Edição 490 | 08 Agosto 2016

As avenidas de inclusão no Brasil e uma disputa política intensa

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Márcia Junges

Inclusão, ainda que precária, das massas vem sendo feita desde 2003, pontua Leonardo Avritzer. Governo interino de Temer sinaliza retrocesso “em relação às ações do Estado brasileiro de reconhecimento das populações minoritárias e do direito à diversidade”

Para o cientista político Leonardo Avritzer, “estamos observando uma certa recuperação da capacidade de mobilização dos movimentos sociais pelo menos desde março deste ano. O que se coloca é uma conjuntura de disputa política intensa”. Para ele, somos uma sociedade de “exclusão de grandes massas, do consumo, da política, do acesso ao Estado, e foi contra isso que o governo do PT investiu entre 2003 e 2015 e acabou fazendo essa integração, ainda que precariamente”. Contudo, pondera, essa integração ocorreu, por um lado, “pela via do mercado, e por outro, por uma via de ampliação de uma série de benefícios da proteção social. Por fim, começamos a ter um acesso diferenciado ao sistema de educação. Essas três formas de acesso criaram novas avenidas de inclusão no Brasil”.

O “poder paralelo” do Judiciário é outra das temáticas abordadas na entrevista, concedida por Avritzer à IHU On-Line por telefone: “o próprio STF aceita que existe uma dimensão do Poder Judiciário que opera à margem do Estado Democrático de Direito. É ele que vai decidir quem vai ser julgado pelo Estado Democrático de Direito ou por Sérgio Moro, uma espécie de justiçador de primeira instância para alguns atores sociais”.

Leonardo Avritzer é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, onde cursou mestrado em Ciência Política. É doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research - NSSR, Estados Unidos, com a tese Modernity and democracy in Brazil. Leciona no Departamento de Ciências Políticas da UFMG e é autor, dentre outros livros, de Participatory Institutions in Democratic Brazil (Johns Hopkins University Press, 2009), Democracy and the public space in Latin America (Princeton: Princeton University Press, 2002) e A Moralidade da Democracia: Ensaios Sobre Teoria Habermasiana e Teoria Democrática (Perspectiva/UFMG, 1996).

A entrevista foi publicada nas Notícias do Dia de 25-07-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.


Confira a entrevista.


IHU On-Line - Quais são os elementos que nos ajudam a compreender o recrudescimento do fascismo em nossos dias, no Brasil, em específico, e no mundo, em termos mais gerais?

Leonardo Avritzer – O primeiro ponto é pensarmos a questão no plano internacional de forma muito anterior e significativa do que vemos no Brasil até, pelo menos, no primeiro semestre do ano passado. Temos algumas origens desse enorme processo de intolerância e regressão democrática. O primeiro deles é um conflito grande desde 2008 entre economia e democracia, ou entre o mercado e a democracia. Eu diria que 2008 marca um momento no qual o Estado recoloca as condições de uma certa acumulação financeira capitalista, ao mesmo tempo em que, no momento seguinte da recuperação, o próprio Estado é fortemente questionado pelos principais atores financeiros. Esse questionamento começa a adquirir um elemento antidemocrático. 

De um lado há elementos muito fortes contra a soberania popular, como ficou claro na forte crise na Grécia, na enorme dívida em Portugal e Espanha e na própria forma como o resgate se deu em 2008-2009, quando o fortalecimento do mercado financeiro veio antes do próprio resgate dos cidadãos endividados no caso dos Estados Unidos. Vemos um movimento muito forte do mercado no sentido de restabelecer condições de acumulação capitalista contra uma determinada pauta de direitos, sobretudo sociais. 

 

Avenidas de inclusão

No caso brasileiro temos elementos próprios. O Brasil é uma sociedade de exclusão de grandes massas, do consumo, da política, do acesso ao Estado, e foi contra isso que o governo do PT investiu entre 2003 e 2015 e acabou fazendo essa integração, ainda que precariamente. Por um lado, tal integração foi feita pela via do mercado, e por outro, por meio de uma via de ampliação de uma série de benefícios da proteção social. Por fim, começamos a ter um acesso diferenciado ao sistema de educação. Essas três formas de acesso criaram novas avenidas de inclusão no Brasil. 

Houve uma forte reação inclusive na esfera do consumo, por exemplo, quando vemos a rejeição à presença de novos consumidores, às pessoas que estão frequentando aeroportos e shopping centers. Começamos a ver que, mesmo sob o ponto de vista de uma sociedade de massa, o Brasil tem dificuldade em aceitar pressupostos igualitários do mercado. Isso se acentua ainda mais quando se fala em pressupostos de integração política ou mesmo de uma integração diferenciada no campo da educação. O centro desse processo está ligado a uma classe alta, sobretudo em São Paulo, onde há o maior contingente dessa classe no país, e que justamente não aceita ter os princípios básicos de integração via Estado e mercado.


IHU On-Line - Há um fascismo à brasileira? Caso sim, quais seriam suas características mais notórias e que impasses elas representam à nossa recente democracia?

Leonardo Avritzer – Primeiramente, acredito que deveríamos definir o que é o fascismo. No Brasil temos um momento de regressão democrática cujo maior sinal é a remoção da presidente Dilma por uma via absolutamente questionável em termos legais. Porém, dentro dessa regressão democrática temos diversos subcomponentes. Alguns de seus atores principais ainda se colocam fortemente no campo da institucionalidade política legal, enquanto outros se colocam fora dela, os quais eu classificaria como representantes do perigo de um retorno de um fascismo, de uma intolerância social e política radical. 

Quais são as evidências que temos em relação a esses atores? A defesa da tortura na votação do afastamento da presidente por um deputado federal, Jair Bolsonaro; uma ideia de utilizar o sistema legal para fazer perseguições políticas, papel indefinido inclusive em relação a Sérgio Moro, em relação a como ele se relaciona com atores sociais. Seu “papel” é prender Lula, mas as pessoas não falam sobre evidências legais, e a própria Lava Jato está criminalizando claramente o PT pela via de seu procurador Carlos Fernando, quando este se refere ao Partido como organização criminosa. 

 

Operação “à margem”

Tudo isso está à margem da institucionalidade do Estado de Direito. Como isso vai se desenvolver no Brasil é difícil saber. Jair Bolsonaro não é só uma pessoa que defende abertamente o Estado autoritário. O “interessante” é que os votos direcionados a Bolsonaro crescem quando relacionados à renda e escolaridade das pessoas, o que mostra que amplos setores da elite brasileira não estão conformados nem com a democracia, nem com o Estado de Direito. Essa é, certamente, uma das origens desse processo. 

Por outro lado, no campo do Poder Judiciário, temos atitudes bastante complicadas que dizem respeito ao Estado de Direito. Vemos juízes tomando medidas claras contra a Constituição. Vivemos esse momento no país no qual vemos a dualidade dentro do poder Judiciário entre Sérgio Moro e Teori Zavascki. Como essa dualidade funciona? O Supremo não contém Sérgio Moro, apesar de que o próprio ministro Teori o criticou por contrariar os preceitos do Estado Democrático de Direito em algumas das investigações da Operação Lava Jato. Ao mesmo tempo em que faz isso, devolve o processo contra o ex-presidente Lula para 13ª vara de Curitiba. Ou seja, o próprio STF aceita que existe uma dimensão do Poder Judiciário que opera à margem do Estado Democrático de Direito. É ele que vai decidir quem vai ser julgado pelo Estado Democrático de Direito ou por Sérgio Moro, uma espécie de justiçador de primeira instância para alguns atores sociais.


IHU On-Line - O que resta do Estado de direito frente a tantos dispositivos de exceção colocados em prática por nosso Judiciário nos últimos meses? Dentro da crise política atual, qual é o papel do Judiciário na legitimação de um estado de exceção e de constante insegurança jurídica para as pessoas?

Leonardo Avritzer – Creio que, na verdade, para entendermos os processos que vivemos, devemos entender os próprios limites da democratização brasileira. O Brasil teve uma via absolutamente conservadora de transição à democracia, na qual não houve ruptura com nenhum dos elementos da institucionalidade autoritária, que foi muito longa, durando 21 anos. Se compararmos o Brasil à Argentina, não houve um expurgo dentro do sistema legal, apesar de sabermos que este fez parte do próprio aparato do Estado autoritário, que vigorou ao longo do período de governo militar. 

O autoritarismo brasileiro atingiu fortemente o funcionamento do conjunto das nossas instituições. Acabamos fazendo uma transição na qual as instituições não foram “purgadas”, não houve uma justiça restaurativa no Brasil que restituísse o funcionamento dos poderes. Só fomos ter uma Comissão da Verdade no governo Dilma, e ainda assim muito enfraquecida, ou mesmo uma comissão de anistia que ofereceu restituições meramente financeiras sem, na verdade, atribuir responsabilização pelos crimes. A transição brasileira foi atípica em relação às outras transições. Na Argentina, na África do Sul e também no Leste da Europa, as transições podem ser chamadas de justiça restaurativa, o que não ocorreu aqui. 

 

Ambiguidade dos valores democráticos

Temos um Poder Judiciário que se pauta por um conjunto muito ambíguo de valores democráticos, sobretudo em sua primeira instância, porque ali continua um processo de reprodução patrimonial das elites judiciárias, que é um processo histórico no Brasil. Penso que é importante apontar que no Poder Judiciário há um conjunto de ações fortemente antidemocráticas, e para além da Operação Lava Jato começamos a ver perseguições a estrangeiros que fazem política, perseguição ao direito de as pessoas se reunirem, como no estado de Goiás, onde houve a proibição de se manifestar dentro de universidades federais. 

O que pauta essas instituições não é um entendimento claro da natureza do Estado de Direito, mas sim a supremacia dos corpos judiciais. Esse é, na verdade, o reequilíbrio que tivemos no Brasil entre o período democrático anterior e o atual. Antes havia praticamente apenas o Poder Executivo — o Supremo Tribunal Federal era muito fraco, e agora temos um Executivo e um Judiciário fortes que não se pautam, necessariamente, pelas estruturas do Estado de Direito. Aí está o problema central que estamos enfrentando nesse momento em relação às garantias individuais do país.


IHU On-Line - Quais são os nexos entre o estado de exceção e a biopolítica com o recrudescimento do fascismo hoje?

Leonardo Avritzer – Baseado na ideia de estado de exceção de Agamben, digo que ele tem uma natureza constitucional e outra não constitucional. No caso brasileiro, é interessante que tudo isso acontece sem evocar nenhum elemento institucional do Estado de Exceção. É como se estivéssemos no campo absoluto da normalidade democrática, mas vemos decisões do Poder Judiciário que não podem ser tomadas numa situação de normalidade democrática. 

O STF toma decisões em direções completamente diferentes em questões fundamentais no período de seis meses que mudaram a conjuntura, como a aceitação da prisão do senador Delcídio do Amaral, e a rejeição da prisão do senador Renan Calheiros e José Sarney. É exatamente o mesmo caso, e a decisão foi tomada de forma oposta. O mesmo podemos dizer em relação à questão do afastamento de Eduardo Cunha, pedida em medida cautelar de urgência e que numa madrugada, quatro meses depois, foi decidida. Então, temos fortes dúvidas sobre o que move o Poder Judiciário. 


IHU On-Line - Como compreender posicionamentos como o do deputado Marcel Van Hatten (PP-RS), ao propor a “escola sem partido”, e a recepção de Alexandre Frota e do líder do Revoltados On-Line pelo ministro da Educação? Em que medida isso se conecta com o debate do fascismo e da dificuldade do fascista em dialogar e de ter uma compreensão crítica do todo, sobretudo dentro de um sistema democrático?

Leonardo Avritzer – Vemos claramente mais intolerância na sociedade brasileira desde pelo menos 2013, quando naquele mês de junho houve manifestações de violência contra pessoas de partidos de esquerda. Em seguida a isso começamos a notar uma série de expressões de intolerância política no Brasil, como, por exemplo, o achacamento público de políticos e personalidades da sociedade civil, como o ministro Guido Mantega, agredido em um hospital, bem como outros políticos, ou como no caso de Chico Buarque de Hollanda. 

Nas redes sociais isso já vinha acontecendo há tempo e tem se acirrado. Aí há um forte elemento de intolerância que se articula fortemente com um tipo de ação da imprensa mais conservadora. Temos o discurso da intolerância surgido, sobretudo, na grande mídia, especialmente na Veja e na rádio Jovem Pan, de São Paulo, e dali direcionado para a sociedade. 

Quando Frota é recebido pelo ministro da Educação, na verdade essa é uma tentativa de conectar o governo com esses focos de intolerância na sociedade. De fato, e não por acaso, a primeira medida do governo interino foi a abolição de todas as secretarias especiais. O ministro dá um primeiro passo adiante para levar a sério essas pessoas como Frota e o líder do Revoltados On-Line. 

 

Retrocesso

Vale a pena lembrar que o campo da educação no Brasil passou por forte disputa nessas questões. Houve muito debate em relação ao Conselho Nacional de Educação rever elementos racistas na obra de Monteiro Lobato. Houve muita discussão sobre a ideia de uma política de diversidade de orientação sexual nas escolas públicas. Porque discutir orientação sexual e uma ideia racismo pelo sistema educacional faz parte dessa conjuntura. Então, receber Alexandre Frota significa que o governo está tentando indicar que vai se conectar com esses movimentos e indivíduos que querem retroceder em relação às ações do Estado brasileiro de reconhecimento das populações minoritárias e do direito à diversidade.


IHU On-Line – Por outro lado, como podemos compreender a dificuldade de diálogo da própria esquerda com projetos diferentes dos seus, como foi o caso da construção da Usina de Belo Monte, para citarmos uma das grandes obras do PAC, de Dilma Rousseff?

Leonardo Avritzer – O governo Dilma, quando comparado aos dois governos de Lula, se afasta das pautas de diversidade, relativas a indígenas, ao meio ambiente, e também dos atores urbanos. É possível ver que essas tensões já se manifestavam em 2011-2014, ou seja, em seu primeiro governo. Isso se deu com a violação de direitos das populações urbanas com as obras da Copa do Mundo, a própria discussão da usina hidrelétrica de Belo Monte e o projeto de uma nova usina no Rio Tapajós. Tais iniciativas fazem parte da agenda de obras do governo Dilma, incluídas em um modelo desenvolvimentista do qual ela é representante. 

No governo do presidente interino Michel Temer há uma forte radicalização dessas pautas, como a extinção das secretarias já no primeiro dia em que assumiu, e isso tem pouco a ver com a economia de recursos. No seu primeiro dia de governo Temer já fez questão de apontar que inúmeras demandas não terão mais guarida em seu mandato. Ele rompia com uma pauta de ampliação de direitos do Brasil que, de uma maneira ou de outra, existiam.


IHU On-Line - Que perspectivas se delineiam para os próximos meses em relação aos movimentos sociais e a camadas da população carentes frente ao governo interino de Michel Temer?

Leonardo Avritzer – Estamos observando uma certa recuperação da capacidade de mobilização dos movimentos sociais pelo menos desde março deste ano. O que se coloca é uma conjuntura de disputa política intensa. Nessa conjuntura, Temer expressa seu projeto político da seguinte maneira: da forma como aceita implementar a agenda do mercado, da reforma da previdência e da diminuição dos gastos públicos, ele deixa bastante claro suas prioridades. Readequar o Estado a uma lógica de mercado através de uma via não eleitoral.

Mas, é preciso ver que este é um governo com fortes bloqueios democráticos internos e externos. Além da forte reação dos movimentos sociais e atores sociais dos mais diversos campos, este é um governo que ainda não conseguiu reconhecimento dos EUA e da grande imprensa do mundo anglo-saxão, especialmente o NYT, dos EUA, e o The Guardian, da Inglaterra. Eles afirmam que existe uma inflexão não democrática no Brasil com a substituição do governo Dilma Rousseff. Isso deve pautar todas as ações políticas importantes daqui até 2018, a reação externa e interna ao governo Temer.

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