Edição 487 | 13 Junho 2016

A condição universal da humanidade dos povos e a soberania de seus príncipes

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Márcia Junges | Edição Leslie Chaves

Para Sílvia Loureiro, os escolásticos ibero-americanos em seu tempo já debatiam questões que até hoje estão no cerne das discussões sobre os direitos humanos

Os pensadores filiados à corrente de estudos da Escola Ibérica da Paz desenvolveram um conceito de pessoa centrado em referências como a filosofia greco-romana e o direito romano, e fundamentos do saber cristão materializados nas formulações teóricas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, em diversos documentos eclesiásticos e, sobretudo, na bíblia. Em síntese, com base nesses referenciais, os escolásticos concebem o humano enquanto imagem e semelhança de Deus e como um ser essencialmente social. 

Nesse sentido, conforme ressalta Sílvia Silveira Loureiro, “os dois grandes pilares fundamentais aceitos pelos autores ibéricos eram a universal racionalidade e sociabilidade naturais do homem”. E a importância de se recuperar esse conceito de pessoa é o entendimento de que “destas duas ideias partem suas reflexões sobre o conteúdo do que atualmente se denominaria de direitos humanos e filosofia política”, aponta a pesquisadora.

Ao longo da entrevista concedia por e-mail à IHU On-Line, a jurista resgata a luta pelos direitos dos povos indígenas e os eixos centrais da noção de direitos humanos na contemporaneidade a partir das bases da escolástica. Linha teórica que já no período de conquistas do chamado “Novo Mundo” discutia os conflitos éticos do contato dos europeus com os povos originários das regiões “descobertas”, os quais os escolásticos defendiam que gozavam do direito natural inerente a qualquer ser humano. “É com base em tais fundamentos, portanto, que Francisco de Vitória (e tantos outros escolásticos ibero-americanos) lecionou, em sua relectio sobre os índios (1538-1539), que eles eram verdadeiros senhores, pública e privadamente, antes da chegada dos espanhóis ao Novo Mundo e que os cristãos não poderiam apoderar-se de seus bens e nem depor seus príncipes”, explica.

Tal discussão infelizmente mantém-se perene na sociedade e os povos indígenas ao redor do mundo continuam sua resistência pela garantia de seus territórios e pelo direito de viver integralmente sua cultura. 

Sílvia Silveira Loureiro é graduada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM, mestra em Direito pela Universidade de Brasília - UnB e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Atualmente é professora da Universidade do Estado do Amazonas – UEA e tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Direito Internacional, particularmente em Direito Internacional dos Direitos Humanos.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual era o conceito de pessoa no tempo da Escolástica Ibero-Americana? E hoje o que mudou em relação a essa concepção?

Sílvia Silveira Loureiro - Para compreender seu conceito de pessoa, é necessário ter em vista que, além do estilo escolástico , a coesão doutrinária dos autores ibero-americanos dos séculos XVI e XVII era garantida pela unidade de referências e fontes por eles compartilhadas, que eram aquelas de conhecimento comum da cristandade naquela época, tais como a filosofia greco-romana (principalmente Aristóteles  e Cícero ), o direito romano e suas glosas medievais, os trabalhos dos Doutores da Igreja (sobretudo Santo Agostinho  e São Tomás de Aquino ), os documentos eclesiásticos e, precipuamente, a Bíblia (com preferência ao Novo Testamento), que era considerada como fonte por excelência da cultura cristã.

Assim, a Escolástica Ibero-Americana construiu seu conceito de pessoa dentro do contexto de um movimento intelectual vinculado à tradição de cerca de oito séculos de sedimentação da cultura cristã ocidental que, segundo a terminologia cunhada por Pedro Calafate, da Universidade de Lisboa, chamamos de Escola Ibérica da Paz. Seguindo, por um lado, um viés mais teológico, fincado na tradição bíblica, o homem era concebido como um ser dotado de alma racional, criado à imagem e semelhança de Deus, para dominar sobre os brutos animais, colocando-se em relevo também o mandamento do amor ao próximo. Por outro lado, seguindo a influência aristotélica, o homem também era entendido como um ser social e, como disse Francisco de Vitória , em sua lição sobre o Poder Civil, Deus “dotou os homens de tal natureza e modo de ser que não possam e nem acertem viver senão em sociedade com outros homens”, fundando as bases da doutrina democrática defendida pelos escolásticos ibero-americanos.

Por conseguinte, os dois grandes pilares fundamentais aceitos pelos autores ibéricos eram a universal racionalidade e sociabilidade naturais do homem. Destas duas ideias, partem suas reflexões sobre o conteúdo do que atualmente se denominaria de direitos humanos e filosofia política. Arraigados na natural racionalidade e sociabilidade humana, no campo da filosofia política, os autores defendem a transmissão do poder civil de Deus diretamente aos homens reunidos em comunidade, renovando os pressupostos clássicos da doutrina democrática do poder civil. No campo dos direitos humanos, sob os mesmos pilares da racionalidade e sociabilidade humana, sustentam que a igualdade, a liberdade e o domínio são direitos naturais, inerentes ao homem, anteriores e superiores ao direito positivo. Deve-se destacar, ademais, que estes preceitos se aplicavam, sem qualquer clivagem, em três níveis: ao homem, à comunidade e ao gênero humano.

Entretanto, por mais de três séculos, esse legado deixado pelos justeólogos ibero-americanos foi condenado ao esquecimento por se tratar de uma doutrina de matiz democrática e fundamentação católica, e por terem estas duas características bem marcantes estes autores jamais poderiam ter sido aceitos e prestigiados pelas correntes políticas triunfantes na Europa dos séculos XVII e XVIII.

Do ponto de vista político, o absolutismo monárquico seria irreconciliável com as teses defendidas pelos justeólogos ibero-americanos sobre a origem popular do poder. Nem tampouco os iluministas do século XVIII reconheceriam, em suas teorias não tão originais, os ecos das lições dos escolásticos ibéricos, com toda a carga pejorativa incidente sobre o termo escolástico, ainda que estes mesmos justeólogos defendessem, à semelhança dos filósofos franceses, que o povo é o titular do poder político. 

Do ponto de vista jurídico, o direito natural que vinha sendo pensado, dentro desta tradição, como um código de valores válido para todos os homens, para todos os povos e para o gênero humano, esfacelou-se, pouco a pouco, em direitos compartimentados e incomunicáveis. Os direitos naturais subjetivos do homem, apenas enquanto indivíduo e cidadão, passaram a ser matéria de competência reservada dos Estados, incorporados em textos constitucionais positivados. O Direito Internacional, que vinha sendo formulado como um sistema jurídico universal derivado do direito natural com fundamento na recta ratio, o jus gentium , foi reduzido a um sistema positivo de normas regentes das relações entre Estados, entendidos estes últimos como entes abstratos e dotados de vontade. 

Hoje, portanto, o que se tem é uma grande dificuldade de se reconhecer direitos humanos em dimensão coletiva, dado o viés liberal-individualista da concepção de pessoa, aliada à resistência em se reconhecer qualquer outra comunidade humana como sujeito no plano do direito internacional que não se amolde ao padrão do Estado-Nação moderno.  


IHU On-Line - Como surge a defesa dos povos originários nesse contexto?

Sílvia Silveira Loureiro - A fidelidade dos autores da Escolástica Ibero-Americana ao arcabouço filosófico, teológico e jurídico construído durante cerca de oito séculos de cristianismo ocidental fez com que eles se posicionassem de modo firme e desassombrado em prol dos direitos das gentes do Novo Mundo, mesmo que isso implicasse o desafio à autoridade do Imperador e do Papa.

A postura dos escolásticos ibero-americanos, em qualquer das gerações de catedráticos ou missionários, e em qualquer das latitudes geográficas em que escreveram, era a da defesa da alma racional dos índios, bem como da legitimidade do poder de seus chefes ou principais indígenas, subordinando o exame das questões afetas ao Novo Mundo ao direito natural e das gentes.

Mesmo após a expansão do orbis christianus  ao totus orbis  vitoriano e do acréscimo do Novo ao Velho Mundo nos mapas de Seiscentos, os pensadores ibéricos não duvidaram em aplicar os preceitos desta longa tradição aos povos que apareciam no horizonte dos descobrimentos e guerras de conquistas na América, como se demonstra em três momentos emblemáticos, a saber:

 - O primeiro é o protesto público do frei dominicano Antonio de Montesinos  contra o tratamento que estava sendo dispensado aos índios do Novo Mundo pelos colonos espanhóis, no sermão proferido em 21 de dezembro de 1511, quarto domingo do Advento, em uma humilde igreja da Ilha Espanhola (hoje República Dominicana e Haiti). Neste sermão, Montesinos, escolhido por sua oratória dentre o pequeno grupo de freis dominicanos recém-chegados à América, lança perguntas contundentes, que marcaram a vida de Bartolomeu de Las Casas , o qual viria a se tornar mais tarde um dos grandes defensores da causa indígena. Outros importantes desdobramentos deste sermão histórico foram a convocação das Juntas de Burgos (1512)  e Valladolid (1513) , pelo rei Fernando, e a proclamação das Ordenanças de burgos (1512-1513) , a primeira lei regulamentadora de direitos indígenas.

- Em um segundo momento destacam-se as ideias nascidas no Mosteiro de San Esteban, que, em meados do século XVI, ultrapassaram seus muros e cruzaram as fronteiras espanholas, chegando a Portugal e à América. As relecciones, disputas e predicações de teólogos e juristas, catedráticos das grandes universidades dos impérios espanhol e português e missionários na América, confrontaram os fundamentos éticos, políticos e jurídicos da conquista e colonização do Novo Mundo, desencadeando uma crise na consciência destas Coroas a ponto de impulsionar medidas legislativas de proteção dos índios contra a perda de seu domínio e liberdade. Chamamos este conjunto doutrinal fruto da expansão do pensamento salmanticense de Escola Ibérica da Paz.

- Enfim, o terceiro momento, já no curso do processo de reconversão da Coroa espanhola, refere-se à convocação da Junta de Valladolid, pelo imperador Carlos V , visando debater oficialmente a dúvida indiana. A Junta se reuniu entre 1550-1551, para ouvir os dois lados da controvérsia, representados por duas figuras célebres daquele tempo: Bartolomeu de las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda . O primeiro era um frei dominicano, bispo de Chiapas, que defendia que os indígenas americanos eram homens livres e iguais a qualquer outro súdito espanhol e, nesta condição, deveriam ter seu direito de domínio respeitado. O outro era um humanista franciscano que seguia a tradição teocrática, defendia a ideia aristotélica da escravidão natural e argumentava que os crimes contra a lei natural cometidos pelos indígenas deveriam ser punidos com guerra justa pelos espanhóis.

É importante notar, entretanto, que esta famosa disputa revela muito mais do que um antagonismo pessoal entre Las Casas e Sepúlveda. Antes de tudo, ela revela, como pano de fundo, o confronto de dois legados mentais da Igreja Católica: o teocrático, apoiado na tradição medieval de defesa do senhorio universal do papa, e a tradição democrática mediterrânea, conservada pela Universidade de Salamanca e proclamada pela primeira vez em solo americano no histórico sermão de Antônio de Montesinos. Mas, afinal, espelhando o desfecho da Junta de Valladolid, nenhum dos dois legados mentais prevaleceu. O vencedor destas disputas foi o próprio rei-imperador Carlos V, que representa simbolicamente a corrente regalista. 


IHU On-Line - Há uma inspiração na Constituição brasileira de 1988 com a Escolástica Ibero-Americana e seu direito indígena?

Sílvia Silveira Loureiro - O artigo 231 da Constituição Federal de 1988 dispõe: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Assim, o reconhecimento constitucional aos índios dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” guarda relação com a defesa que os escolásticos ibero-americanos faziam acerca do direito de domínio das gentes do Novo Mundo, entendendo-se domínio tanto no sentido de poder político, governo civil, jurisdição ou autoridade exercidos por um homem sobre outro homem livre ou de escravidão sobre um cativo, quanto no sentido de propriedade privada exercida pelo homem sobre as coisas exteriores. 

Os justeólogos da Escola Ibérica da Paz refletiam sobre a dúvida indiana segundo a perspectiva do direito divino natural, equiparando as soberanias ameríndias e europeias em função de algo que acreditavam ser comum aos dois mundos: a natureza racional e social do homem.

Por conseguinte, para a Escola Ibérica da Paz tanto a discussão sobre o dominium jurisdictionis vel auctoritatis dos povos ameríndios, quanto aquela sobre o dominium proprietatis de suas terras e bens, eram desenvolvidas na esfera do direito divino natural e do direito humano (das gentes ou civil), sem subordinar a aquisição ou perda do domínio ao estado de graça ou à fé, ou à caridade, isto é, a titularidade do domínio, em ambas acepções, não dependiam da condição de infidelidade e nem do estado de pecado mortal em que se encontravam os homens e as comunidades dos índios.

É com base em tais fundamentos, portanto, que Francisco de Vitória (e tantos outros escolásticos ibero-americanos) lecionou, em sua relectio sobre os índios (1538-1539), que eles eram verdadeiros senhores, pública e privadamente, antes da chegada dos espanhóis ao Novo Mundo e que os cristãos não poderiam apoderar-se de seus bens e nem depor seus príncipes.


IHU On-Line - Quais são os avanços fundamentais na garantia dos direitos dos povos originários no Brasil a partir do aprofundamento dessas concepções jurídicas?

Sílvia Silveira Loureiro - Os avanços fundamentais decorrentes do aprofundamento dessa concepção de domínio como sendo de direito natural é a garantia constitucional da primazia do direito dos índios sobre suas terras originárias, e como este direito preexiste à Coroa portuguesa e ao Estado brasileiro, não cabe ao direito positivo conceder tal direito, mas apenas reconhecer sua existência congênita.

Isso significa dizer que este reconhecimento constitucional do direito dos índios sobre suas terras originárias encontra fundamento primário na doutrina dos escolásticos ibero-americanos sobre o entendimento do domínio como sendo de direito natural, ou seja, para além da análise do instituto jurídico luso-brasileiro do indigenato. Este instituto ficou consagrado na famosa obra Os Indígenas do Brasil: seus direitos individuais e políticos (São Paulo: Typ. Hennies Irmãos, 1912), de João Mendes Júnior, publicada em 1912, a partir do estudo da legislação colonial indigenista de 1680 e 1755. O indigenato foi reafirmado na legislação posterior e nas Constituições brasileiras de 1934 a 1988 com algumas modificações, mas seu sentido de direito “inato” ou “congênito” em oposição a direitos “adquiridos” ou “concedidos” permanece até os dias de hoje, com reflexo direto no caráter declaratório do ato jurídico de demarcação de terras indígenas no Brasil.


IHU On-Line - Passados quase 400 anos da morte de Suárez, qual é a atualidade do direito indígena no contexto latino-americano e no brasileiro?

Sílvia Silveira Loureiro - Tal como na época de Suárez  e dos escolásticos ibero-americanos, é notável a dificuldade de efetivação da proteção jurídica dos povos indígenas no Brasil e na América Latina. Assim como ocorriam as pressões a favor e contra a legislação colonial indigenista tanto da Coroa espanhola quanto portuguesa, que proibia a guerra justa e a escravidão contra os índios e reconheciam-nos como primários e naturais senhores de suas terras, na atualidade a mesma pressão é sentida. Em que pese tais dificuldades de efetivação, um importante arcabouço jurídico de normas internas e internacionais de proteção foi conquistado pelo movimento indigenista.

No plano do direito interno constitucional, Raquel Z. Yrigoyen Fajardo identifica três ciclos no horizonte do constitucionalismo pluralista, a partir dos anos 1980: o multicultural (1982-1988), o pluricultural (1989-2005) e o plurinacional (2006-2010). A Constituição Federal de 1988, embora tenha nascido como um expoente do ciclo multicultural, não logrou avançar para o ciclo pluricultural. Já o ciclo do constitucionalismo plurinacional é representado pelos processos constituintes emblemáticos na Bolívia (2006-2009) e no Equador (2008) aprofundando e radicalizando o projeto constitucional descolonizador.

No plano do direito internacional, destacam-se a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989)  e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), não podendo deixar de nos referir ao importante trabalho realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem construído um significativo repertório de casos indígenas, em temas sobre direitos territoriais, consulta prévia e participação política, além do importante reconhecimento dos povos indígenas como sujeitos de direito internacional em dimensão coletiva.


IHU On-Line - Quais são os principais enfrentamentos atuais dos povos originários amazônicos na garantia e consecução de seus direitos?

Sílvia Silveira Loureiro - Da mesma forma como as Coroas eram vacilantes perante as disputas sobre a dúvida indiana, o Estado, em muitos casos, toma uma posição passiva diante de graves violações dos direitos dos povos indígenas.  

Assim, apesar do arcabouço jurídico já conquistado interna e internacionalmente, persiste o mesmo movimento de avanços e retrocessos normativos, ataques e resistências, mudando apenas os nomes dos grupos de pressão econômica, antes colonos e encomenderos de índios, hoje, agronegócio, mineradoras, madeireiras, consórcios multinacionais de empreiteiras para construção de megaprojetos desenvolvimentistas, como rodovias e hidrelétricas, importantes corporações farmacêuticas e cosméticas, apenas para citar alguns exemplos.

Esses grupos econômicos financiam lobbies para pressionar politicamente o Poder Executivo e Legislativo na promoção de um autêntico desmonte constitucional dos direitos dos povos indígenas, a partir de projetos de emendas constitucionais, projetos de lei, medidas provisórias, decretos e portarias, como são exemplificativos a PEC 215/2000 , que “inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas, estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei”; e a PEC 65/2012 , que “Acrescenta o § 7º ao art. 225 da Constituição Federal para assegurar a continuidade de obra pública após a concessão da licença ambiental”, e “dispõe que a apresentação do estudo prévio de impacto ambiental importa autorização para a execução da obra, que não poderá ser suspensa ou cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente”.  


IHU On-Line - Como analisa as carências vividas pelas comunidades amazônicas num contexto jurídico? Pode-se falar num estado de exceção ao qual os povos originários são submetidos sistematicamente?

Sílvia Silveira Loureiro - Desde a chegada dos primeiros espanhóis e portugueses na Amazônia, a experiência do contato dos povos indígenas com a dita civilização branca tem sido de quase extermínio. O relato dos missionários, funcionários das Coroas hispano-lusitanas e aventureiros nos primeiros dois séculos de colonização mostram o cenário de uma região inicialmente densamente povoada, mas cuja população indígena foi sendo brutalmente dizimada por guerras de conquista disfarçadas de guerras justas, visando à escravidão da mão de obra indígena para coleta de drogas do sertão e esbulho de seus territórios ancestrais. 

No ciclo da borracha, entre o final do século XIX e início do século XX, mais uma vez a mão de obra indígena foi explorada, como deixou registro o caso do escândalo do Putumayo  no Peru e em tantos outros Putumayos espalhados no norte do Brasil e na Colômbia, favorecidos pelo sistema de exploração econômica e social da época. Mais recentemente, os grandes projetos desenvolvimentistas da Amazônia avançam sobre os povos indígenas remanescentes muitas das vezes com a complacência ou mesmo a conivência do Estado.

Fazendo-se um balanço histórico dessa trajetória, é evidente que o saldo é extremamente negativo para os povos indígenas da Amazônia, resultando em miséria e discriminação. Assim, pode-se falar em um sistemático e permanente estado de exceção / exclusão, marcado pela tradicional ausência do Poder Público na Região, hoje estigmatizada como sendo um “grande vazio demográfico”, colocando os povos indígenas que a ocupam em uma situação de séria vulnerabilidade social, econômica e ambiental. Paradoxalmente, a região Amazônica é sempre referenciada por sua grandiosidade, com o maior bioma brasileiro, ocupando 49% do território nacional, o que representa uma riquíssima fonte de diversidade biológica, patrimônio genético, recursos hídricos e minerais a serem explorados a qualquer custo.    

Os povos indígenas amazônicos estão em constante processo de resistência para manutenção de seus territórios ancestrais, modo de vida tradicional, língua, religião, estrutura social, enfim, de sua cosmovisão e de sua sobrevivência física. A luta pelo reconhecimento dos direitos à autodeterminação, à igualdade e não discriminação, assim como à propriedade de suas terras ancestrais, continua sendo travada na atualidade, pois estas ainda são questões candentes para os direitos humanos contemporâneos, assim como foram, em seu tempo, para o direito natural e das gentes dos escolásticos ibero-americanos.■

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