Edição 488 | 04 Julho 2016

A vitória do Brexit: interpretando cenários complexos e incertos

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Diego Pautasso e Bruno Lima Rocha

“O líder do UKIP, Nigel Farage, aplica a solução xenófoba para a crise imposta pela austeridade comandada pelo sistema financeiro e corporações transnacionais”, escrevem Diego Pautasso e Bruno Lima Rocha.

Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, graduado em Geografia também pela UFRGS. Atualmente é professor de Relações Internacionais da UNISINOS. Autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria (editora Juruá, 2011).

Bruno Lima Rocha é doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente é professor de Relações Internacionais da UNISINOS e editor do portal Estratégia & Análise.


Eis o artigo.

 

A vitória da campanha liderada pelo Partido pela Independência do Reino Unido - UKIP levou à saída de Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte da União Europeia - UE. O processo, contudo, não é automático e exigirá o desenlace de diversos arranjos institucionais criados pelo bloco. O resultado do plebiscito de 52% a 48% revela um voto conservador, pois foi amplamente derrotado na metrópole londrina e entre as populações mais jovens. Com efeito, a eleição tem gerado controvérsias, com pedidos de recontagem e coletas de assinaturas para realização de novo plebiscito. Neste texto, avaliamos os âmbitos domésticos, regional e a projeção de poder global. 


A política na Grã-Bretanha 

A vitória do Brexit deve ser analisada sobre diversos ângulos. O primeiro, doméstico, pode representar a fragmentação do Reino Unido, uma vez que a permanência da Escócia no plebiscito do ano passado deu-se justamente para manter-se na União Europeia — o que agora não faria sentido. 

Neste âmbito político vemos a marca de um perigoso fortalecimento à direita do Partido Conservador. Quando o primeiro ministro demissionário, o conservador David Cameron, convoca o plebiscito, seu gabinete trabalha com a equivocada estimativa de vitória da permanência na UE, reforçando também suas condições de governabilidade. O resultado foi justo o oposto. 

A partir do final da década de 70 do século XX, a começar pela Frente Nacional - NF, passando pelo Partido Nacional Britânico - BNP e reforçada esta identidade com os realistas do Ulster (Irlanda do Norte), o sentimento xenófobo no Reino Unido vem sendo reforçado à medida que esta sociedade vai ficando mais pluriétnica. Fazendo uma campanha baseada no egoísmo econômico, o Partido pela Independência do Reino Unido - UKIP conseguiu galvanizar estas escolhas, também acumulando o sentimento contra imigrantes comunitários, refugiados e a islamofobia. 

O líder do UKIP, Nigel Farage, explicitamente responsabiliza os acordos de integração pela perda dos padrões de vida britânicos e defende a reserva de mercado de trabalho para sua cidadania. Desta forma, aplica a solução xenófoba para a crise imposta pela austeridade comandada pelo sistema financeiro e corporações transnacionais, capturando o imaginário da força de trabalho pouco qualificada. O rechaço dos trabalhadores de idade avançada e aposentados de aglomerados urbanos do centro e do norte da Inglaterra reforça o ceticismo anti-Euro com a postura galvanizada de enxergar na força de trabalho recém-chegada como adversária. Notadamente, a comunidade de origem polonesa, além de outras migrações advindas do leste europeu, dotados de passaporte comunitário, recebe esta percepção negativa, sendo alvo de ataques xenófobos e demagogia reacionária.

O caso da Grã-Bretanha pode indicar uma tendência, que pode ser ainda mais intensa em países periféricos da zona do euro. A UE paga o preço pela retirada de direitos sociais de uma política de viés neoliberal e vê a direita xenófoba hegemonizar o discurso eurocético. Eis a chance da fragmentação do bloco. 

 

Reflexos no âmbito regional europeu

A segunda consequência, de âmbito regional, é que a escolha britânica fortalece os eurocéticos gerando forças centrífugas na Europa e recrudescendo as rivalidades intraeuropeias. Na Grã-Bretanha estas forças foram representadas por conservadores, saudosistas de uma hegemonia há muito perdida, e trabalhadores corporativistas sensibilizados no contexto de crise. Parte importante da esquerda apoiou a saída da UE, sob alegação de fragilizar a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) e suas políticas liberais, criar políticas populares em âmbito estatal e ampliar a soberania nacional. Resta ver se a GB tem condições de girar à esquerda, distanciando-se tanto da hegemonia geoeconômica alemã quanto do alinhamento automático com os EUA, ambos com seu modelo de austeridade neoliberal. Em princípio, tudo indica que este giro não se sucederá, sendo mais provável um impacto recessivo nos primeiros anos de incertezas.  

O risco real é que estas opções à esquerda redundem no veto ao Acordo Schengen e no livre trânsito entre cidadãos comunitários, fortalecidos por sentimento xenófobo agudizado pela onda migratória do Oriente Médio — oriunda de países justamente onde EUA e seus aliados europeus e regionais produziram o caos, como Síria, Iraque e Afeganistão. Ademais, num cenário de crise econômica, há o risco de crescimento da extrema direita eurocética e da consequente fragmentação do processo de integração europeu, mas impulsionado pela direita nacionalista. 

 

O alinhamento anglo-saxão no Atlântico Norte e alguns apontamentos

A terceira, de âmbito global, é o fortalecimento do histórico alinhamento da GB com a superpotência, os EUA. A GB sempre operou como cavalo de Troia dos EUA dentro do bloco europeu. Primeiro, criou a Associação Europeia de Livre Comércio (1960) como forma de rivalizar com a integração continental; depois evitou participar do euro; e, por fim, priorizou a OTAN diante das iniciativas securitárias da União. Ressalte-se que a despesa com defesa da GB só é menor dentro da OTAN que da própria superpotência. Assim, a saída da GB reforça o domínio geoeconômico da Alemanha e, ao mesmo tempo, a derradeira potência militar da França. Por outro lado, os EUA podem perder seu aliado intra-UE para defender seu projeto de Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento - TTIP.

Enfim, os efeitos ainda são incertos, há muitas controvérsias e, inclusive, tal processo pode sofrer reveses. A eleição nos EUA também pode impactar os rumos da integração europeia, considerando que o candidato republicano Donald Trump recobra fôlego tanto com o Brexit, como antes com o atentado homofóbico em Orlando, Flórida. Da mesma forma, a saída dos britânicos poderia alterar a correlação de forças na União Europeia, permitindo que se refaçam as pontes com a Rússia. O fato é que o sistema internacional está num momento de fortes contradições, cujos desdobramentos são incertos. 

 

Expediente

Coordenador do curso: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme

Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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