Edição 488 | 07 Julho 2016

O cabo de guerra da sociedade brasileira ontem e hoje

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Leslie Chaves

Para Ivone Benedetti, a instabilidade da democracia no país é uma das principais pontes possíveis de estabelecer entre passado e presente, entre a ficção narrada em sua obra e o contexto atual
Cabo de Guerra (São Paulo: Boitempo, 2016)

O regime militar, período sombrio da trajetória do Brasil, é o cenário em que se desenrolam os acontecimentos da vida de um “cachorro”, que nesse caso não é o animal, mas uma metáfora que simultaneamente é usada para fazer referência à submissão canina e ao desvio de caráter de uma figura comum na gramática da ditadura. Trata-se de um agente infiltrado nas organizações subversivas, que enquanto militante da luta armada é preso pela repressão e trai seus companheiros pondo-se a serviço dos militares. Este oficial, que vive entre seus dilemas familiares, delírios alucinógenos e a vida dupla que escolhe ao servir o sistema repressivo, é o personagem central do recém-lançado livro Cabo de Guerra (São Paulo: Boitempo, 2016).

“É uma narrativa que se quer sedutora, a história de um indivíduo que se viu carregado pela torrente política de sua época sem encontrar um galho para se agarrar. E, começando como um jovem qualquer, normal e pacato, acabou se tornando ‘sinistro’, como define Bernardo Kucinski. Digamos que ele poderia ser visto como mais um exemplo da banalidade do mal, usando a expressão de Hannah Arendt”, explica a autora da obra, Ivone Benedetti, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

De acordo com a escritora, apesar de o livro narrar uma ficção e retratar uma passagem histórica ocorrida há mais de 50 anos, entre esse mundo imaginado, a concretude do passado e o momento atual que o país vive é possível construir uma ponte, cujo principal pilar é a instabilidade democrática. “Hoje, nossas instituições democráticas estão sendo postas em xeque assim como foram em 1964, quando nossas oligarquias se armaram contra o governo democraticamente eleito de João Goulart. Lá como agora as razões alegadas para a desestabilização de um governo não foram e não são as reais, e a percepção desse engodo sempre provoca profundo descontentamento em quem consegue distinguir as manobras de indução em erro. É bem verdade que, quando escrevi esse livro, não imaginei que na época de seu lançamento estaríamos passando pelo que passamos agora. Mas sempre percebi a fragilidade da nossa democracia”, aponta Benedetti.

Sobre a polarização política a qual assistimos se intensificar no Brasil, para a escritora “a narrativa não mudou ou mudou muito pouco. E quais são esses polos? De um lado, a defesa intransigente dos privilégios das nossas classes dominantes e, do outro, a luta renhida por direitos desde sempre negados às classes secularmente desprotegidas. As diferenças que há entre a visão de hoje e a de ontem não são substanciais, são acidentais. Ainda vigora entre nós a tendência à criminalização dos movimentos sociais, tachando-se de ação comunista qualquer tentativa de derrubar privilégios perniciosos. Combater privilégios é ‘subversivo’ (essa palavra já não é usada, mas os conceitos, ou preconceitos, persistem)”, salienta.

Ivone Benedetti nasceu em São Paulo, de uma família de imigrantes italianos e espanhóis. Cursou Letras na Universidade de São Paulo - USP, onde também defendeu tese de doutorado em 2004 sobre a poesia medieval francesa. Sua vida profissional dividiu-se durante muito tempo entre o magistério e a tradução. Traduziu obras de autores como Umberto Eco, Jean-Paul Sartre, Voltaire, Michel Foucault, Mario Vargas Llosa, Leonardo Padura, entre outros. Em 2009 estreou como ficcionista com o romance Immaculada (São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009), que ficou entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010. Em 2011 lançou o livro de contos Tenho um cavalo alfaraz (São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011). Tem várias obras publicadas na área de tradução e de língua portuguesa.

 

Confira a entrevista. 

 

IHU On-Line – Por que a escolha por esse período da história do Brasil para ambientar sua obra? De que maneira você se relaciona com essa passagem da historiografia nacional?

Ivone Benedetti - Eu vivi esse período. A relação que tenho com esse momento da história nacional é direta, vivencial. Mas não explica a escolha, porque eu poderia ter optado por qualquer outro período. A verdade é que, no momento em que decidi criar uma história em torno de um agente duplo, pensei em situá-la no Estado Novo  ou, mais precisamente, em 1937, época que eu já havia estudado bastante para criar meu primeiro romance, Immaculada, que se passa entre 1924 e 1964. Aos poucos, minhas preferências foram migrando para o ano de 1969, que é quando o protagonista leva o seu primeiro choque de realidade, paradoxalmente travestido em alucinação.


IHU On-Line – “Cabo de Guerra” é uma obra recém-lançada, mas por quanto tempo foi gestada? Soube que esse é um projeto antigo, mas que só se concretizou agora. Por que sua realização foi postergada? 

Ivone Benedetti - Na verdade, a postergação ocorreu antes de Cabo de guerra. A grande postergação da minha vida se refere à decisão de editar. Apesar de sempre ter escrito, só criei coragem de enfrentar a publicação tardiamente. Immaculada (São Paulo, WMF Martins Fontes, 2009), meu primeiro romance, foi lançado pela WMF Martins Fontes em 2009. Cabo de Guerra (São Paulo: Boitempo, 2016) eu comecei a escrever em 2008 e terminei em 2012, portanto são quatro anos de trabalho. 


IHU On-Line - Esse tempo de “adiamento” incidiu de alguma maneira sobre o resultado de sua criação? Por quê? Como?

Ivone Benedetti - Esse adiamento acabou sendo benéfico. Primeiro porque tive tempo de amadurecer, tanto do ponto de vista literário quanto pessoal. Embora não pareça, não é fácil enfrentar o leitor, a crítica, enfim, o “outro”, apresentando aquilo que a gente criou. O autor precisa ter muita serenidade para sair inteiro desse contato, que nem sempre é feliz, sobretudo num país de poucos leitores como o nosso.


IHU On-Line – A partir do personagem central de “Cabo de Guerra”, como foi o exercício de lidar com os dois extremos da ditadura no Brasil na concepção de sua obra, rememorando as atrocidades cometidas durante a repressão e as estratégias de luta das pessoas consideradas subversivas? 

Ivone Benedetti - Olha, foi feliz o uso da expressão “dois extremos”. Foi exatamente a noção de duas posições inconciliáveis e de um sujeito que não consegue se definir entre as duas que me moveu a escrever o romance. A impossibilidade de viver entre dois extremos sem cometer traições e a incapacidade de distinguir real de irreal, verdade de ilusão, foram as linhas que nortearam a construção do personagem-narrador. 


IHU On-Line – Quais foram as marcas mais profundas deixadas pelo período ditatorial no país?

Ivone Benedetti - A ditadura instaurada em 1964 foi uma chaga que evoluiu sem tratamento. A cicatriz ficou feia, bem visível, inextinguível. Os crimes não foram tratados como crimes, e esquecimento é coisa que não existe. É como o indivíduo que viveu um trauma e sobrevive recalcando as marcas desse trauma. A todo momento aquilo tudo vem à tona, sem catarse. A nossa catarse política teria sido a punição dos criminosos. Centenas de pessoas morreram nas circunstâncias mais cruéis, pessoas que estavam nas mãos do Estado, desarmadas (algumas antes haviam portado armas, outras nem isso), e as nossas leis não conseguiram firmar a noção óbvia de que aquilo foi um crime imprescritível e, portanto, há criminosos que precisam ser punidos. 

E por que é tão difícil firmar essa noção? Primeiro porque somos uma sociedade autoritária, com grande dificuldade de entender o que são direitos humanos. Em segundo lugar, o desmantelamento da ditadura se deu menos pela ação enérgica das forças democráticas e muito mais pela exaustão do próprio regime. E, antes de se extinguir, esse regime teve tempo e força de impor sua penúltima condição: a anistia não só aos seus adversários sobreviventes, como também aos responsáveis pela tortura e morte dos outros, dos que não saíram vivos das masmorras do Estado. Sua última condição foi a eleição indireta no novo presidente.


IHU On-Line – De que modo você interpreta o cenário de polarização política que se instalou no país mais recentemente e as diversas manifestações solicitando “intervenção militar”, que apareceram em mobilizações a favor do processo de impeachment no Brasil?

Ivone Benedetti - Polarizações sempre existiram na vida política de qualquer país. A atual, no Brasil, não começou hoje, sua origem está lá atrás, no início da Guerra Fria . Por incrível que pareça, há uma sólida persistência no padrão dos discursos dos dois polos (mas eu diria que muito mais no da direita) ao longo de todas essas décadas. Nos anos 1950 o discurso anticomunista era muito virulento e fazia parte da formação das crianças nas escolas. Eu me lembro da distribuição de gibis em preto e branco com histórias terríveis e imagens escuras, muito sombreadas, que mostravam o crucifixo sendo execrado pelas autoridades dos países comunistas. Contavam-se casos, dizia-se que na União Soviética fincavam palitos nos ouvidos das crianças que rezavam, coisas assim, amedrontadoras, que tinham justamente o objetivo de assustar, dissuadir. Nas escolas públicas, isso era feito por padres e freiras que davam aulas de religião. 

O que veio imediatamente após aquela doutrinação foi contraditório: por um lado, uma juventude rebelde que, no fim da década de 60, se insurgiu não só contra um regime político, mas contra todo um conjunto de preceitos morais e comportamentais; por outro lado, um grande contingente da população imbuído de religiosidade tacanha e conservadorismo desumano. Sobre este contingente a doutrinação teve dois efeitos: gerou medo nos mais tímidos e ódio nos mais truculentos. Uma coisa é informar a adultos os crimes cometidos pelos ditos regimes comunistas, e isso houve; outra é insinuar no inconsciente infantil imagens apavorantes, fantasmagóricas. O mais espantoso, no entanto, é que esse tipo de discurso persiste ainda hoje, perpetuado pela desinformação, pela falta de uma verdadeira educação e pela pregação de religiosos mercenários, a serviço de interesses inconfessáveis. 

O pavor que amplos segmentos da direita sentem daquilo que eles percebem como o fantasma do comunismo não tem raízes na racionalidade. Se tivesse, não subsistiria com tanto vigor depois da queda do muro de Berlim. Com gente assim é impossível o debate de bom nível. O esclarecido de direita é cada vez mais raro. Como a incultura grassa, hoje a massa que se diz de direita dispensa ideias e fica com chavões, deixa-se levar pelo medo irracional, aderindo facilmente a medidas de força porque só isso lhe dá segurança. Se você somar uma crise econômica, esse quadro não fica nada longe daquilo que se diagnostica como fascismo.

Enquanto isso, a esquerda pós-queda do muro de Berlim, passado o primeiro momento de perplexidade, procura entender e, literalmente, se refazer. Ela sabe o que não quer, mas, em vista dos erros cometidos nas sociedades que tentaram fugir ao modelo capitalista, tem enorme dificuldade para achar o caminho de uma nova organização social. Então, entre a indigência intelectual da direita e a pobreza de perspectivas da esquerda, cria-se uma polarização estéril. E o que se dá é embate, e não debate. No entanto, mesmo em vista da atual realidade, é bom lembrar que só uma minoria deseja sinceramente algum tipo de intervenção militar. Ainda bem. Por enquanto, pelo menos.


IHU On-Line – Sua obra promete construir pontes entre passado e presente. Que pontes entre presente e passado são possíveis de se construir nesse momento político que o Brasil está vivendo?

Ivone Benedetti - Não houve solução de continuidade no modo de ver, de interpretar, os dois principais polos em conflito em nossa sociedade, desde o início da Guerra Fria até hoje. Para usar um termo da moda, a “narrativa” não mudou ou mudou muito pouco. E quais são esses polos? De um lado, a defesa intransigente dos privilégios das nossas classes dominantes e, do outro, a luta renhida por direitos desde sempre negados às classes secularmente desprotegidas. As diferenças que há entre a visão de hoje e a de ontem não são substanciais, são acidentais. Ainda vigora entre nós a tendência à criminalização dos movimentos sociais, tachando-se de ação comunista qualquer tentativa de derrubar privilégios perniciosos. Combater privilégios é “subversivo” (essa palavra já não é usada, mas os conceitos, ou preconceitos, persistem). 

Por outro lado, embora naquela época fosse bem visível um “cabo de guerra” entre o bloco ocidental e o soviético, hoje os interesses geopolíticos são mais difusos, menos nítidos, mas não deixam de existir e atuar. De modo que o que acontece internamente no País é, em grande parte, reflexo do que acontece lá fora ou está permeado pelos conflitos de interesses entre países hegemônicos. Por essas razões, além de várias outras, nossa democracia é frágil, é instável. É essa a ponte que se pode estabelecer entre o narrado na ficção e a realidade atual.

Hoje, nossas instituições democráticas estão sendo postas em xeque assim como foram em 1964, quando nossas oligarquias se armaram contra o governo democraticamente eleito de João Goulart . Lá como agora as razões alegadas para a desestabilização de um governo não foram e não são as reais, e a percepção desse engodo sempre provoca profundo descontentamento em quem consegue distinguir as manobras de indução em erro. É bem verdade que, quando escrevi esse livro, não imaginei que na época de seu lançamento estaríamos passando pelo que passamos agora. Mas sempre percebi a fragilidade da nossa democracia.


IHU On-Line – A partir de uma visada na recente trajetória do processo de construção da democracia no Brasil, que está presente em Cabo de Guerra através da narrativa da personagem principal que percorre passado e presente para contar sua história, o que você espera do futuro político do país?

Ivone Benedetti - Não vou fazer previsões. Posso dizer o que desejo. E eu gostaria muito que o povo brasileiro assumisse as rédeas da sua história. Gostaria que ele fosse a antítese do protagonista de Cabo de guerra (São Paulo: Boitempo, 2016), que passa a vida sendo levado, sendo objeto em vez de sujeito. Para isso é preciso coragem. Coragem de tropeçar no erro durante a caminhada para o acerto. Talvez esse dia esteja longe.   


IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Ivone Benedetti - Ao contrário do que sugere muito do que foi dito acima, Cabo de guerra não é um texto político. É uma narrativa que se quer sedutora, a história de um indivíduo que se viu carregado pela torrente política de sua época sem encontrar um galho para se agarrar. E, começando como um jovem qualquer, normal e pacato, acabou se tornando “sinistro” (qualificação dada por Bernardo Kucinski  ao personagem, na orelha do livro). Digamos que ele poderia ser visto como mais um exemplo da banalidade do mal, usando a expressão de Hannah Arendt . Esse sujeito, que vai da banalidade ao mal, nasceu numa família como tantas outras na Bahia. Um dia seu pai morre tragicamente, o núcleo familiar se desfaz e ele vai para São Paulo. Todos os acontecimentos narrados, no entanto, têm como pano de fundo duas situações anômalas: uma é a do regime ilegítimo, responsável por um confronto social doloroso; a outra é a tendência do personagem a sofrer alucinações. 

Como gosto de obras que me prendam pela trama, procuro oferecer tramas interessantes ao leitor, para que ele não fique entediado, para que não feche o livro antes da metade. Tenho outra pretensão: a de criar várias camadas na minha narrativa. A percepção delas é tarefa do leitor. 

Antes de finalizar, porém, gostaria de voltar a Bernardo Kucinski. Li o livro dele, K – relato de uma busca (São Paulo: Cosac Naify, 2014), quando Cabo de guerra já estava pronto e no prelo. Encontrei lá uma frase que, nessa obra de Kucinski, publicada em 2014, soou em mim como eco perfeito de uma sensação pessoal que vivenciei com intensidade naquele momento histórico que nossos livros narram. Essa sensação em mim durou um átimo, não chegou a ser verbalizada, mas é certo que naquele átimo meu livro começou a ser gestado. A frase de Kucinski está numa carta enviada pela filha do personagem K a uma amiga. Referindo-se à situação do momento e comparando-a ao filme Anjo exterminador (Espanha, 1963, direção Luis Buñuel), de Buñuel , ela diz: “Já nem sei mais onde está a verdade e onde está a mentira”. Foi exatamente essa sensação que me inspirou o personagem. Mas, enquanto a protagonista de K acaba como mártir, o meu sobrevive, passa a vida encarnando esse dilema e vira um calhorda.■

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