Edição 491 | 22 Agosto 2016

A saúde como palanque

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João Vitor Santos

Júlio de Matos entende que o fato de tratar a área da saúde como política de governo inebria a perspectiva de política pública de Estado, atrofiando mecanismos de financiamento e gestão

Pense num cenário de gente doente, sem assistência e tampouco acesso a programas de prevenção em saúde. Ali chega um cidadão, enche uma van com essas pessoas e as leva para um hospital ou posto de saúde. No segundo ato, esse camarada é eleito vereador. A história é conhecida, mas mascara uma relação que se dá em outro nível da mesma forma. Guardadas as proporções, é o que ocorre quando a área da saúde é assumida como política de governo e não como uma política pública de Estado. “A descontinuidade de políticas públicas e a desarticulação entre os níveis de gestores é muito evidente”, analisa Júlio Dorneles de Matos, especialista em Gestão Empresarial com experiência como gestor na área da saúde. “É lamentável, mas não há políticas de Estado para o setor da saúde, e sim políticas de governos, descontinuadas a cada momento, sem qualquer olhar estratégico de médio ou longo prazo”, completa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele fala como gestor de hospitais filantrópicos e santas casas, que respondem por grande parte dos procedimentos do Sistema Único de Saúde – SUS. “As santas casas e os hospitais filantrópicos têm a obrigação legal de destinar parcela importante de suas estruturas assistenciais para o SUS”, enfatiza. 

Júlio Dorneles de Matos é advogado, especialista em Gestão Empresarial. Atualmente, exerce as funções de Diretor Geral e de Relações Institucionais da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Ainda integra o Conselho de Administração da Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas – CMB. Foi presidente da Federação das Santas Casas dos Hospitais Beneficentes, Religiosos e Filantrópicos do Rio Grande do Sul e do Sindicato dos Hospitais Filantrópicos do Rio Grande do Sul.


Confira a entrevista.


IHU On-Line - Quais os avanços em termos de saúde pública, especialmente para usuários, que a implantação do Sistema Único de Saúde - SUS trouxe?

Júlio Dorneles de Matos - A partir de 1988, com o advento do Sistema Único de Saúde, todo o cidadão brasileiro passou a ter direito a uma assistência universal, integral e gratuita, sob responsabilidade dos três níveis dos gestores públicos, especialmente a União. Assim, os principais avanços dizem respeito ao exercício da plena cidadania, com a extinção da indigência e a prerrogativa ao acesso para todos, contribuintes ou não da previdência social.

Os avanços são inquestionáveis, especialmente quando verificamos números tão grandiosos, como, por exemplo, 4,1 bilhões de procedimentos ambulatoriais/ano, 11,5 milhões de internações hospitalares/ano, 95% de transplantes realizados pelo SUS, com redução de 41,7% das pessoas que estão em fila de espera, 300 milhões de doses de vacinas, sendo oferecidos gratuitamente 42 tipos de imunobiológicos e 25 vacinas, levando à erradicação da poliomielite e varíola e à eliminação da circulação dos vírus do sarampo e da rubéola, entre outros; 96% das vacinas são produzidas no Brasil ou estão em processo de transferência de tecnologia. Atualmente são ofertados 810 medicamentos pelo SUS, dentre esses para diabéticos e hipertensos.


IHU On-Line - Como o senhor avalia a articulação entre o público e o privado dentro do SUS? Qual o papel de hospitais filantrópicos e santas casas dentro do Sistema?

Júlio Dorneles de Matos - Na realidade, a articulação entre os sistemas público e privado é extremamente superficial, sem comunicação de políticas e iniciativas independentes. A Agência Nacional de Saúde – ANS, embora órgão do Ministério da Saúde, pouco se relaciona com a pasta e crescentemente está a impor às operadoras privadas de saúde obrigações alheias aos contratos firmados com os usuários, gerando impactos importantes em custos e à própria sustentabilidade do sistema.

As santas casas e os hospitais filantrópicos têm a obrigação legal de destinar parcela importante de suas estruturas assistenciais para o Sistema Único de Saúde, preservando parte desta também para o Sistema Privado. Assim, são fundamentais para a funcionalidade do SUS em todo o país, respondendo por mais de 50% de toda a assistência, sendo que na alta complexidade a abrangência ainda é maior, como por exemplo, 68% da oncologia e 66% da cardiologia, entre outros. No Rio Grande do Sul, a presença das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos é vital, respondendo com seus 235 hospitais por mais de 70% de toda a assistência SUS aqui desenvolvida.

Além disso, na área da formação médica brasileira e dos demais profissionais da saúde, estas instituições são fundamentais, contando com 46 hospitais de ensino localizados em diversos estados brasileiros. 


IHU On-Line - Por que hospitais e casas de saúde privados credenciados ao SUS parecem optar apenas por atendimentos de urgência/emergência e procedimentos de alta complexidade, deixando outras perspectivas como a saúde preventiva?

Júlio Dorneles de Matos - Na realidade, a área hospitalar brasileira ainda mantém a cultura do tratamento da doença, especialmente pressionada pelos modelos de convênios/contratos mantidos com os sistemas de saúde. Hoje, em qualquer cenário que se observe, esta realidade está a exigir mudanças de posicionamentos em que a educação e a prevenção em saúde irão se sobrepor. Aos hospitais caberá identificar nichos de trabalho em que se caracterize o melhor conceito de que, em vez de tratar, deve-se evitar a doença. Neste contexto, as exigências crescentes por serviços de prevenção direcionada ao homem, à mulher e ao idoso já são uma realidade.


IHU On-Line - Uma das principais queixas de santas casas e hospitais filantrópicos é com relação aos repasses da chamada tabela SUS. Em que medida o atraso em repasses e o próprio reajuste da tabela passa por um problema essencialmente de gestão em saúde pública (de todas as instâncias de governo) e menos por falta de recursos?

Júlio Dorneles de Matos - Sem dúvida que a saúde pública é subfinanciada. No entanto, os poucos recursos existentes, não raras vezes, são mal aplicados, como, por exemplo, 104 Unidades de Pronto Atendimento – UPAs construídas, equipadas e fechadas em todo o Brasil, ou 80 tomógrafos adquiridos há mais de quatro anos e ainda encaixotados por falta de planejamento. A descontinuidade de políticas públicas e a desarticulação entre os níveis de gestores é muito evidente, bem como uma absoluta desproporcionalidade de custeio entre os prestadores públicos e privados, em que se verifica que um hospital público custa para o SUS mais de cinco vezes que um hospital privado.

É lamentável, mas não há políticas de Estado para o setor da saúde, e sim políticas de governos, descontinuadas a cada momento, sem qualquer olhar estratégico de médio ou longo prazo.


IHU On-Line - Como avalia a engrenagem que hoje financia as políticas públicas em saúde no Brasil? O que a Constituição de 1988 prevê sobre o assunto? E o que é cumprido?

Júlio Dorneles de Matos - O financiamento da saúde pública no Brasil hoje está melhor explicitado pela regulamentação da emenda constitucional 29, em que os Estados e Municípios têm obrigações de percentuais mínimos (12% e 15%, respectivamente) e a União sem uma vinculação definida, porém com direcionamento de um mínimo com base de aplicação em exercício real mais a variação do Produto Interno Bruto - PIB. 

Contudo, o que se vê na prática é a União cada vez mais transferindo responsabilidades para os Estados e os Municípios, declinando do repasse de recursos nos mesmos níveis, senão vejamos: em 1980, de todos os gastos com saúde no Brasil, a União respondia por 75%, os Estados por 17,8% e os Municípios por 7,2%. Hoje, a União responde por 45%, os Estados por 25% e os Municípios por 30%.


IHU On-Line - Que tipo de incentivos um hospital que é considerado filantrópico recebe do governo federal e quais passam a ser suas contrapartidas? Que implicação há – e se há – nos repasses e credenciamentos junto ao SUS? Há contradições em um hospital filantrópico encabeçar a cobrança de reajustes na tabela de procedimentos do SUS?

Júlio Dorneles de Matos - As santas casas e hospitais filantrópicos, por suas naturezas jurídicas de serem sem fins lucrativos e cumprirem as disposições do código tributário nacional, são imunes a impostos. Podem ser também isentos de contribuições sociais se atenderem gratuitamente ou destinarem uma parcela das suas capacidades assistenciais ao SUS, conforme normas existentes.

A relação de prestação de serviços mantidas com o Sistema Único de Saúde, em caráter complementar e conforme os termos da Lei nº 8080/90, a qual estabelece obrigações de parte a parte, incluindo a destinação de recursos suficientes para a garantia da qualidade dos serviços e do equilíbrio econômico/financeiro dos contratos/convênios firmados, é brutalmente deficitária. Contabilmente se demonstra que para cada R$ 100,00 de custos efetivos na assistência de um paciente SUS, este remunera tão somente R$ 60,00. Ou seja, tem-se um déficit médio de 66% entre custo e receita, mesmo considerando a integralidade dos recursos públicos recebidos e as isenções e imunidades acima referidas.

Tal situação, há mais de década existente e crescente a cada ano, impõe nos dias de hoje um déficit anual superior a R$ 10 bilhões no conjunto brasileiro. Especificamente no Rio Grande do Sul este déficit é superior a R$ 500 milhões ano. Esta realidade de absoluto desequilíbrio na relação jurídica mantida já levou as instituições brasileiras a constituírem um endividamento de R$ 21,5 bilhões, notadamente com o sistema financeiro.

De tudo isto, conclui-se que as santas casas e hospitais filantrópicos em verdade estão sendo também entes financiadores do SUS, o que, absolutamente, em momento algum no arcabouço jurídico brasileiro, lhes é exigido. Seus patrimônios estão sendo delapidados e seus futuros são incertos. Por isso, não há contradição em um hospital filantrópico posicionar-se na cobrança de reajustes na tabela de procedimentos do SUS.


IHU On-Line - Qual a sua avaliação sobre propostas que passam a ser ventiladas na gestão interina de Michel Temer, como desindexação de recursos da saúde e a ideia de “orçamento zero” e mesmo a PEC 241 , para financiamento da saúde? Em que medida propostas como essas impõem uma lógica financeirizada à saúde pública, transformando-a em negócio?

Júlio Dorneles de Matos - Observam-se iniciativas do atual governo com grande preocupação, notadamente a questão da desindexação de recursos, eis que se hoje com obrigações mínimas de alocações o Governo Federal já decresce a cada ano, impõe-se a lógica do que já é ruim vai ficar pior sem as obrigações mínimas.


IHU On-Line - Como equalizar as necessidades de hospitais filantrópicos e santas casas e a manutenção de um sistema público de saúde como o SUS, radicalizando seu caráter universal, público e gratuito?

Júlio Dorneles de Matos - Não há outro caminho a não ser efetivamente a compreensão dos gestores, notadamente o Federal, de que é necessário ampliar os investimentos em saúde, melhorar a gestão pública, organizar políticas de estado para o setor, adoção de visão estratégica de longo prazo etc. Neste contexto os hospitais filantrópicos e as santas casas são a melhor alternativa assistencial para o Brasil, seja em aspectos de economia, qualidade assistencial e dinamismo operacional.


IHU On-Line - Que lógica difere os hospitais filantrópicos e as santas casas de instituições estritamente privadas?

Júlio Dorneles de Matos - O entendimento cristalino de diferenciação é a questão da finalidade lucrativa ou não. Também, impera nas instituições sem fins lucrativos a essência do voluntariado em favor de uma causa social.■

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