Edição 489 | 18 Julho 2016

O chamado de Maria de Magdala e o nosso próprio chamado

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Elisabeth Schüssler Fiorenza | Tradução Isaque Gomes Correa

“Sabemos de várias histórias sobre o chamado de discípulos, no entanto não temos histórias de chamamento envolvendo Maria Madalena e as discípulas. Daí que a igreja como a conhecemos hoje não é um discipulado de iguais”, provoca Elizabeth Fiorenza. E conclui, em artigo enviado à IHU On-Line: “a Sabedoria Divina chama cada uma de nós a se juntar a Ela em Sua obra de justiça e libertação, da mesma forma como chamou Miriam de Magdala e outras discípulas muito tempo atrás”.


Elisabeth Schüssler Fiorenza é teóloga e biblista feminista. Romena, nasceu numa família alemã e, depois da Segunda Guerra Mundial, cresceu na Alemanha, onde se tornou uma das primeiras mulheres católicas a se formar em teologia, doutorando-se na área da Bíblia. Desde 1970 vive nos Estados Unidos e ensina exegese/interpretação bíblica feminista, em instituições como Divinity School da Universidade de Harvard, Cambridge, Massachusetts. Entre suas publicações estão Wisdom Ways (Caminhos da Sabedoria), publicado em 2001 (no Brasil, editado pela Nhanduti Editora); In Memory of Her (1983; As origens cristãs a partir da mulher); Bread Not Stone (1984); But She Said (1992); Discipleship of Equals (1993; Discipulado de Iguais); Jesus: Miriam’s Child, Sophia’s Prophet (1994); Searching the Scriptures (1994/95); Sharing Her Word (1998); Jesus and the Politics of Interpretation (2000; Jesus e a Política da Interpretação); The Power of the Word: Scripture and the Rhetoric of Empire (2007). E ainda entre as publicações traduzidas, destacamos: “Discipulado de Iguais: uma ekklesiologia feminista crítica da Libertação” (1993), “A Força da Palavra: as Escrituras e a retórica do Império” (2007), “Horizontes em transformação: explorações na interpretação feminista” (2013), “Pão Não Pedra: o desafio da interpretação bíblica feminista” (1992).

 

Eis o artigo.

 

Estamos reunidos e reunidas aqui neste lugar sagrado para recordar o nosso chamado ao discipulado de iguais e empoderar-nos com a palavra vivificante da Sabedoria Divina. Todas as leituras bíblicas de hoje falam sobre o chamado da Sabedoria Divina. Na leitura do Evangelho de João  que ouvimos, Jesus chama Filipe e Natanael para o discipulado de iguais. Sabemos de várias histórias sobre o chamado de discípulos, no entanto não temos histórias de chamamento envolvendo Maria Madalena e as discípulas. Daí que a igreja como a conhecemos hoje não é um discipulado de iguais. Em vez disso, temos uma instituição em sua maior parte exclusivista e hierárquica que parece ter esquecido o seu chamado a ser uma comunidade de igualdade que acolhe a todos e todas.

Embora a história de Maria de Magdala e das outras discípulas judaicas que ouviram o chamado da Sabedoria Divina não tenha sido contada, nós ainda assim podemos encontrar vestígios do discipulado delas nos evangelhos. As tradições evangélicas ainda transmitem alguns dos nomes das discípulas galileias que seguiram Jesus da Galileia a Jerusalém. Diz-se que estas mulheres não só foram as testemunhas primordiais da execução de Jesus e de seu sepultamento, mas também as primeiras que proclamaram a ressurreição dele. Maria de Magdala foi a mais destacada destas discípulas da Galileia. De acordo com a tradição, ela foi chamada de “apóstola dos apóstolos”. O testemunho de Maria de Magdala e das outras discípulas insiste que Deus e o Ressurgido somente podem ser encontrados entre os Vivos.

Como Maria de Magdala, somos chamadas pela Sabedoria Divina para o discipulado de iguais. Como Maria de Magdala e as demais discípulas, somos incumbidas de ir e dizer aos “irmãos” que eles devem abandonar sua compulsão pelo controle e seu medo da autonomia e criatividade das mulheres. Jesus está indo à frente para a Galileia. Somente entre as pessoas é onde o encontrarão. As discípulas são enviadas aos discípulos para anunciar a boa nova daquele que vive. Elas são chamadas a empoderar a comunidade daquele que vive. Aquele que vive está seguindo em frente – não indo embora –, é o que ouvem elas nos evangelhos e o que ouvimos nós com elas. O medo da violência brutal do Estado não pôde deter o testemunho de Maria de Magdala e das outras mulheres.

Misoginia ao assumir a vida pública

As tradições sobre Maria de Magdala e as discípulas também indicam a misoginia que as mulheres enfrentam quando se atrevem a assumir liderança pública. Na teologia cristã, Maria de Magdala, a apóstola dos apóstolos, foi transformada na pecadora arrependida e “mais casta” prostituta, a mulher sexuada que está apaixonada por Jesus e lhe ensina modos femininos de ser. Esse estereótipo de Maria Madalena foi reforçado pelo Papa Gregório Magno (540-604) . Ele apresentava Maria Madalena como o exemplo de arrependimento e conversão ao povo de Roma que sofria com a fome, pragas e guerra. Conforme escreve Susan Haskins :

“E assim a transformação de Maria Madalena ficou completa. Da figura evangélica, com seu papel ativo de arauto da Vida Nova – a Apóstola para os Apóstolos –, ela se torna a prostituta redimida e o modelo cristão de arrependimento, uma figura dócil e controlável, uma arma e instrumento eficaz de propaganda contra o seu próprio sexo”. 

Redução da figura de Madalena

Estas histórias das discípulas não só foram esquecidas, mas Miriam de Magdala, a apóstola dos apóstolos, foi também feminilizada cultural e teologicamente. Hoje, clérigos e teólogos cristãos não enfatizam mais a pecaminosidade de Madalena, mas, em vez disso, degradam a sua liderança ao continuar insistindo, em muitas partes do mundo, que as mulheres não podem ser líderes de igrejas porque Jesus escolheu somente homens como apóstolos ou que as mulheres não têm o direito de reformular a liturgia ou a doutrina da Igreja. A cultura popular continua a reforçar o estereótipo cristão tradicional das mulheres como pecadoras ou amantes em livros como A última tentação de Cristo , de Kazantzakis , em filmes como A última tentação de Cristo , de Scorsese , ou em musicais como “Jesus Cristo Superstar” . Maria Madalena foi rebaixada de apóstola e testemunha da vida nova para um símbolo da pecaminosidade da mulher e estereótipo feminino de amor autossacrifical por um grande homem.

Livros e histórias contemporâneos sobre Maria Madalena poderiam ser resumidos com o refrão de “Jesus Cristo Superstar” – “Eu o amo tanto”. A música, a literatura e a arte modernas retratam-na como a amante de Jesus ou como sua esposa, cujo ser total existe no auto-sacrifício amoroso e na admiração. O culto da feminilidade é onipresente: a imagem de Maria Madalena como prostituta desenfreada, como a mulher pecadora, amante de Jesus, a mulher diabólica, reforça a ideologia cultural da feminilidade numa época de reação política contra as mulheres, numa época de comércio internacional do sexo e de abusos sexuais de membros do clero, numa época em que se diz de novo às jovens que o verdadeiro significado de suas vidas consiste no casamento e na maternidade.

Madalena iluminada pelo feminismo

Apesar de tal depreciação e cooptação, a velha tradição do discipulado de Maria e sua missão aos “irmãos” ainda sobrevive, e por causa da pesquisa feminista ela está ganhando um novo fôlego hoje. Nas últimas três décadas, estudos bíblicos e teologias críticas feministas mostraram que Miriam de Magdala não foi uma pecadora ou mulher decaída, mas uma liderança do movimento judaico que recebeu seu nome de Jesus (movimento de Jesus). Junto com Jesus e os outros discípulos e discípulas chamadas pela Sabedoria Divina, ela buscou viver e modelar uma comunidade de iguais voltada para o discipulado. Junto com as outras discípulas que haviam seguido Jesus da Galileia a Jerusalém e testemunhado sua prisão, sua execução e seu sepultamento, ela se transformou na testemunha principal da ressurreição.

Portanto, para muitos cristãos Miriam de Magdala se tornou o símbolo de esperança que desafia as pessoas que temem a liberdade e carecem de coragem para se levantar contra a misoginia, o racismo, o colonialismo e a injustiça. O testemunho que ela e as outras mulheres deram a respeito do túmulo vazio é ainda ouvido na liturgia da Páscoa e é a imagem mais representada na arte cristã dos primeiros tempos. Hipólito de Roma , que viveu por volta de 170-225 da era cristã, refere-se da seguinte maneira à tradição do apostolado de Maria e outras mulheres, que era conhecida ainda na Idade Média: “A fim de que as mulheres não parecessem mentirosas, mas portadoras da verdade, Cristo apareceu aos apóstolos e disse-lhes: Sou verdadeiramente eu quem apareceu a estas mulheres e quem desejou enviá-las a vocês como apóstolas”. 

Vários séculos mais tarde, Gregório de Antioquia , contemporâneo de Gregório Magno († 593), expressa esta mesma compreensão quando faz Cristo dizer às mulheres: “Sede vós as primeiras apóstolas para os apóstolos. Para que Pedro aprenda que eu posso escolher até mesmo mulheres como apóstolos”.

Discipulado de iguais

Invoquei aqui a figura de Maria de Magdala como um exemplo do chamamento de mulheres para a liderança no discipulado de iguais. A imagem dela de que mais gosto encontra-se na Catedral Episcopal de San Francisco . O artista moderno a pintou como uma mulher negra segurando em sua mão um ovo de Páscoa como símbolo da vida nova. Ela é um testemunho da plenitude da vida em meio à injustiça e morte.

Como Maria de Magdala, somos chamadas ao discipulado de iguais. Como seguidoras de Maria de Magdala, somos convidadas para a mesa da Sabedoria Divina. Nós estamos aqui reunidas neste espaço sagrado porque temos fome e sede de justiça. Estamos reunidas para ganhar força e perceber que não estamos sós e não somos impotentes. Estamos reunidas aqui para celebrar o chamado libertador de Maria de Magdala, para receber a mensagem de vida nova e de libertação dos poderes desumanizantes e mortíferos do antijudaísmo, do racismo, da misoginia, da homofobia e de muitos mais que nós também internalizamos.

O nosso chamado à igualdade radical fundamenta-se teologicamente no fato de que todos e todas somos criadas à imagem de Deus, que somos todas e todos chamados pela Sabedoria Divina e que todos e todas nós recebemos os dons multifacetados do Espírito. Em todas as nossas diferenças, representamos o Divino aqui e agora porque somos feitas e feitos à imagem e semelhança de Deus. Somos brancos e negros, homens e mulheres, pessoas jovens e de idade, pessoas sem e com deficiência, gays e héteros, imigrantes e nativos, americanos, europeus, asiáticos ou africanos. Somos pessoas sensatas e tolas, teóricas e práticas, corajosas e tímidas, bonitas e nem tão bonitas, eloquentes e taciturnas, espertas e inteligentes, fortes e fracas. Somos pessoas dotadas com uma variedade de talentos e dons, experiências e esperanças, fé e amor. Somos as representantes da Sabedoria Divina em nosso mundo!

Cada um e cada uma de nós é chamado e chamada a encarnar a imagem de Deus, que criou as pessoas à imagem divina, presenteou e chamou cada uma e cada um de nós de maneiras diferentes. A imagem divina não é nem masculina nem feminina, branca ou negra, rica ou pobre, mas multicolorida e multigênero, e mais. Nós, o povo de Deus, somos como Miriam de Magdala – mensageiras e representantes da Sabedoria Divina. Criadas à imagem divina, somos iguais. Somos iguais não só por causa da criação, mas também por causa do batismo. Somos povo de Deus, chamado e eleito, santo em corpo e alma, dotado do Espírito. Como pessoas ricamente dotadas, somos o corpo de Cristo em quem as diferenças de status religioso, racial, de classe, étnico e heterossexual não existem mais. Como povo peregrino, podemos fracassar repetidamente, porém continuamos a lutar pela vida em plenitude e pela realização do nosso chamado ao discipulado de iguais. A Sabedoria Divina chama cada uma de nós a se juntar a Ela em Sua obra de justiça e libertação, da mesma forma como chamou Miriam de Magdala e outras discípulas muito tempo atrás. Ouçamos o Seu chamado.■

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