Edição 491 | 22 Agosto 2016

Getúlio e Lula: aproximações, distanciamentos, ganhos e limites de duas Eras

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João Vitor Santos | Edição Leslie Chaves

Para Maria Izabel Noll, apesar de ambos serem marcados por um perfil de liderança popular, Getulismo e Lulismo são dissonantes quanto às suas lógicas políticas

A partir da ideia de populismo, frequentemente a trajetória de Getúlio Vargas é recuperada para fazer referência a Luiz Inácio Lula da Silva. Entretanto, de acordo com a historiadora, doutora em Ciência Política, professora e pesquisadora da área, Maria Izabel Noll, “o conceito de populismo perdeu muito de sua capacidade explicativa ao ser utilizado para personagens e momentos muito diferentes entre si”. Considerando essa questão, todavia, a pesquisadora percebe esse traço e também a preocupação com a promoção de direitos sociais em ambos os líderes políticos. Por outro lado, ela entende que “as duas figuras — Getúlio e Lula — representam modelos bem diferentes de ‘cultura política’. Apesar de pernambucano, Lula é essencialmente paulista. E Getúlio era um gaúcho da fronteira que sabia perfeitamente o que isso significava. O Rio Grande do Sul é brasileiro por opção”, ressalta.

Ao longo da entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Maria Izabel Noll faz uma reflexão a respeito das Eras Vargas e Lula, tendo em perspectiva o momento político que o Brasil está vivendo ao interpretar os discursos que emergem em momentos de crise como o atual. “Há no Brasil uma diferenciação entre dois discursos, dois grupos políticos, duas maneiras de pensar a própria sociedade. A Era Vargas (ou as associações que a ela são feitas) é criticada por gastos sociais excessivos, direitos trabalhistas, maior protagonismo estatal e acesso mais democrático às instâncias de poder. Há problemas com esse modelo? Claro que há, mas não existem modelos perfeitos. Quando há uma redução nos recursos disponíveis pelo Estado, esses gastos passam a ser vistos como comprometedores do desenvolvimento e o outro grupo se legitima com propostas de ‘colocar a casa em ordem’. Leia-se: reduzir os gastos sociais”, conclui.    

 

Por ocasião da memória do dia da morte de Getúlio Vargas, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, promove a conferência e o debate do tema “Getúlio Vargas e o positivismo”, a ser proferida pela pesquisadora, no dia 23 de agosto, das 17h30min às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, campus São Leopoldo da Unisinos. 

 

Leia mais sobre o evento.

 

Maria Izabel Noll é graduada em História e mestra em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutora em Ciência Política pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, França. Também foi professora visitante no Center for Latin American Studies na Universidade de Stanford, Estados Unidos, e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, França. É professora no Departamento de Ciência Política e no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFRGS e atualmente está na vice-direção do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH da UFRGS e na direção do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Política Rio-Grandense - Nupergs. 

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Como compreende o positivismo? Como ele se faz presente na política de Getúlio Vargas ?

Maria Izabel Noll - O positivismo no Rio Grande do Sul veio, principalmente, através dos alunos que frequentaram a Faculdade de Direito de São Paulo. Falo de Júlio de Castilhos  e Assis Brasil , entre outros. Eram leitores de Comte  e, no caso de Castilhos, uma leitura particular de Comte que repassou para a versão de republicanismo que vigorou dali para a frente no RS. A esse conjunto de ideias chamou-se “castilhismo” . Getúlio, como membro do Partido Republicano Rio-Grandense, bebeu nessas ideias e defendeu o castilhismo. Mas, ao que indica sua biblioteca e citações em trabalhos e discursos, ele não era um admirador de Comte. Aproximava-se mais de Spencer  e até de Saint-Simon , onde teria buscado sua visão evolucionista da História e a importância do proletariado e dos industriais na sociedade moderna. 


IHU On-Line - Quais os contextos políticos em que emergem os governos de Getúlio Vargas? Como entender os movimentos de Vargas em cada uma das fases?

Maria Izabel Noll - Joseph Love  diz em seu livro O regionalismo gaúcho (São Paulo: Perspectiva, 1975) que a maior capacidade de Getúlio era observar para que lado iam os acontecimentos e, se colocando à frente, liderá-los. Creio que é uma verdade. Pelo menos a partir de 1930, isso é muito claro. Daí ser acusado, muitas vezes, de esconder o jogo, demorar a se definir ou fazer duplo papel — caso da II Guerra.  Podemos ver três contextos diferenciados na sua trajetória política. O primeiro contexto importante, ainda no RS, é aquele que permite sua eleição para o governo do estado em 1928. Ele emerge como pacificador, coisa que Borges de Medeiros  não conseguiu realizar, e permite voz à oposição, mostrando uma nova capacidade negociadora ao grupo republicano. 

O segundo contexto é decorrência do primeiro. Pela primeira vez com um Estado unificado, o RS pode indicar um candidato à Presidência da República. Não apenas o rompimento entre Minas e São Paulo permite essa decisão, mas a apresentação de uma candidatura viável e apoiada por todos (ou grande maioria) leva Getúlio à liderança da Aliança Liberal . 

Finalmente, o terceiro e mais diferenciado contexto é o da volta ao poder “nos braços do povo”. Levado ao governo devido ao capital político acumulado nos anos 1930 e 1940, este momento apresentará desafios imensos cujo desfecho será o suicídio em 1954. 


IHU On-Line - Como compreender os movimentos políticos internacionais de Vargas?

Maria Izabel Noll - Os movimentos internacionais só podem ser compreendidos se nos reportarmos a um período marcado por grandes mudanças: Crise de 1929 , ascensão do nazi-fascismo , crescimento da influência comunista, Segunda Guerra Mundial , dominação americana no hemisfério ocidental e guerra fria . Tudo isso impactou internamente. Getúlio foi um governante que praticamente não viajou para o exterior. Recebeu muitos chefes de Estado, mas não viajou. Não por restrições idiomáticas. Falava correntemente espanhol e francês. Para o inglês tinha uma tradutora de toda confiança: sua filha Alzira. 

Com relação a Mussolini , creio que além da admiração que na época o fascismo italiano despertou em muita gente (caso de João Neves da Fontoura  e Lindolfo Collor , por exemplo) pode lhe ter interessado mais a organização do corporativismo do que a figura do “duce”.  Já no que diz respeito aos Aliados , fica muito patente em seu diário a simpatia por Roosevelt  em sua visita ao Brasil e, mesmo nos momentos dos discursos mais “autoritários” ou quase-fascistas, ele está mais afirmando que o momento é para “governos fortes” ou os “limites do liberalismo” para sanar a crise, do que um posicionamento antiamericano e pró-Eixo .  Com Perón , já nos anos 1950, foi construída uma associação com base na vinculação dos sindicatos ao Estado, orquestrada pela UDN , que via comunismo em tudo.  Claro que os governos de Brasil e Argentina traziam uma base popular que permitia a associação.


IHU On-Line - Faz sentido associar a Era Vargas ao Lulismo? Por quê?

Maria Izabel Noll - Sim e não. Sim porque em seus governos o país passou por grandes mudanças no que se refere a processos de inclusão social e incorporação ao mercado de camadas antes não participantes. No caso de Vargas, a urbanização e industrialização, juntamente com a legislação trabalhista (salário mínimo, férias, aposentadoria...) mudaram as bases das relações de trabalho e criaram um processo de expansão que durou até o final dos anos 1970. A Era Lula resgatou a chamada “dívida social histórica” do Brasil ao instituir políticas de distribuição de renda e de combate à fome que acabaram por incluir no mercado milhões de consumidores, o que garantiu, também, crescimento econômico. São, portanto, processos similares no sentido de que incluíram parcelas relevantes da população ao mercado de bens de consumo, mas principalmente ao mercado de direitos sociais.

Não, porque são processos diferentes em sua dimensão e durabilidade. O período que vai de 1935 a 1960 é de expansão constante em todos os sentidos. Em 25 anos o país muda radicalmente. É difícil de comparar, pois, nesse lapso de tempo, temos vários regimes políticos, vamos da ditadura à democracia; num quadro econômico internacional altamente promissor, tanto na Europa como nos Estados Unidos. A chamada Era Lula, já sabemos agora, está situada entre os anos de 2004 e 2010, um pouco mais, provocou mudanças radicais, mas mostrou limites. Apesar de suas marcas serem evidentes e algumas delas muito difíceis de serem revertidas por uma eventual oposição ao modelo.

Além do mais, as duas figuras — Getúlio e Lula — representam modelos bem diferentes de “cultura política”. Apesar de pernambucano, Lula é essencialmente paulista. E Getúlio era um gaúcho da fronteira que sabia perfeitamente o que isso significava. O Rio Grande do Sul é brasileiro por opção.

 

IHU On-Line - Que associações são possíveis de se fazer entre o populismo e a emergência das figuras de Getúlio Vargas e Lula?

Maria Izabel Noll - O conceito de populismo perdeu muito de sua capacidade explicativa ao ser utilizado para personagens e momentos muito diferentes entre si. Getúlio se tornou, ao longo do tempo, um líder popular, de massas. Lula tem essa dimensão e seu discurso, assim como o era o de Brizola , pode articular movimentos políticos e massas com muito êxito.

 

IHU On-Line - Quais as semelhanças e distinções entre o nacional-desenvolvimentismo, presente na Era Vargas, e o neodesenvolvimentismo, marca dos governos petistas? 

Maria Izabel Noll - O nacional-desenvolvimentismo que caracterizou o pós-guerra e os anos 1950 e 1960 estava atrelado a uma teoria, o modelo cepalino , que se dispunha a pensar projetos centrados no desenvolvimento industrial para os países latino-americanos com alta participação do Estado como agente indutor. Foi fundamental para a transformação do Brasil em uma grande economia. O chamado neodesenvolvimentismo da Era Lula ainda está em teste. Foi uma resposta às políticas neoliberais implementadas nos anos 1990 pelo PSDB, principalmente, e mostrou que em economias como a brasileira o Estado ainda é um ator fundamental e que apenas o mercado não alavanca os processos de desenvolvimento econômico.


IHU On-Line - Como compreender o que está por trás da fala do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1994, quando disse que “a Era Vargas acabou”? E o que está por trás dessa mesma frase repetida agora, no governo de Michel Temer, pelo ministro da Casa Civil Eliseu Padilha?

Maria Izabel Noll - A preocupação em acabar com a Era Vargas me parece uma coisa tipicamente paulista. No fundo há uma incongruência, pois a região que mais se beneficiou com o modelo desenvolvido durante a Era Vargas foi São Paulo. No fundo eles querem dizer que São Paulo é moderno, se regra pela lógica do mercado e que o setor privado é o grande motor do desenvolvimento. Até acho que São Paulo é o que de mais moderno nós produzimos, mas as evidências de que não precisam do Estado (governo federal) não se sustentam quando olhamos a realidade.

O capitalismo brasileiro vive dos recursos do Estado, todos os escândalos que temos presenciado ultimamente não evidenciam outra coisa. Não interessa qual partido está no poder. O empresariado negocia e corrompe para praticamente zerar a competição. Então, o discurso fica bastante hipócrita, pois dizer que vai acabar com a Era Vargas insinua que esse modelo de fazer política é intrinsecamente corrupto e que um novo modelo será “limpo”, isento e o mercado regulará tudo. Só que quando os portadores desse discurso chegam ao poder, a mesma coisa acontece, veja-se o numero de escândalos no governo estadual de São Paulo.

Há no Brasil uma diferenciação entre dois discursos, dois grupos políticos, duas maneiras de pensar a própria sociedade. A Era Vargas (ou as associações que a ela são feitas) é criticada por gastos sociais excessivos, direitos trabalhistas, maior protagonismo estatal e acesso mais democrático às instâncias de poder. Há problemas com esse modelo? Claro que há, mas não existem modelos perfeitos. Quando há uma redução nos recursos disponíveis pelo Estado, esses gastos passam a ser vistos como comprometedores do desenvolvimento e o outro grupo se legitima com propostas de “colocar a casa em ordem”. Leia-se: reduzir os gastos sociais. Lembra um pouco a velha história do Delfim Netto  durante a ditadura: primeiro tem que fazer o bolo para depois repartir. Só que o bolo nunca era repartido. Ou era repartido entre alguns escolhidos.


IHU On-Line - Existem, de fato, herdeiros do projeto político de Getúlio Vargas?

Maria Izabel Noll - Não. A política mudou muito.


IHU On-Line - As travas que impediram as profundas mudanças sociais no Brasil de Vargas são as mesmas que impediram a continuidade do governo petista, dito como progressista? E que travas são essas?

Maria Izabel Noll - As travas que em geral têm impedido mudanças no Brasil dizem respeito aos limites que a sociedade possui de aceitar mudanças ou perda de privilégios. Se pensarmos que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão e, quando o fez, abandonou a população negra à sua sorte, dá para entender. Não adianta um governo ser progressista se a sociedade não o é. Numa democracia fica mais difícil acusar. Os deputados e senadores que votaram o afastamento da presidente Dilma foram eleitos, não chegaram lá sozinhos. Podemos questionar as regras eleitorais, mas isso explica detalhes e não a totalidade.


IHU On-Line - Como a senhora lê a esquerda no Brasil de hoje? Qual a identidade partidária que melhor compreende movimentos sociais, como junho de 2013 e mesmo a ocupação de escolas por estudantes secundaristas?

Maria Izabel Noll - Qualquer leitura sobre as últimas mudanças, seja sobre junho de 2013  ou sobre a ocupação das escolas , ainda é prematura e carece de dados. Há fatores de comunicação entre esses grupos que envolvem novas mídias, interesses imediatos e visão da política fora da mediação dos partidos que torna difícil uma analise mais séria. Há uma mudança em processo. Até agora os partidos, o governo — o que saiu e o que aí está — não entenderam nada. O que sairá de tudo isso só o futuro nos dirá.■ 

 

Leia mais...

- Dilma é eleita a primeira presidenta do Brasil. Entrevista especial com Maria Izabel Noll publicada nas Notícias do Dia, de 01-11-2010.

- As eleições municipais no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Um novo desafio para a esquerda brasileira. Entrevista especial com Maria Izabel Noll e Ivo Lesbaupin publicada nas Notícias do Dia, de 11-10-2008.

- “Somos mais iguais aos nossos concidadãos do que pensávamos”. Entrevista especial com Maria Izabel Noll publicada na revista IHU On-Line, nº 264, de 30-06-2008.

- Os cem dias do governo Yeda. Uma análise. Entrevista especial com Maria Izabel Noll publicada nas Notícias do Dia, de 30-04-2007.

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