Edição 493 | 19 Setembro 2016

Gauchismo busca integrar diferentes grupos, e não representar a diversidade

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Vitor Necchi

Os tradicionalistas são os sujeitos mais fortes e organizados na disputa pela formulação de sentidos em torno da identidade gaúcha, observa a antropóloga Maria Eunice Maciel

Há um fenômeno que incide diretamente no entendimento que se tem acerca da identidade gaúcha: o gauchismo. Conforme a antropóloga Maria Eunice Maciel, ele “abarca diversas práticas e manifestações culturais que são construídas em torno da figura do gaúcho”. No gauchismo, “não há a preocupação de representar a diversidade dos grupos sociais, e sim de integrá-los”. Neste processo, o tradicionalismo é o grupo mais forte e organizado na formulação de sentidos. Há muitos agentes operando neste processo e divulgando as representações, como a mídia e a escola. Maria Eunice faz uma ressalva: “Precisamos separar duas coisas: a cultura tradicional e a cultura tradicionalista”.

Como a discussão em torno da identidade gaúcha é tema recorrente, é oportuno prestar atenção à distinção feita pela antropóloga entre cultura tradicional e cultura tradicionalista. “A identidade que o tradicionalismo opera é aquela construída dentro do seu movimento e é, sim, cristalizada, remetendo a um passado idealizado em busca do que é chamado de autenticidade”, afirmou Maria Eunice em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Por outro lado, identidade é uma construção social, “está em permanente mutação, não podendo ser pensada como algo cristalizado”. Isso ajuda a entender por que há tantos tensionamentos em torno do tema.

Um dos efeitos desta disputa de visões é que manifestações tradicionais e folclóricas do Rio Grande do Sul estão desaparecendo, enquanto o gauchismo cresce. Um dos fatores que explica essa proeminência é que o gauchismo “permite que as pessoas que dele participam possam incorporar este ‘outro’. Assim, qualquer um pode se identificar (ou ter como modelo ou ponto de referência) alguém com fortes conotações positivas segundo seus próprios valores”.

Maria Eunice Maciel é doutora em Antropologia Social pela Université René Descartes, Paris V, Sorbonne, mestra em Antropologia Social, especialista em História do Rio Grande do Sul e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde é professora titular de Antropologia. Trabalha com identidade, representação e imaginário, alimentação, indumentária e maneiras de viver. Representa a International Commission on Anthropology of Food – ICAF no Brasil.


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Identidades não são estáticas, elas estão permanentemente tensionadas, em processo. No caso da gaúcha, fica-se com a impressão de que os ideólogos do tradicionalismo buscam construir e preservar uma identidade pétrea. Para além deste projeto de um grupo específico, como pode ser definida a identidade gaúcha?

Maria Eunice Maciel - Identidade é uma construção social, das pessoas relacionando-se entre si. Assim, ela está em permanente mutação, não podendo ser pensada como algo cristalizado. No Rio Grande do Sul, observamos a existência de um fenômeno chamado de gauchismo, que abarca diversas práticas e manifestações culturais que são construídas em torno da figura do gaúcho. É uma noção abrangente e multifacetada. O tradicionalismo é um dos grupos que atua neste sentido, sendo o mais forte e organizado. As representações sobre o gaúcho construídas por ele são muito fortes, sendo divulgadas pela mídia, pela escola e por outros meios a ponto de se tornarem as mais conhecidas. 

Porém, precisamos separar duas coisas: a cultura tradicional e a cultura tradicionalista. A identidade que o tradicionalismo opera é aquela construída dentro do seu movimento e é, sim, cristalizada, remetendo a um passado idealizado em busca do que é chamado de autenticidade. No entanto, o movimento atualiza constantemente suas práticas culturais e é heterogêneo. Mas existe uma cultura tradicional gaúcha que está por aí e que pode ser estudada.


IHU On-Line – Stuart Hall afirma que uma identidade se estabelece em oposição a algo. A dos sul-rio-grandenses se firmou em oposição à do restante do Brasil ou esta proposição não passa de um equívoco?

Maria Eunice Maciel - Não é apenas Stuart Hall  quem afirma isso. A ideia da construção por contraste é muito antiga na antropologia e, só para citar alguns, as teorias de Fredrick Barth  sobre fronteiras e, no Brasil, de Roberto Cardoso de Oliveira  sobre fricção interétnica, que hoje já são consideradas clássicas. Lévi–Strauss  considerava que a identidade era um ponto de referência, estando sempre a se construir e reconstruir. No sul do Brasil, ela se constrói a partir de estabelecer uma diferença entre os demais brasileiros e entre os gaúchos platinos. É bom lembrar que, nestes países, gaúcho não é um gentílico como no Rio Grande do Sul. Gaúchos são os homens do campo ou os antepassados. Há uma grande diferença. No Rio Grande do Sul, ele, que é uma figura emblemática, foi elevado à condição de herói mítico, no sentido antropológico. Interessante ver que aqui, hoje, o termo gaúcho implica no gentílico (todos os nascidos no Rio Grande do Sul), no homem do campo ligado ao pastoreio, mas também no que chamo de “figura emblemática”, um gaúcho idealizado no tempo e no espaço.


IHU On-Line – A identidade gaúcha está muito vinculada a uma ideia cristalizada de tradição. A noção de tradição adotada não é improvável demais, pois sugere um elevado grau de pureza ou autenticidade, desconsiderando que o entendimento do passado é processado em um presente específico?

Maria Eunice Maciel - Lembro uma citação de um filósofo que dizia que a tradição é o que os homens do presente pedem aos homens do passado. Creio que é de Ortega y Gasset . O próprio Lévi-Strauss, ao analisar os ritos de Natal, dizia que sua existência não poderia ser devido a uma certa “viscosidade histórica”, mas porque tais ritos do passado fariam sentido aos homens do presente. Creio que é por aí. Este passado do gaúcho apresentado é um passado idealizado, mítico. Um tempo e um momento especiais que ancoram uma narrativa significativa para os gaúchos (gentílico) do presente.

Podemos ver este aspecto da “tradição” na recriação e/ou invenção de várias manifestações culturais. Os fundadores do Tradicionalismo empreenderam várias pesquisas folclóricas, pois o folclore do Rio Grande do Sul era pouco estudado. Um dos casos foi a chula, que, segundo eles, é uma dança semelhante a várias danças de bastões que existem no Brasil. No entanto, corre no gauchismo que a chula era “uma disputa que os farroupilhas faziam pela mão de uma prenda”. Segundo alguns, isso é devido a uma apresentação de chula em um evento de cultura gaúcha, mas o que interessa aqui é que esta definição é mais atraente do que o fato de ser algo semelhante a uma dança de bastões. Assim, publique-se a lenda.

Vou tentar exemplificar a questão da tradição por outro lado. Assisti, há alguns anos, no município de Mostardas, à reconstrução de uma cavalhada  que atraiu um grande número de pessoas da região. Foi extremamente interessante, pois era algo que acontecia no passado, mas estava se perdendo, restando apenas nas memórias dos mais velhos. Tanto que era preciso que alguém fosse explicando no microfone e dando os parâmetros do que fazer. Quando a manifestação é viva, ela se dá por transmissão direta, e as pessoas vão mudando, introduzindo novidades, deixando de lado alguns aspectos, em suma, transformando. Mas o que interessa na reconstituição é o entendimento de que esta manifestação era algo que pertencia e unificava estas pessoas, algo reconhecido como seu, um certo tipo de herança, um patrimônio cultural que estava esquecido. Reconstituí-lo era algo de grande importância para esta comunidade, era um ponto de referência que indicava “isso é nosso”/“isso somos nós”. Espero que ainda estejam encenando a cavalhada que, aos poucos, certamente, vai se adaptando.


IHU On-Line – Por que o gaúcho tem um apego demasiado ao passado, principalmente a um passado idealizado e romantizado? Porque o presente é hostil e árido?

Maria Eunice Maciel - Não necessariamente. As construções identitárias se referem, em grande medida, ao passado para ter algo que unifique o grupo, no caso, uma história em comum que vincule o território ao habitante deste território. É tentar criar algo singular em um universo plural procurando o que chamam de “raízes”. Este processo é político e pode levar a ações xenófobas. É só vermos o que ocorre hoje em outros países que tentam “preservar sua identidade” construindo muros bem concretos para impedir recém-chegados. No Brasil e no Rio Grande do Sul, cuja diversidade é muito grande, o que significa “raízes”? 


IHU On-Line – A busca pela pureza dos tradicionalistas chegou a um ponto em que o Movimento Tradicionalista Gaúcho - MTG criou em 1999 o ISO Tchê, que atesta a autenticidade gaúcha em manifestações culturais. Os dirigentes do MTG pretendiam que o selo indicasse, por exemplo, que determinado estabelecimento servia um churrasco autêntico. Isto não é exagerado, caricatural?

Maria Eunice Maciel - Dentro da lógica das pessoas que o instituíram, não, mas a partir dos gaúchos que não fazem parte do movimento, sim. Tanto que sofreu não apenas críticas, mas muito mais deboches e risadas. Hoje nem se fala mais nisso. Se fosse colocar ISO em todas as manifestações da cultura gaúcha, pensando em como eram no passado, não sobraria nada. A começar pelo próprio MTG. Por exemplo, o vestido de prenda, que foi criado na década de 1950, com inspiração difusa e que muito pouco tem a ver com o que a mulher rio-grandense usava no passado, que é a referência. Tanto que é chamado de “vestido da mulher tradicionalista”. Interessante é observar que os fundadores do Tradicionalismo, no final dos anos 1940, não estavam interessados em estabelecer tantos parâmetros pétreos. Tanto que criaram o vestido de prenda para que as mulheres pudessem participar junto com os homens, que portavam bombachas.

É também interessante lembrar que a bombacha era e é roupa de uso no campo, roupa de trabalho, excelente para montar a cavalo. Seu uso na cidade e em bailes tem outro sentido, que só pode ser entendido dentro do entendimento do “culto” a que se propõe o Tradicionalismo. Lembro de uma ocasião em que um conselheiro do MTG manifestou-se contra o uso de calcinhas pelas mulheres de um dado conjunto de danças (o que foi observado em um dos volteios da dita dança) e que, em nome da autenticidade derivada do passado, deveria estar usando uns calções do tipo bombachinhas. Bem, já que o vestido era uma construção recente, o uso de calções do tipo “histórico” seria uma contradição. Mas não foi assim visto, e muitas das mulheres dos grupos de dança hoje tratam de usar os tais calções. 


IHU On-Line – A criação de uma identidade cultural acaba estabelecendo uma generalização, ao tentar unificar sobre uma mesma representação sujeitos distintos. Neste sentido, a representação clássica do gaúcho — o macho da região da Campanha, afeito às lides pastoris — não contempla o contingente de pessoas vinculadas ao Rio Grande do Sul, por exemplo, descendentes de alemães, de italianos, de negros e de índios, além da população urbana, sem falar em outras possibilidades de agrupamentos, como mulheres, gays etc. Ao mesmo tempo, muitos desses sujeitos dissonantes se sentem abrigados por esta identidade hegemônica. O que explica isso? Uma necessidade de pertencimento?

Maria Eunice Maciel - É em função desta representação do gaúcho que a chamo de “figura emblemática”. No gauchismo, não há a preocupação de representar a diversidade dos grupos sociais, e sim de integrá-los. E de fato conseguem, pois há manifestações gaúchas referenciadas no pampa em todas as regiões com descendentes de todos os povos que formaram o que hoje é o Rio Grande do Sul. Inclusive, há CTGs de negros, o que é um caso complicado. O gauchismo, enquanto movimento, é forte nas cidades, mas não quer dizer que não seja frequentado pelos habitantes do mundo rural. Mas creio que sua força é derivada a possibilitar a “vivência de um outro”. Explico melhor: ao se referir a um gaúcho idealizado, o gauchismo permite que as pessoas que dele participam possam incorporar este “outro”.

Assim, qualquer um pode se identificar (ou ter como modelo ou ponto de referência) alguém com fortes conotações positivas segundo seus próprios valores. Um sujeito que é apenas uma pessoa comum pode, aos fins de semana, vestir uma bombacha e transformar-se. Não é apenas o aspecto lúdico. Observa-se até mesmo uma mudança corporal nestas pessoas. O mesmo para as mulheres e, em especial, para as meninas. O vestido longo, enfeitado, faz com que retome determinados gestos e uma dada corporalidade que faz parte da ideia de feminilidade “tradicional”. O “pertencer” implica no “ser”, ou no “vir a ser”, tornar-se. Assim, os gaúchos genéricos, pois nascidos no Rio Grande, encarnam o herói emblemático, segundo seus próprios valores dentro do gauchismo.


IHU On-Line – Após a realização da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, circularam críticas de que o espetáculo apresentado tentou celebrar a identidade brasileira, mas deixou de fora elementos do Sul, dando prioridade ao Nordeste e ao Sudeste. Isto é mais um indício de que os gaúchos estão apartados de determinado entendimento acerca da identidade nacional?

Maria Eunice Maciel - Difícil dizer. Mas o Nordeste possui uma cultura popular muito rica e viva. Representar o Rio Grande do Sul seria o quê? Levar um grupo de dança? Uma chula? Creio que os organizadores fizeram uma escolha, voltada para o Nordeste e o Sudeste. O Norte, o Centro–Oeste e o Sul ficaram de fora. Ou alguém pensa que os índios do boi-bumbá  do Parintins representam os brasileiros nativos? E o Centro–Oeste é uma região também riquíssima culturalmente. Houve uma escolha. Sobre o Sul, penso que seria difícil pensar em como representá-lo fora do gauchismo, dada a força que este assumiu. 

Manifestações tradicionais e folclóricas do Rio Grande do Sul estão cada vez mais desaparecendo, e o gauchismo crescendo. Já citei a Cavalhada, mas cito também os clubes de tiro ou corais da região alemã, que foram muito numerosos, mas que hoje estão sendo reduzidos em número.  Outras manifestações, tais como o bumba meu boi daqui, também está desaparecendo. Sim, existia e hoje resta apenas um no município de Encruzilhada do Sul. No interior de Piratini, havia a bicharada. Continuará existindo? Os Ternos de Reis  estão se apresentando em palcos, virando “espetáculos”. E assim muitas outras manifestações. O próprio carnaval de rua está cada vez mais cerceado. Porém, o gauchismo cresce, e isso tem um significado.


IHU On-Line – Não são raras manifestações de que os gaúchos se sentem excluídos das representações que se faz do Brasil. Ao mesmo tempo, a perspectiva do separatismo paira no imaginário local. É ambivalente: querem se separar, mas reclamam que não se sentem acolhidos pelo restante do país. O espaço periférico que os gaúchos pensam ocupar no imaginário do que entendem por Brasil deve-se mais aos próprios gaúchos ou aos brasileiros em geral?

Maria Eunice Maciel - Nossa figura emblemática é internacional, assim, os “gaúchos brasileiros” têm um processo particular de construir sua identidade. Mas creio que os gaúchos acentuaram as diferenças com os demais brasileiros. Não é raro ouvir-se aqui louvações do tipo “os gaúchos são melhores” em detrimento dos outros brasileiros, em especial os nordestinos. É comum, inclusive, reproduzir a ideia de que aqui há um ethos de trabalho, enquanto no restante do país (ou, pelo menos, no Nordeste) haveria um ethos de festa. Ou seja, nós trabalharíamos para outros usufruírem. Muitos governantes locais reforçaram este discurso de maneira, diria, inconsequente. Qualquer um que viaje pelo Nordeste vê que a região mudou e muito. Vai dizer para o trabalhador baiano no Polo Petroquímico de Camaçari que baiano é preguiçoso, não trabalha e gosta só de festa e espera a resposta. Dizer uma coisa desta é puro preconceito. É um discurso construído pelas elites em relação aos seus escravos, considerados preguiçosos, e como a Bahia e o Nordeste, em particular, possuem muitos descendentes de pessoas que foram escravizadas, o preconceito continua. 

A preguiça do escravo, e dos negros em geral por extensão, é um tema fortemente ancorado no discurso sobre identidade nacional construído pelas elites brasileiras. Só que, colocando-se no lugar desta pessoa que era escravizada, quem estaria pronto e ágil para trabalhar? Não sei vocês, mas eu certamente que não. Mesmo assim, foram estas pessoas escravizadas que construíram, com o seu trabalho, o que hoje é o Brasil. Todos nós, mesmo aqueles recém-chegados, mas que aqui vivem, temos uma dívida com eles.


IHU On-Line – Nos últimos tempos, suas pesquisas tratam da antropologia da alimentação. Nesta entrevista, tratamos da identidade gaúcha. O que a alimentação do gaúcho revela sobre o rio-grandense?

Maria Eunice Maciel - A comida, ou seja, a alimentação culturalizada, diz muito sobre um povo. O churrasco gaúcho, não aquele que é servido em churrascaria, mas aquele em família ou grupo de amigos, é o que chamo de “manifestação eloquente” e diz muito sobre a nossa sociedade. O fato de ser sempre um assador homem (com honrosas exceções), a organização espacial, até as vestimentas, dizem algo e cabe a nós interpretarmos o que está sendo dito. Mas este assunto é grande e fica para outra vez.


IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Maria Eunice Maciel - Quero recomendar uma leitura, de Barbosa Lessa , a quem tenho o maior respeito e consideração e quem muito estudou as manifestações culturais no Rio Grande, assim como Paixão Côrtes  e Glaucus Saraiva . Também foram eles que criaram o Tradicionalismo. Trata-se de um livro pequeno, mas esclarecedor: Nativismo, editado pela L&PM. Ali estão as bases para se entender o que é a cultura tradicionalista, em geral tomada como se esta fosse a cultura tradicional rio-grandense.■

 

Leia mais...

- Gauchismo, tradição e Tradicionalismo. Artigo de Maria Eunice Maciel, publicado em Cadernos IHU Ideias, número 87.

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