Edição 207 | 04 Dezembro 2006

O aguilhão Freud. Crítica e superação da religião?

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Por ocasião do 150º aniversário de nascimento de Sigmund Freud (Moravia 1856 – Londres 1939), traduzimos e reproduzimos o texto a seguir, de Herbert Will, da Alemanha. O texto foi publicado em Teologi@Internet, da Editoria Queriniana, de Bréscia, na Itália, em 29-09-2006.

Por ocasião do 150º aniversário do nascimento de Sigmund Freud (Moravia 1856 – Londres 1939) celebram-se em todo o mundo, em particular no mundo de língua alemã, jornadas de estudo sobre sua obra e sobre seu legado cultural. Um Seminário de estudo foi realizado na Academia Católica de Munique, na Baviera, onde sua obra foi examinada sob o perfil religioso. Apresentamos em síntese a relação do Dr. Herbert Will, docente na Academia de psicanálise e psicoterapia em Munique. Sobre o mesmo tema se pode consultar: Heinz Zahrt, O desafio da moderna crítica da religião (GdT 133); e Hans Zirker, Crítica da religião (GdT 187). Cada um destes dois livros do Jornal de Teologia dedicam um capítulo à crítica da religião desenvolvida por Freud.

Em sua contribuição para a revista Concilium, Paulo Ricoeur, filósofo francês da religião, exprime o pensamento que Freud, com sua crítica da religião, interpele profundamente o homem de hoje. Isso teria a ver com a intenção de Freud de revelar o homem a si mesmo. Nós, no entanto, estamos ainda amplamente longe, sustenta Ricoeur, de ter feito nossa a verdade do freudismo sobre a religião. A via freudiana do autodesvelamento é um percurso áspero. Porém vale a pena, porque através dele chegamos a um reconhecimento mais intenso do homem como homem.

Gostaria de assumir este pensamento de Paul Ricoeur. A posição de Freud perante a religião é pronunciadamente unilateral e monomaníaca – coisa que, em meu parecer, não acontece somente nele, mas em todos nós, porque em nosso modo pessoal de relacionar-nos com a religião se articulam às nossas mais profundas convicções vitais. Freud considera a religião do ponto de vista de um cientista ateu. Este ângulo visual, no entanto, não se limita à religião, mas contradistingue todo o comportamento da sua psicanálise como projeto, o último grande projeto do iluminismo, como o evidenciou Peter Gay (1987). “Por que ninguém, entre todas as pessoas piedosas, criou a psicanálise? e por que foi preciso esperar um judeu totalmente sem deus?”, escrevia Freud ao pároco e analista suíço Oskar Pfister (Carta de 9.10.1918).

Contra ilusões

Gostaria de dirigir um breve olhar ao desenvolvimento do trabalho de Freud, porque isso mostra quanto sua teoria da religião se situa no complexo do seu pensamento. Nos seus estudos sobre a histeria, ele se interrogara de onde proviriam os enigmáticos sintomas da doença histérica, em particular os sintomas físicos da paralisia ou da cegueira. E descobriu que estes sintomas representam uma cobertura atrás da qual estavam escondidas reminiscências, recordações de experiências altamente conflitantes, que tinham sido removidas e de novo emergiam na forma transposta do ocultamento sintomático. Conseguindo trazer à luz e desdramatizar o conflito originário, o sintoma da doença ter-se-ia tornado supérfluo.

Na Interpretação dos sonhos, Freud chega a uma compreensão dos sonhos na qual o sonho manifesto – aquele do qual nos recordamos e que podemos contar – analogamente ao sintoma da doença, representa também ele uma superfície sob a qual as idéias oníricas latentes são os verdadeiros e próprios agentes do evento onírico. Também aqui são motivações dinâmicas, inconscientes que determinam o processo do sonhar, com suas coberturas e fraturas. O sucessivo grande estudo de Freud sobre a Psicopatologia da vida cotidiana mostra, num outro campo, como o esquecer, o substituir uma palavra por outra – o famoso “ato falho” freudiano – a superstição e o erro funcionam igualmente segundo este modelo. No ensaio sobre o movimento do espírito e sua relação com o inconsciente, trabalho que lhe era particularmente caro, desenvolve suas interpretações dos movimentos do espírito precisamente a partir daquilo que, incompreendido e incoerente, improvisamente se torna manifesto e move ao riso.

Enfim gostaria de recordar os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Aqui Freud aprofunda sua tese sobre o significado central da sexualidade infantil. Ele levanta a questão da razão pela qual a sexualidade das crianças tenha sido tão pouco reconhecida em seu significado e a reconduz, de um lado, ao modo convencional dos seus contemporâneos de considerarem a sexualidade como conseqüência de sua educação pessoal e de suas concepções morais e, de outro lado, a um fenômeno psíquico que, para a maior parte das pessoas, se não todas, esconde os primeiros anos de sua infância até o sexto ou oitavo ano: a amnésia infantil, a perda da lembrança dos primeiros anos de vida. Esta se refere agora precisamente às impressões que deixaram as marcas mais profundas em nossa vida psíquica e que se tornaram determinantes para todo o nosso desenvolvimento ulterior. São precisamente estas que são esquecidas, ou antes, como Freud as elabora, removidas. Aqui radica, em última análise, o processo da remoção - o surgimento de conflitos interiores ansiógenos e sua localização no inconsciente – como um processo normal na nossa biografia e subjetividade.

Com a psicanálise, Freud desenvolve como que uma ciência das dimensões de nossa vida psíquica que nos são desconhecidas, dificilmente acessíveis e, no entanto, sumamente ativas. Podemos definir a psicanálise como a ciência daquilo que nós não queremos saber. A superfície não constitui aquilo que é autêntico, as forças da vida psíquica operam do que é escondido. Essas coisas não são, de fato, acessíveis, mas se opõe, ao invés disso, à nossa percepção, expressando-se de forma transposta.

Disso se nutre o pathos iluminista que caracteriza a psicanálise: esta se esforça por indagar e falar daquilo que nós não queremos saber. Formula a tese que a imagem que temos de nós mesmos consiste em grande parte de ilusões. Se descobrirmos as motivações incônscias sobre as quais se baseiam as nossas idéias, estas ilusões desaparecem como neblina no sol. Somente se nos desencantarmos das nossas ilusões, aprenderemos a conhecer-nos realmente. Situa-se também da parte de Freud, o modo de ver a religião. Sua teoria da religião não é, de fato, uma cisma pessoal, e sim uma coerente e corajosa continuação de sua abordagem psicanalítica.

O gênero humano cria para si as suas divindades

A psicanálise liberou a impertérrita e desbordante produtividade de nossa vida psíquica. Nós produzimos sintomas, produzimos sonhos, substituições de palavras, atos falhos, remoções, fantasias sexuais, arte, literatura, e produzimos também religião. Do ponto de vista de Freud, a religião é uma produção do ser humano e, precisamente, uma produção tanto individual como coletiva. Freud afasta Deus de uma realidade transcendente e o localiza na experiência intrapsíquica. Ele conceitua a religião como uma criação do homem. Em Immanuel Kant já se pode encontrar a formulação: “Soa, na verdade, como suspeito, mas, não é de fato irrefutável dizer que cada um se faz um deus”. Freud assume agora o empenho de elaborar a modalidade e de dar nome aos motivos segundo os quais as pessoas criam para si as suas divindades.

Ao fazer isso, ele, de resto, não está só. Ele antes faz parte daquele movimento que, em seu tempo, a psicologia da religião desenvolveu como disciplina especializada. Com os seus contemporâneos ele começou a formular um contexto científico e uma linguagem para dizer o que Nietzsche aforisticamente chamou de morte de Deus. Agora se diz que Deus desaparece como óbvia grandeza transcendente, que constitui o horizonte para a experiência do mundo dos homens – o Deus do além – e ressurge como grandeza psicológica. A era de Freud é caracterizada pela descoberta do nosso mundo interior e também a religião é agora desenvolvida como parte do mundo interior humano.

Antes de aprofundar a psicologia da religião de Freud, gostaria de recordar os escritos que nos podem interessar. Sobretudo, Comportamentos obsessivos e práticas religiosas (1907), no qual ele compara o comportamento religioso, entendido como uma neurose coletiva, à neurose individual dos neuróticos obsessivos. Em 1912 e 1913, ele escreve Totem e Tabu, onde realça algumas correspondências na vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos. Aqui ele se confronta indiretamente com Carl Gustav Jung e discute, com base num material variado tomado da etnologia, o pensamento processual primário. Enfim, ele desenvolve a hipótese histórico-religiosa de que cultura e religião tenham emergido de um evento originário pulsional: o assassínio primordial- o parricídio da horda primitiva e as tentativas que lhe seguem de superar esta ação primordial e, ao mesmo tempo, da culpa, das rivalidades, da dinâmica sacrifical e assim por diante. Aqui já se torna claro aquilo que sempre mais emerge em primeiro plano nos escritos ulteriores de Freud sobre a religião. É a necessidade de resolver o problema da agressividade e da destrutividade dos homens, e de reconduzi-lo a limites aceitáveis, o que para ele se torna o núcleo central do fato religioso. A religião serve para refrear o furor destrutivo dos homens.

O Futuro de uma ilusão, de 1927, é o escrito mais conhecido de crítica à religião. Freud endurece ainda mais sua linha de pensamento na lição de 1933, Sobre uma visão do mundo. Nela argumenta que a psicanálise deve proceder polemicamente contra a religião, porque esta permaneceu como o inimigo mais sério da ciência, combate o amor pela verdade e, em lugar dos conhecimentos sempre provisórios e fragmentários da ciência, tende a propor um sistema ideológico onicompreensivo e intolerante.

Em O diálogo da civilização (1930), Freud se ocupa do sentimento oceânico, do qual falara Romain Rolland. Admite que pessoalmente, no que diz respeito a este sentimento nada pode fazer e aos sentimentos religiosos e às situações emotivas subjetivas ele não concede nenhum valor geralmente válido.

O homem Moisés e a religião monoteísta (1939) surgiu originariamente indicado por Freud como romance histórico. É um estudo histórico-religioso e psicoistórico altamente especulativo. A tese de Freud é que Moisés não era de fato um hebreu, e sim um nobre egípcio que conduziu para fora do Egito a tribo semítica, deu-lhe como religião o monoteísmo espiritualizado do faraó egípcio Echnaton e, no entanto, por motivo de suas elevadas pretensões, foi morto pelos semitas. Estes, depois, misturaram o seu rígido monoteísmo com a popular divindade dos vulcões, Jahwe, [Javé]. O delito produziu, no entanto, os seus efeitos. Num reemergir do removido se impõe de novo, numa etapa sucessiva, o deus altamente espiritual da religião de Moisés, que domina até hoje o hebraísmo. Esta tese do assassínio do pai como origem de religião e cultura, tomada de Totem e Tabu, é aqui historicamente aplicada à pessoa do homem Moisés. Hoje é claro que a construção de Freud, considerada do ponto de vista histórico, é falsa. Como concepção psicoistórica ela é, todavia, muito discutida. Principalmente a tese de Freud que traumas originários da história da humanidade e experiências coletivas primordiais sejam transferidos para uma memória cultura e – reemergindo do inconsciente – se tornem cultural e histórico-religiosamente criativas, é uma tese que encontra muita ressonância (cf. a discussão sobre os trabalhos de Jan Assmann).

Cada pessoa cria o seu próprio deus

Vimos que o modo de ver a religião da parte de Freud tem duas perspectivas: uma histórico-religiosa e psicoistórica e uma outra individual. Dediquemo-nos agora a esta segunda perspectiva, a gênese do desejo religioso. Cada pessoa, assim sustenta Freud, cria sua própria fé religiosa com os seus desejos mais profundos. Cito uma passagem de O futuro de uma ilusão, na qual Freud toma em consideração a gênese psíquica das idéias religiosas:

“Estes, que se consideram como princípios, não são reflexos da experiência ou resultados do pensar, são ilusões, invenções dos desejos mais antigos, mais fortes, mais prementes da humanidade; o mistério de sua força é a força destes desejos. Sabemos já que a impressão terrificante da impotência infantil suscitou a necessidade de proteção – proteção graças ao amor – a cujo encontro veio o pai, e o conhecimento do perdurar desta impotência por toda a vida causou o agarrar-se à existência de um outro pai, agora um pai mais potente. Através da ação benévola da divina providência, a angústia diante dos perigos da vida é abrandada, a introdução de uma ordem moral universal assegura a satisfação da exigência de justiça, que no interior da civilização humana permaneceu tão freqüentemente incompleta, a projeção da existência terrena numa vida futura fornece o contexto local e temporal no qual estes desejos devem ser satisfeitos. Respostas e interrogações enigmáticas da humana curiosidade, por exemplo, sobre o nascimento do mundo e a relação entre corpóreo e psíquico, são desenvolvidas pressupondo este sistema; e representa uma grandiosa facilitação para a psique individual saber que os conflitos da idade infantil, jamais de todo superados, que brotam do complexo do pai, lhe são subtraídos e reconduzidos a uma solução por todos aceita”.

E ainda uma citação: “Nós dizemos, pois, que uma fé é uma ilusão se, em sua motivação, se evidencia a satisfação de desejos, e prescindimos neste de sua relação com a realidade, da mesma forma como a ilusão renuncia à sua autenticação”.

Pois bem, Freud não é de parecer que todo indivíduo singular possa criar-se livremente a própria, partindo do seu íntimo. Isso antes acontece de um processo de apropriação ou de recusa da tradição cultural na qual crescemos. É a cultura que cria as concepções religiosas. Ela confere a cada um estas idéias, “ele as encontra já existentes, elas lhe são fornecidas já prontas, ele não estaria em condições de encontrá-las sozinho. É a herança de muitas gerações na qual ele entra e que ele assume como a tábua pitagórica, a geometria e outras coisas”.

Não nos surpreenderá o fato de que Freud proponho, no final, deixar perder-se este mundo ilusório do desejo. Ele se propõe agora como um severo educador da humanidade e indica os princípios doutrinais religiosas, por assim dizer, como sobras neuróticas da humanidade. Hoje estaremos na condição de reconhecer tudo isso e de a isso renunciar, substituindo-o por uma espiritualidade mais elevada, que ele caracteriza com o primado da razão, uma educação à realidade e uma modéstia que sabe reconhecer a limitação e a provisoriedade de todos os nossos conhecimentos.

Freud permanece também aqui um incorruptível e intrépido racionalista, quando se volta polemicamente contra o obscurecimento, a embriaguez e a narcotização em funcionamento dos sentimentos religiosos. Como escreve a Oskar Pfister, ele atribui a toda espécie de fé religiosa uma parcela de infantilismo que não foi superada. De superar estes modos infantis de pensar e de sentir, todavia, são capazes somente poucas e fortes personalidades, as quais conseguem renunciar à consolação da religião (Carta de 26.11.1927).

Para uma avaliação de Freud

Gostaria de retomar a afirmação de Paulo Ricoeur, de quanto seja centralmente importante o autodesvelamento que Freud estimulou, se quisermos hoje falar da religião de modo verídico. De Freud em diante tornou-se sempre mais evidente que toda nuança da fé religiosa é, no mais profundo, mesclada com nossos pessoais desejos, angústias e conflitos, e é por eles plasmada. A religião é uma íntima expressão da nossa subjetividade.

Isso naturalmente não vale somente para pessoas religiosas, mas também para os ateus. Freud não considerou este aspecto e, no entanto, seu desafio vale também para ele mesmo. Um ponto de vista não-religioso também é expressão de convicções pessoais, que, de algum modo, se formaram no confronto com a religião dos pais. Se uma pessoa não-religiosa aduz motivos puramente racionais para justificar seu comportamento, isso é, então, superficial da mesma forma como a ilusão religiosa.

Na ciência da religião, há uma ampla discussão sobre o problema dos insider e dos outsider no modo de considerar a religião. Em sua teoria da religião, Freud se posiciona continuamente como um outsider, que olha a religião de fora, reflete sobre ela e a julga, e ao fazer isso assume um ponto de vista “objetivo”, de distanciamento. Eu penso que isso lhe tornou possível o olhar agudo e perspicaz que lhe é próprio.

No entanto, penso também que isso o impede de colher depois emotivamente o mundo do religioso e desta forma penetrar nele de um modo mais profundo. Nós estamos hoje em condições de uma reflexão metodologicamente mais adequada de quanto fosse possível ao tempo de Freud. Penso que, quem hoje se confronta com a religião, do ponto de vista psicanalítico, deve estar na condição de poder assumir ambas as posições, seja aquela de um outsider, como também aquela de um insider. Gostaria de recordar brevemente os métodos psicanalíticos que nos podem ajudar a tornar-nos insider de modo mais reflexo. São a capacidade de pôr-se diante do problema e a intersubjetividade com a qual nós podemos entrar, como pesquisadores, na vida da religião, coisa natural e de novo algo diverso de um comportamento religioso privado.

Gostaria de ressaltar três âmbitos temáticos aos quais Freud, por causa de sua limitação, não encontrou nenhum acesso. Pessoas religiosas exprimem quase sempre a idéia de que o dinamismo na religião “provém de Deus” e que é centralmente importante “abandonar o próprio Eu” ou mesmo “deixar morrer o Ego”, para abrir-se àquilo que provém da esfera transcendente. Não penso que o conceito freudiano de projeção baste para clarear este fenômeno. A práxis religiosa contempla quase todas as partes técnicas que visam fatigosamente a uma transformação ou transgressão. O conceito de Freud da regressão a um infantilismo não é, de fato, suficiente para dar conta destas correntes progressivas da práxis religiosa. Os fatores emocionais da religião – tanto as profundas convicções com ela conexas, como também o que de William James em diante é designado como experiência religiosa ou o que Romain Rolland chamou de o sentimento oceânico – esta vivência emocional das pessoas religiosas dificilmente pode ser entendido por Freud. São traços específicos essenciais que constituem precisamente a peculiaridade da religião, em relação às quais ele permanece pleno de incompreensão. Isso não diminui, no meu modo de ver, sua posição. Ninguém pode ter tudo presente. A unilateralidade de Freud é um aguilhão que não deixa em paz, uma vez que pungiu.

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