Edição 491 | 22 Agosto 2016

Quando o público e universal são sufocados pelo capital

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João Vitor Santos

Rosa Marques acredita que a desindexação de recursos da saúde vai subnutrir o SUS e insuflar a participação privada na assistência à saúde, na qual a lógica é pouca cobertura e lucro

A economista Rosa Maria Marques estuda o financiamento em saúde pública e não hesita em disparar: o Sistema Único de Saúde – SUS é subfinanciado, não recebe os recursos que deveria e o que está previsto na Constituição de 1988. E essa situação, que não é nada ideal, ainda pode piorar. Tudo por conta da proposta de desindexação de recursos que ganhou corpo no governo interino de Michel Temer, materializada numa Proposta de Emenda Constitucional que congela os gastos com saúde por 20 anos. “Imagine o impacto disso para o SUS, já tão subfinanciado. Imagine o que significa manter o mesmo nível de gasto para uma população crescente e em processo de envelhecimento”, questiona. E completa: “É claro que isso levará ao encolhimento do SUS e ao crescimento do setor privado da área da saúde, seja ele formado por planos de saúde ou não, diretamente desembolsado pelas famílias”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Rosa explica que o pensamento que orienta tal medida é a lógica do mercado, do sistema financeiro.  “A lógica é a do credor que exige o pagamento dos juros sem medir as consequências. Reduzir gastos de toda a natureza para gerar superávit para pagar o serviço da dívida”, explica. Assim, corta-se das políticas públicas, como SUS, para encher outros bolsos. “A consequência será o desmonte das políticas sociais construídas em decorrência da Constituição de 1988, mas será também o afastamento do Estado como indutor de qualquer outra política”, alerta. A economista ainda analisa que essa lógica se instaura neste momento político e econômico do país, mas já vinha sendo gestado no governo petista, dito progressista. “Houve, sem dúvida, avanços”, reconhece. Mas pondera: “Em termos de financiamento, os avanços foram poucos. Isso porque também os governos Lula e Dilma estavam prisioneiros dos compromissos assumidos quando da Carta aos Brasileiros”.

Rosa Maria Marques é professora titular do Departamento de Economia e do Programa de Estudos Pós-graduados em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde. Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestrado em Economia pela PUC–SP e doutorado pela Fundação Getúlio Vargas - FGV. Também realizou pós-doutorado na Faculté de Sciences Économiques da Université Pierre Mendès France de Grenoble e na Universidad de Buenos Aires.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - De que forma o mercado, o sistema financeiro e toda a sua lógica representam uma ameaça ao Sistema Único de Saúde – SUS?

Rosa Maria Marques - No Brasil, desde o governo Fernando Henrique Cardoso , a política econômica brasileira tem sido balizada ou tem sido influenciada pela busca pela realização de superávits primários para garantir o pagamento dos juros da dívida pública e a manutenção de juros elevados para pretensamente manter a inflação baixa e sob controle. Ambas as medidas atendem os interesses do capital financeiro, seja ele interno ou externo.

Antes do quadro recessivo que estamos vivendo, isso significava uma permanente pressão para que os recursos para o SUS não aumentassem de acordo com a necessidade de um sistema público universal. Essa realidade configurou um permanente quadro de subfinanciamento no setor. Enquanto em países com sistemas similares ao SUS a média do gasto público com saúde é de 8% do PIB (Produto Interno Bruto), no Brasil o SUS destinou, em 2014, apenas 3,9%, o que resulta num gasto per capita bastante baixo.


IHU On-Line - Em que medida a política econômica do governo interino de Michel Temer se configura como ameaça a políticas públicas? E como o pensamento da equipe econômica pode transformar, por exemplo, o SUS?

Rosa Maria Marques - A expressão maior da política econômica defendida pela atual equipe do governo está consubstanciada na PEC 241 , enviada em 15 de junho de 2016 para ser apreciada pelo Congresso Nacional. Esse projeto simplesmente propõe que os gastos federais sejam congelados por 20 anos, tendo como base o efetivamente gasto em 2016. Os valores dos orçamentos dos anos seguintes seriam somente atualizados pelo índice da inflação e seus valores reais poderiam, a depender dos resultados obtidos em termos de equilíbrio fiscal, ser revisados somente depois de dez anos.

Evidentemente que essa proposta tem como justificativa o diagnóstico de que todos os males da economia brasileira se devem à escalada “desenfreada” do gasto público e que, portanto, esse deve ser freado. A exposição de motivos que acompanha a PEC 241 é cristalina a esse respeito. Imagine o impacto disso para o SUS, já tão subfinanciado. Imagine o que significa manter o mesmo nível de gasto para uma população crescente e em processo de envelhecimento. É claro que isso levará ao encolhimento do SUS e ao crescimento do setor privado da área da saúde, seja ele formado por planos de saúde ou não, diretamente desembolsado pelas famílias.

É claro que com essa proposta, que implica um novo regime fiscal, em que o orçamento parte sempre do zero, desconsiderando, portanto, as vinculações criadas na Constituição de 1988 e nas leis que lhe seguiram, não haverá mais nenhuma garantia de recursos para nenhuma área social.


IHU On-Line - Quais os riscos que se corre com a desindexação de recursos da saúde e a ideia de “orçamento zero”?

Rosa Maria Marques - O crescimento da participação do setor privado na assistência à saúde, a redução do SUS e o surgimento de segmentos sem nenhum tipo de cobertura.


IHU On-Line - Como compreender a lógica, o que está por trás, da PEC 241?

Rosa Maria Marques - A lógica é a do credor que exige o pagamento dos juros sem medir as consequências. Reduzir gastos de toda a natureza para gerar superávit para pagar o serviço da dívida. Tal como foi na Grécia . A consequência será o desmonte das políticas sociais construídas em decorrência da Constituição de 1988, mas será também o afastamento do Estado como indutor de qualquer outra política.


IHU On-Line - Em que medida o investimento na manutenção e ampliação das políticas públicas, como o SUS, por exemplo, pode ser encarado como uma ferramenta para se buscar a diminuição das desigualdades no Brasil? E quais as maiores travas para se desenvolver políticas que efetivamente diminuam as desigualdades?

Rosa Maria Marques - Existem incontáveis estudos que mostram o impacto das políticas públicas sobre a desigualdade. E esses estudos não começaram nos últimos anos. Desde a regulamentação do disposto na Constituição de 1988, com relação ao piso de um salário mínimo para os benefícios, tais impactos foram avaliados e medidos. De 1999 a 2009, por exemplo, 15% da redução da desigualdade observada deve-se à existência desse piso; já o Bolsa Família foi responsável por 16% da redução. Ou seja, os dois somados contribuíram com 31%, o que não é pouco.

Entre os entraves, saliento dois. O primeiro tem a ver com um tipo de pensamento presente em parte da população de que a concessão desses benefícios torna seus beneficiários preguiçosos e/ou que encarece o custo da mão de obra, posto que as pessoas não aceitam mais trabalhar a qualquer preço. Parte dos que foram para a rua pedir o impeachment de Dilma Rousseff claramente manifestaram esse entendimento. O segundo entrave está relacionado à busca de conter os gastos de qualquer natureza, com o propósito de gerar superávits primários.


IHU On-Line - Gestores da saúde, inclusive o atual ministro Ricardo Barros , afirmam que o financiamento do SUS é um verdadeiro nó e que é necessário revisar direitos constitucionais. Como observa essa questão?

Rosa Maria Marques - O único nó que existe é o do subfinanciamento do SUS. A sociedade brasileira precisa decidir se quer ou não criar um sistema de saúde público universal, tal como foi feito em outros países. Isso significa que o Estado brasileiro tem que parar de financiar o setor privado, por exemplo, com redução do imposto a pagar daqueles que optam por ter Planos de Saúde ou que procuram assistência médica privada.


IHU On-Line - Há uma perspectiva, insuflada nos últimos meses de governo interino, mas com origem no ajuste fiscal do segundo mandato de Dilma Rousseff, de que as políticas sociais pesam demais no orçamento da União, que se gasta muito com políticas sociais. Por que elas são sempre o primeiro alvo nos chamados “ajustes de gastos públicos”?

Rosa Maria Marques - São sempre o primeiro alvo, aqui e no resto do mundo, porque aqueles que estão tendo seus interesses defendidos (os credores, o capital financeiro) não têm nenhum compromisso com o social, com os trabalhadores, com a maioria da população. Isso foi exaustivamente a “bola da vez”. Por outro lado, essas investidas ocorrem sempre em um quadro recessivo, quando a capacidade de reação ou de resistência por parte dos trabalhadores é menor.


IHU On-Line - Quais os avanços e limitações para o SUS nos 13 anos de um governo dito progressista, como foi o do PT?

Rosa Maria Marques - Houve, sem dúvida, avanços no campo da gestão, principalmente. Temos de lembrar o Programa Mais Médicos , que levou a assistência aos grotões do Brasil, em lugares em que ninguém formado no país queria ir. Mas, em termos de financiamento, os avanços foram poucos. Isso porque também os governos Lula e Dilma estavam prisioneiros dos compromissos assumidos quando da Carta aos Brasileiros , na qual foi garantido o pagamento dos credores.

Em outras palavras, embora os recursos tenham aumentado para o SUS, mesmo junto ao governo federal (embora essa esfera tenha reduzido a participação com relação às demais), o subfinanciamento não foi superado. Além do que, devemos lembrar que foi durante o governo Dilma, em 19 de janeiro de 2015, mediante a Lei 13.097/15, que foram introduzidas novas e amplas exceções à vedação constitucional à participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros nas atividades de assistência à saúde. Até então, o texto constitucional e a lei orgânica da saúde (Lei nº 8.080, de 1990), previam que a presença do capital estrangeiro na assistência à saúde poderia ocorrer somente em casos de exceção e não em regra.


IHU On-Line - A senhora indica que o que está por trás das ações da equipe econômica do governo de Michel Temer é “extinguir o funcionamento democrático do próprio Estado burguês”. Gostaria que desenvolvesse essa sua perspectiva.

Rosa Maria Marques - Em um pequeno artigo  desenvolvi essa ideia, pois, ao congelar o gasto governamental por 20 anos, fica excluída a possibilidade de a sociedade, através de suas lutas, de seus representantes no Congresso Nacional ou de seus presidentes eleitos, alterar as prioridades que se manifestam ou se concretizam no orçamento do Estado. Sob uma pretensa visão técnica, que sempre é apresentada como superior à política, congela-se o status quo atual, fruto de uma determinada correlação de forças existente na sociedade no momento em que o orçamento de 2016 foi votado. O tempo proposto é simplesmente de uma geração e não há experiência similar no mundo. ■

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