Edição 489 | 18 Julho 2016

A autêntica humanidade em Jesus por Maria Madalena

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor Santos | Tradução Moisés Sbardelotto

Carlo Molari propõe a interpretação da personagem bíblica como “testemunha da misericórdia divina” e não como “pecadora arrependida”

A perspectiva de Maria Madalena enquanto uma pecadora arrependida é tomada pela tração – e não pelo que de fato está nos Evangelhos – em muito por ter tido sete demônios expulsos de si por Jesus. É daí que surge a figura da Madalena arrependida, aquela que se arrepende, converte-se e passa a ser a fiel seguidora. Essa ótica em muito já está superada, porém, há quem defenda a história como caráter pedagógico de conversão. 

O teólogo italiano Carlo Molari é do grupo que prefere outra interpretação. “Creio que é oportuno não chamá-la mais de ‘pecadora arrependida’ por causa da incerteza da referência, embora ela continue sendo ‘testemunha da misericórdia divina’ em razão da cura segura das suas doenças”, defende. Para ele, é preciso estar atento ao que se revela entre o Cristo e Madalena. “A relação de Jesus com a Madalena revela a sua autêntica humanidade, assim como a relação com a Samaritana e com as outras mulheres, acolhidas ao seu seguimento”.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, o teólogo ainda interpreta o que significa, dentro do ritual litúrgico da Igreja, o reconhecimento que vem sendo feito à Madalena. “A celebração litúrgica dessa mulher tem agora o mesmo grau de festa dado à celebração dos apóstolos”, destaca. Molari ainda acrescenta que “a função de Maria Madalena como apóstola dos apóstolos é única”. “O seu amor por Jesus é inegável, assim como a sua função histórica específica de anunciadora da ressurreição aos apóstolos”, completa.

Carlo Molari é teólogo e padre italiano. Trabalha com teologia dogmática, lecionou na Pontificia Università Lateranense, na Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Urbano de Propaganda Fide e no Instituto de Estudos da Religião na Pontificia Università Gregoriana, todas em Roma. Entre 1961 e 1968 foi assistente na Seção de Estudo Doutrinário da Congregação para a Doutrina da Fé. Foi, ainda, secretário da Associação Italiana de Teologia – ATI) e membro da Comissão de Consulta da seção dogma da revista internacional Concilium. Realiza trabalho pastoral em Roma no Istituto San Leone Magno. Entre suas publicações estão Caminhos Comunidade de Fé (Roma: Borla, 2000), A vida do crente. Meditações espirituais para o homem de hoje (Elle Di Ci, Leumann-Torino 1996), Darwinismo e teologia católica (Roma: Borla, 1984), A fé professada. Catecismo da Igreja Católica e os modelos teológicos (Milano: Paoline, 1996).


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Que compreensão se tem da figura de Maria Madalena hoje? Qual seu papel para o cristianismo?

Carlo Molari – Houve uma mudança profunda que se expressou também na liturgia: no mês passado (6 de junho de 2016) a recorrência litúrgica que cai no dia 22 de julho e era memória obrigatória para a Igreja universal foi elevada à festa. A razão adotada é a missão particular confiada a Maria Madalena por Jesus de levar o anúncio da sua ressurreição aos apóstolos. Por “expresso desejo do Papa Francisco”, no dia 22 de julho, na missa do dia, serão inseridas leituras especiais dedicadas a ela, e será recitado o Glória .

O atual Martirológio Romano diz: “Memória de Santa Maria Madalena, que, liberta de sete demônios pelo Senhor, se tornou sua discípula, seguindo-O até ao monte Calvário e, na manhã da Páscoa, mereceu ser a primeira a ver o Salvador ressuscitado dentre os mortos e levar aos outros discípulos o anúncio da ressurreição”. O atual Martirológio Romano faz memória, no dia 29 de julho, de Maria de Betânia, junto com a sua irmã, Marta, e o seu irmão, Lázaro. O jornal L’Osservatore Romano publicou um artigo ilustrativo do secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos , onde ele escreve: “A decisão se inscreve no atual contexto eclesial, que pede para se refletir mais profundamente sobre a dignidade da mulher, a nova evangelização e a grandeza do mistério da misericórdia divina. Foi São João Paulo II que dedicou uma grande atenção não só à importância das mulheres na própria missão de Cristo e da Igreja, mas também, e com especial ênfase, à peculiar função de Maria Madalena como primeira testemunha que viu o Ressuscitado e primeira mensageira que anunciou aos apóstolos a ressurreição do Senhor (cf. Mulieris dignitatem, n. 16). Essa importância continua hoje na Igreja – o atual empenho por uma nova evangelização manifesta isso – que quer acolher, sem qualquer distinção, homens e mulheres de qualquer raça, povo, língua e nação (Ap 5, 9), para lhes anunciar a boa notícia do Evangelho de Jesus Cristo, acompanhá-los na sua peregrinação terrena e oferecer-lhes as maravilhas da salvação de Deus. Santa Maria Madalena é um exemplo de verdadeira e autêntica evangelizadora, ou seja, de uma evangelista que anuncia a alegre mensagem central da Páscoa (cf. coleta do dia 22 de julho e novo prefácio)”. Nesse contexto, o secretário da Congregação recorda o título de “apóstola dos apóstolos”, referindo-se a Rábano Mauro  e a São Tomás de Aquino , “porque anuncia aos apóstolos aquilo que, por sua vez, eles anunciarão a todo o mundo (cf. Rábano Mauro, De vita beatae Mariae Magdalenae, c. XXVII; São Tomás de Aquino, In Ioannem Evangelistam Expositio, c. XX, L. III, 6)”.

Memórias e confusões do passado

No passado, a recordação de Maria Madalena tinha se desenvolvido como ícone da pecadora penitente pela identificação com a mulher anônima mencionada por Lucas no capítulo 7 do Evangelho (v. 36-50) e também com Maria, irmã de Lázaro, que tinha feito um gesto semelhante. A imagem da pecadora arrependida parecia encontrar confirmação no mesmo Evangelho de Lucas, que escrevia: “da qual haviam saído sete demônios” (Lc 8, 2) , fórmula retomada no acréscimo ao Evangelho de Marcos (Mc 16, 9: “da qual havia expulsado sete demônios”). Mas essa anotação pode se referir simplesmente à cura de doenças, que eram atribuídas à ação de espíritos. O Papa Gregório Magno , com a sua autoridade, tinha contribuído para a confusão das pessoas.

Esclarecimentos

Atualmente, os exegetas distinguem acuradamente as três pessoas diferentes. Trata-se, portanto, de um novo pensamento sobre o papel das mulheres na missão evangelizadora, mostrando Maria Madalena como um exemplo do significado e do papel das mulheres, do seu discipulado apostólico e da sua função na Igreja. A ela, Cristo ressuscitado confia a missão de testemunha e anunciadora da ressurreição aos apóstolos, chamados, depois, a testemunhar e anunciar a notícia ao mundo inteiro. Por isso, a celebração litúrgica dessa mulher tem agora o mesmo grau de festa dado à celebração dos apóstolos.

Reconhecimento

A antífona de entrada retoma o texto de Jo 20, 17: “O Senhor disse a Maria Madalena: ‘Vai a meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus’”. A coleta se refere ao “primeiro anúncio da alegria pascal”. A oração sobre as oferendas faz referência a “Cristo ressuscitado que acolheu o testemunho de amor reverente de Maria Madalena”. E, na oração após a comunhão, pedimos que o sacramento recebido “acenda também em nós o amor ardente e fiel de Santa Maria Madalena pelo Cristo, Mestre e Senhor”. O prefácio próprio resume deste modo a figura de Maria Madalena na sua relação com o Cristo “que tinha amado enquanto estava vivo, tinha-O buscado deitado no sepulcro e, por primeiro, adorou-O ressuscitado dentre os mortos, e que a honrou com o ofício apostólico perante os apóstolos, para que o anúncio da vida nova pudesse chegar até os confins da terra (do mundo)” (Qui in hortu maniféstus appáruit Maríæ Magdalénæ, quippe quae eum diléxerat vivéntem, in cruce víderat moriéntem, quæsíerat in sepúlcro iacéntem, ac prima adoráverat a mórtuis resurgéntem, et eam apostolátus offício coram apóstolis honorávit ut bonum novæ vitæ núntium ad mundi fines perveníret).

O Calendário Romano anterior ao Vaticano II  identificava Maria Madalena com a pecadora penitente e com Maria de Betânia, a irmã de Lázaro. O Missal Romano  de 1962, no dia 22 de julho, ainda celebrava a recordação de S. Mariae Magdalenae Paenitentis. A oratio do formulário identificava Maria Madalena com Maria, a irmã de Lázaro. O evangelho era o de Lc 7, 36-50, em que se fala da pecadora que entra na casa do fariseu, onde Jesus se encontra, e, chorando, banha com as suas lágrimas os pés do Senhor. O mesmo critério era seguido pelo Breviário Romano.

A divisão atual das três Marias corresponde melhor à tradição bíblica e permite focalizar a mensagem da primeira anunciadora do querigma pascal.


IHU On-Line – Como compreender a mensagem de Jesus Cristo através de Maria Madalena? E no que sua mensagem se difere na forma de pregar o evangelho de figuras como Pedro e Paulo?

Carlo Molari – Eu acredito que não podemos forçar muito o valor da figura de Maria Madalena na vida de Jesus, como fizeram alguns escritores de romances. Também não devemos exaltar de modo excessivo a peculiaridade do anúncio evangélico de Maria Madalena em relação ao feminino em geral. O seu amor por Jesus é inegável, assim como a sua função histórica específica de anunciadora da ressurreição aos apóstolos. Mas eu não tento deduzir características específicas a partir desse fato.


IHU On-Line – Em que medida se pode afirmar que Maria Madalena revela a perspectiva mais humana de Cristo?  E em que medida a perspectiva de Madalena, “a pecadora arrependida”, é importante para se pensar em remissão dos pecados? Mas, também, em que medida essa perspectiva reduz a figura de Madalena?

Carlo Molari – Mais do que a pecadora arrependida, eu me referiria ao poder de cura de Jesus. A referência do decreto da Congregação a São Gregório Magno (testis divinae misericordiae) também é ambígua por causa da identificação que São Gregório fazia das três Marias na única pessoa de Maria Madalena. Ora, eu creio que é oportuno não chamá-la mais de “pecadora arrependida” por causa da incerteza da referência, embora ela continue sendo “testemunha da misericórdia divina” em razão da cura segura das suas doenças. A relação de Jesus com a Madalena revela a sua autêntica humanidade, assim como a relação com a Samaritana e com as outras mulheres, acolhidas ao seu seguimento.


IHU On-Line – Qual foi o papel das mulheres no movimento de Jesus? Por que se fala tão pouco das mulheres que seguiam Cristo? Como as compreender no contexto do grupo e que espaço era dado a elas?

Carlo Molari – A situação era tão diferente da atual que temos dificuldade para entender, por exemplo, por que nos Evangelhos se fala tão pouco das mulheres no seguimento de Jesus e por que, a propósito dos discípulos, sempre se usa o masculino. Os Evangelhos, por outro lado, foram escritos por homens, que relatam de preferência a presença de homens e habitualmente ignoram as mulheres. No relato da multiplicação dos pães, por exemplo, lê-se que foram saciados “cerca de cinco mil homens” (Mc 6, 44; Lc 9, 14; Jo 6, 10b). Só Mateus acrescenta de modo genérico “sem contar mulheres e crianças” (Mt 14, 21).

No mundo judaico do primeiro século, as mulheres não desempenhavam um papel público nem tinham a obrigação de conhecer a lei. Elas tinham uma função significativa apenas dentro da família. As mulheres não estudavam a lei, não sabiam escrever, raramente sabiam ler. A mulher era considerada a serviço do homem e sob o seu domínio. No segundo relato da criação (o mais antigo), primeiro é criado o homem, depois as plantas, os animais, e, no fim, “Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja sozinho. Vou fazer para ele uma auxiliar que lhe seja semelhante’” (Gn 2, 18).

O destino da mulher era considerado como estar a serviço do homem, propriedade primeiro do pai, que podia até vendê-la como escrava para cobrir as dívidas familiares, depois do marido. Não acontecia o mesmo com o filho homem, que garantia a continuidade da família. Uma tarefa fundamental do pai e do marido era a de proteger a mulher das agressões sexuais dos outros homens. A mulher devia ficar escondida em casa, velada para ser protegida. A sexualidade era vivida pelo homem de um modo instintivo, de modo que era necessário garantir uma proteção contínua da mulher.

As impuras

Outro dado a se ter em mente é que a mulher era considerada muitas vezes em estado de impureza, seja pelas menstruações, sejam em consequência do parto. Havia muitas regras que também permaneceram na tradição cristã até tempos relativamente recentes: recitavam-se orações pelas mulheres depois do parto, invocando uma espécie de purificação.

Funções familiares

Um último elemento a se ter presente era o fato de que a atividade específica da mulher era desempenhada dentro da família. A sua tarefa era preparar as refeições, organizar a casa, cuidar dos filhos nos primeiros anos de vida, quando ainda estavam sob a sua tutela, até que o pai assumisse a função de chefe e educador. Ao filho, o pai devia ensinar uma profissão e prepará-lo para a vida; à filha, ele devia encontrar um marido. A mulher, habitualmente, não tinha papel nem relevância social. Essa condição geral da mulher também teve reflexões na cultura cristã primitiva.

A subversão de Jesus

Jesus, ao contrário dos mestres oficiais daquele tempo, também tinha discípulas, e as relações que ele mantinha com as mulheres eram julgadas como inoportunas. Giorgio Jossa  escreve a respeito: “Jesus frequentou apenas vilarejos de camponeses e de pescadores, aquele ‘povo da terra’ que, não conhecendo a lei, dificilmente podia ser apreciado pelos fariseus (…) E ele não teve nenhuma dificuldade para manter relações familiares com as mulheres, algo totalmente incomum e inevitavelmente suspeito para um mestre judeu”. 

Lucas, apresentando a pregação de Jesus escreve: “Depois disso, Jesus andava por cidades e povoados, pregando e anunciando a Boa Notícia do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos maus e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios; Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana, e várias outras mulheres, que ajudavam a Jesus e aos discípulos com os bens que possuíam” (Lc 8, 1-3). Para o exegeta James Dunn , “particularmente interessante é o relato de Marcos 15, 41, segundo o qual, ‘quando ele estava na Galileia’, essas mulheres ‘costumavam segui-lo (ekoloutoun) e cuidar (diekonoun) d’Ele’. Marcos acrescenta que havia muitas outras mulheres que tinham subido com ele a Jerusalém” . O mesmo exegeta observa que, mesmo entre os amigos estáveis, as mulheres são muito numerosas, porque é a elas que é delegada a função de “hospitalidade” nas casas que acolhem Jesus e os seus . Entre estas, devem ser recordadas, em primeiro lugar, Marta e Maria, as irmãs de Lázaro. Elas moravam em Betânia, onde muitas vezes Jesus se retirou como hóspede, sobretudo na última semana, quando, todos os dias, ele ia ao templo.

Mulheres na vida de Jesus

As mulheres têm um papel relevante na fase final da vida de Jesus. No caminho rumo ao calvário, muitas mulheres “batiam no peito e choravam por Jesus. Jesus, porém, voltou-se, e disse: ‘Mulheres de Jerusalém, não chorem por mim! Chorem por vocês mesmas e por seus filhos! Porque dias virão, em que se dirá: Felizes das mulheres que nunca tiveram filhos, dos ventres que nunca deram à luz e dos seios que nunca amamentaram. Então começarão a pedir às montanhas: Caiam em cima de nós! E às colinas: Escondam-nos! Porque, se assim fazem com a árvore verde, o que não farão com a árvore seca?’” (Lc 23, 27-31).

As discípulas de Jesus tiveram uma grande parte na unção para a sepultura e na descoberta do túmulo vazio. Todos os Evangelhos falam disso, embora de modo diferente. Essa diversidade que reflete as várias tradições que se formavam na cultura oral do tempo e sem muitos contatos entre as diversas comunidades é uma confirmação inequívoca do fato de que as mulheres tiveram um papel importante.

Marcos recorda Maria de Magdala à frente de um grupo de mulheres que, ao contrário dos discípulos que haviam fugido, observam “de longe” (Mc 15, 40 paralelos) a crucificação, queriam ungir o corpo de Jesus (Mc 15, 47-16, 1 par.) e foram as primeiras a ver o túmulo vazio (Mc 16, 2-8; Lc 24, 22-23) e Jesus ressuscitado dos mortos (Mt 28, 8-10) e informaram os outros discípulos a respeito disso (Lc 24, 10, 23).

Em todos os casos, também a elas foram dirigidas as palavras que o quarto Evangelho atribui a Jesus na primeira aparição narrada depois da ressurreição: “Recebam o Espírito Santo. Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão perdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem, não serão perdoados” (Jo 20, 22-23).


IHU On-Line – Como compreender a figura feminina na Igreja? Em que medida Maria Madalena pode auxiliar na busca por essa compreensão? Por que sua figura não tem (ou não vinha tendo) o mesmo espaço de outras mulheres da vida de Cristo, como a Virgem Maria? 

Carlo Molari – Não me parece exata a comparação com Maria, a Mãe de Jesus, que, à parte os Evangelhos da infância, não aparece quase nada durante a vida pública do Filho. E, quando aparece, parece ter uma atitude de reserva preocupada: Marcos relata que “os parentes de Jesus foram segurá-lo, porque eles mesmos estavam dizendo que Jesus tinha ficado louco” (Mc 3, 21). E quando os seus chegaram a Cafarnaum, e a sua presença é anunciada a Jesus, ele responde: “Quem é minha mãe e meus irmãos? (…) Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (3, 33-35).

Evangelhos Apócrifos

A razão fundamental pela qual Maria Madalena é pouco recordada é de ordem cultural. Há muito tempo já se fala de Maria Madalena tão detalhadamente. Tenhamos em mente a incidência dela sobre os evangelhos apócrifos . Podemos começar justamente da perturbação que a presença feminina provocou entre os próprios seguidores de Jesus. Isso tem reflexos explícitos nos escritos apócrifos, sobretudo de tendência gnóstica.

O Evangelho segundo Tomé , por exemplo, no dito 114, o último, relata este estranho diálogo entre Jesus e Pedro: “Simão Pedro disse-lhes: ‘Maria deve nos deixar, porque as mulheres não merecem a vida!’. Jesus respondeu: ‘Eis que eu a guiarei a ponto de torná-la homem, de modo que ela também possa se tornar um espírito vivo semelhante a vocês, homens. Pois toda mulher que se torna homem entrará no reino dos céus’” .

O próprio biblista escocês Bruce  cita dois outros testemunhos gnósticos relativos a Maria Madalena: “Em Pistis Sophia, quando Maria expressou o ‘mistério do arrependimento’ em um sentido gnóstico e Jesus se congratulou com ela pela sua intuição, Pedro protesta: ‘Ó Senhor, não podemos mais suportar essa mulher, que fala no nosso lugar; ela não permitiu que nenhum de nós falasse, e ela fala muitas vezes’” . O mesmo autor resume o fragmento de um papiro grego de um Evangelho segundo Maria (Madalena)  do início do terceiro século “em que os discípulos discutem sobre revelações que o Senhor teria feito exclusivamente a Maria. Pedro não quer admitir que o Senhor teria confiado privadamente a uma mulher verdades que não partilhou aos seus discípulos homens, mas Levi o repreende e defende Maria” . A presença de Maria Madalena e das outras tinha suscitado reações e descontentamentos.


IHU On-Line – Como compreender a forma como a figura de Madalena foi tratada pela Igreja ao longo da história?

Carlo Molari – O modo pelo qual a figura de Maria Madalena foi desenvolvida na história da Igreja é emblemático. Certamente, outras mulheres tiveram papéis ativos na Igreja, até mesmo extraordinários, mas eu não falaria de “atualização” da sua figura. Cada santa tem a sua identidade histórica. A função de Maria Madalena como apóstola dos apóstolos é única. O fato de tê-la ignorado não foi compensado por nenhuma outra função.


IHU On-Line – De que forma é possível compreender os movimentos da Igreja hoje com relação às mulheres?

Carlo Molari – Existem diversos movimentos femininos dentro da Igreja. A questão mais relevante diz respeito ao poder a ser concedido às mulheres e ao sacerdócio feminino.

A historiadora Giulia Galeotti escreve: “Aos olhos do mundo, porém, um ponto permanece misterioso e absolutamente incompreensível: o fechamento ao sacerdócio. Por que isso deve ser de exclusiva pertinência masculina? A demanda se tornou tão premente também a partir de dentro, que houve a necessidade de um posicionamento oficial. ‘Para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja – escrevia João Paulo II na carta apostólica Ordinatio sacerdotalis (1994) –, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cfr. Lc 22, 32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja’. Além disso, na Evangelii gaudium (2013), o Papa Francisco escreveu que ‘o sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão’. Confirmando o ensinamento transmitido ao longo dos séculos, portanto, reiterou-se que as mulheres não podem ser ordenadas nem sacerdotes nem bispos, uma vez que estes são os sucessores dos apóstolos (todos homens) e, durante a celebração eucarística, agem in persona Christi, isto é, como se fossem Cristo” .

Galeotti recorda os argumentos adotados por aqueles que defendem a praticabilidade da ordenação feminina: “Graças ao batismo, mulheres e homens são iguais no seguimento de Cristo; durante a última ceia, Jesus deixou o seu mandato aos homens e às mulheres presentes; Maria é o primeiro dos sacerdotes; Maria estava presente com os apóstolos quando Jesus se revelou; depois da ressurreição, as mulheres foram ordenadas diaconisas; a contrariedade da Igreja se baseia em um preconceito misógino plurissecular; o fato de que muitas mulheres católicas se sentem chamadas ao sacerdócio é um importante sinal do Espírito Santo não pode ser ignorado” .

Lucetta Scaraffia  fala de uma minoria de teólogas e de religiosas que, em cada país ocidental, “luta abertamente pelo sacerdócio feminino, considerando o único caminho possível para garantir o acesso das mulheres aos papéis decisionais, hipótese considerada inaceitável por todos os papas, incluindo Francisco” .

Adriana Valerio  termina o seu livro Le ribelli di Dio [As rebeldes de Deus] com um breve capítulo Sobre a autoridade na Igreja , que concluiu com estas palavras: “A presença da mulher dentro da estrutura eclesial seria extremamente valiosa, mas, para isso, é preciso facilitar o seu acesso aos centros decisionais, abrindo-lhe novos espaços de corresponsabilidade operativa. Reconhecer a dignidade e a autoridade da pessoa, de fato, significa compartilhar com ela a participação nos processos decisionais. O modelo inclusivo de participação e o ethos de igualdade não excluem o exercício da autoridade-serviço, mas, ao contrário, exigem-no. Por isso, é preciso se abrir a um horizonte de reformas em uma Igreja que queira se renovar, para que a teologia esteja pronta para abrir espaços para as palavras das mulheres; para que o episcopado esteja disposto a enfrentar a fundo a problemática do ministério e da partilha do governo da Igreja e da necessária reorganização da comunidade cristã” .


IHU On-Line – Como analisa o resgate que o Papa Francisco vem fazendo a figura de Madalena e o que isso diz acerca do seu reconhecimento da mulher na Igreja?

Carlo Molari – De modo muito positivo. Com as suas escolhas e os seus gestos, ele está sacudindo a Igreja, um pouco cansada e incerta. Mas eu acredito que não devemos pisar muito no acelerador e esperar muito do papa. O caminho da Igreja é longo, e os seus ritmos devem permitir que todos acompanhem os processos em curso. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição