Edição 487 | 13 Junho 2016

Viagem na complexidade dos mundos, mas com a âncora da pesquisa

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Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos | Tradução Walter O. Schlupp

Ruairidh Battleday e Katharine Brem veem a busca pelo incremento neural como esperança para mergulhar nos mundos natural e humano, mas, para tanto, defendem o desenvolvimento da pesquisa científica como ponto de partida para essa jornada

Desde que o homo se tornou sapiens — embora haja quem acredite que até antes —, as questões começaram a emergir. Passa-se a pensar e questionar sobre o mundo que o cerca e também sobre o seu mundo interior. Nessa jornada humana pelos mundos, o homo sapiens sapiens de hoje segue mergulhando mais fundo nas suas buscas pela compreensão dos seus mares sem fim. Agora, imagine se um comprimidinho fosse capaz de ajudar o homo nessa jornada, potencializando a capacidade de seu mergulho. É mais ou menos isso que se imagina que as smart drugs sejam capazes de realizar a partir de uma ideia de incremento neural. Mas, antes que se pense nos riscos dessa viagem turbinada pelas drugs, os neurocientistas Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem ponderam: “em sua essência, a busca por incremento neural (neuroenhancement) é de esperança: que consigamos experimentar, apreciar e interagir melhor com a complexidade dos mundos natural e humano”.

Para os pesquisadores, é fundamental encarar essa jornada com menos ares de aventura, mais parecida com uma viagem em que se programa e se prepara com muito cuidado cada movimento. Para eles, é aqui que se insere o crucial papel da pesquisa científica para que se consiga “experimentar, apreciar e interagir melhor com a complexidade dos mundos natural e humano”. “Como principal meio para tanto, a pesquisa científica fundamental tem um papel-chave em proporcionar uma base firme para esses objetivos, mediante avaliação rigorosa e uso ético”, completam. Na entrevista, concedida pela dupla por e-mail à IHU On-Line, destacam que preservar esse espírito desbravador de mundos que o cientista assume é essencial para fazer frente ao apressado ímpeto comercial, aquele que no primeiro indicativo já quer transformar a droga em “suplemento para inteligência”. “Os principais desafios para estudos futuros serão justamente estes: manter ‘puros’ os objetivos de central importância para o desenvolvimento de agentes de incremento neural (neuroenhancement) ao mesmo tempo em que se lida com produtores comerciais dessa tecnologia”, analisam.

Assim, Battleday e Katharine defendem uma perspectiva mais ampla acerca das smart drugs, “considerando-as junto com a tecnologia, como sistemas virtuais e amalgamados de realidade; e também como estimulação cerebral não invasiva — tudo isso como agentes que nos podem conduzir para além da função cognitiva humana ‘normal’”, detalham. Para eles, mexer nesse terreno das smart drugs e sua inevitável entrada na cultura humana requer ampla responsabilidade. “A responsabilidade recai não só sobre os cientistas e filósofos, mas também sobre o governo e o público em geral, para que se garanta que seu desenvolvimento e sua utilização sejam dirigidos para objetivos positivos e includentes”, analisam.

Ruairidh McLennan Battleday integra o programa Neuroscience PhD em Berkeley, onde pesquisa neurociência e as interfaces cérebro-máquina. Tem explorado sistematicamente a ciência, neurociência e medicina, com o objetivo de estabelecer a compreensão fundamental sólida da filosofia e praticidade da ciência em sua teoria, metodologia e aplicação. Isto incluiu experiência de investigação em todos os níveis, do ensino, prática clínica, e envolvimento com as literaturas filosóficas, científicas e populares. Professor na Universidade de Oxford, Reino Unido, até 2015, é formado em Medicina pela mesma instituição e em Ciências Biológicas, ênfase em neurociência, pela Universidade de Edimburgo.

Anna-Katharine Brem é neuropsicóloga. Sua linha de investigação centra-se nas alterações das funções cognitivas durante o tempo de vida em indivíduos saudáveis, e durante a doença neurológica (acidente vascular cerebral e doença de Alzheimer). Atualmente, é membro do corpo docente do Berenson-Allen Center for Noninvasive Brain Stimulation, da Escola de Medicina de Harvard. 

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como podemos explicar para quem não é neurocientista o que são smart drugs? 

Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem - Droga inteligente, smart drugs, ou "neuroenhancer", na sua definição mais simples, é uma substância cuja função é aumentar ou ampliar as funções cognitivas em pessoas saudáveis, sem causar efeitos colaterais significativos.


IHU On-Line - Quais são os desafios metodológicos para definirmos o que são smart drugs?

Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem - A avaliação de drogas possivelmente inteligentes apresenta dois desafios principais: 1) determinar concretamente seu potencial de causar melhoras ou danos ao indivíduo saudável que as toma; 2) determinar o impacto que sua utilização tem sobre a sociedade em geral.

Ao pesquisarmos os efeitos físicos e psicológicos positivos e negativos do modafinil  no ano passado, descobrimos que havia pouca investigação científica sobre a droga, apesar do seu amplo uso médico, além do seu presumível uso ilegal. Verificou-se, também, que os testes utilizados nesses estudos muitas vezes eram inadequados para se detectar os efeitos do modafinil: não só os benefícios cognitivos, mas também os efeitos físicos colaterais. Isso precisa mudar no futuro, para que a ciência moderna possa oferecer a mais rigorosa análise desses agentes.


IHU On-Line – O que é o modafinil e como ele age no organismo?

Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem - Apesar de sabermos que o modafinil atua sobre a maioria das substâncias químicas importantes no cérebro e termos uma noção do seu impacto sobre diferentes regiões, não sabemos exatamente como ele "funciona". A melhor noção que temos é que, ao alterar diretamente a concentração de um grupo de substâncias químicas no cérebro — chamadas "catecolaminas" —, modafinil faz aumentar a atividade em redes de atenção e controle executivo do cérebro. A hipótese, então, é de que essas mudanças permitem que os indivíduos tenham melhor desempenho em tarefas cognitivas, particularmente aquelas que requeiram alta concentração e resolução de problemas.


IHU On-Line – Os estudos sobre os efeitos do modafinil no organismo apresentaram resultados em que houve melhoramento na memória e no aprendizado, mas, ao mesmo tempo, houve resultados que não indicaram nenhuma mudança. Quais são os principais desafios aos estudos sobre os efeitos desta droga?

Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem - Como mencionamos acima, a heterogeneidade dos estudos sobre os efeitos do modafinil no corpo levaram a resultados contraditórios em estudos independentes. Muitos desses estudos utilizaram um número reduzido de participantes, além de testes cognitivos demasiadamente fáceis para os participantes analisados, fáceis inclusive no modo sem-modafinil.

É preciso lidar urgentemente com essa falta de padronização e esse baixo número de participantes e estudos. Para o futuro, os programas de pesquisa precisam investigar o efeito do modafinil em ambientes mais realistas, fora do laboratório. Todas estas considerações sublinham a necessidade de um referencial central para avaliação desses agentes, a fim de melhorar a coerência e relevância na literatura primária.


IHU On-Line – O que podemos inferir a partir dos estudos de Pringle  (2013)  sobre o uso de modafinil e os impactos na atenção humana? Como isso se relaciona com a flexibilidade cognitiva?

Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem - Esse estudo apresentou um teste cognitivo inovador, que avaliou o funcionamento cognitivo mais integrado. Nele, a ingestão de modafinil melhorou as taxas de aprendizagem e precisão. Os autores afirmam que essa diferença se deveu à ampla elevação, via modafinil, da flexibilidade cognitiva, da tomada de decisão e da aquisição de regra.

No cômputo geral, nosso artigo de revisão confirma essa conclusão. Além disso, a combinação feita no artigo, de analisar um primeiro agente com testes cognitivos simples estabelecidos para, em seguida, examinar outro, projetado para investigar o funcionamento cognitivo mais integrado, merece aplauso, uma vez que essa abordagem permite uma comparação entre novas técnicas e uma metodologia convencional.


IHU On-Line – O que os estudos atuais demonstram sobre os efeitos do modafinil? Que tipos de efeitos precisam ser estudados com mais rigor?

Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem - Nossa pesquisa parece mostrar que o modafinil pode incrementar componentes de atenção, função executiva, aprendizagem e memória. No entanto, também é muito claro que esses efeitos precisam ser testados de forma mais sistemática, utilizando testes cognitivos que sejam sensíveis o suficiente para detectar diferenças de desempenho entre os indivíduos que funcionam em níveis normais e acima do normal. Conforme dito acima, também seria extremamente informativo reunir mais informações sobre os efeitos colaterais de modafinil em indivíduos saudáveis, investigar resultados a longo prazo e tentar obter resultados em situações mais realistas.


IHU On-Line – Quais são as principais potencialidades dos estudos sobre as smart drugs e os principais desafios para os estudos futuros?

Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem - Em sua essência, a busca por incremento neural (neuroenhancement) é de esperança: que consigamos experimentar, apreciar e interagir melhor com a complexidade dos mundos natural e humano. Como principal meio para tanto, a pesquisa científica fundamental tem um papel-chave em proporcionar uma base firme para esses objetivos, mediante avaliação rigorosa e uso ético.

Os principais desafios para estudos futuros serão justamente estes: manter "puros" os objetivos de central importância para o desenvolvimento de agentes de incremento neural (neuroenhancement) ao mesmo tempo em que se lida com produtores comerciais dessa tecnologia.


IHU On-Line – Desejam acrescentar algo? 

Ruairidh McLennan Battleday e Anna-Katharine Brem - Acreditamos que precisamos adotar uma perspectiva mais ampla sobre smart drugs, considerando-as junto com a tecnologia, como sistemas virtuais e amalgamados de realidade; e também como estimulação cerebral não invasiva — tudo isso como agentes que nos podem conduzir para além da função cognitiva humana "normal". 

Ao se lidar com esses agentes e com sua inevitável entrada em nossa cultura, a responsabilidade recai não só sobre os cientistas e filósofos, mas também sobre o governo e o público em geral, para que se garanta que seu desenvolvimento e sua utilização sejam dirigidos para objetivos positivos e includentes.■

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