrevista com Antônio Cecchin, publicada na revista IHU On-Line nº 331, de 31-05-2010.

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