Edição 487 | 13 Junho 2016

O medo enquanto afeto político e a esperança contra o corpo paranoico

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Márcia Junges

Não existe política sem encarnação, sem vida social e conjunto de relações, observa Nythamar de Oliveira a partir da obra de Vladimir Safatle. Porém, a partir da ontologia espinosana, não se trata de opor razão a afetos
Foto: Fernanda Froner / IHU

“Segundo Safatle, o medo enquanto afeto político ‘tende a construir a imagem da sociedade como corpo tendencialmente paranoico, preso à lógica securitária do que deve se imunizar contra toda violência que coloca em risco o princípio unitário da vida social’. Imunidade que precisa da perpetuação funcional de um estado potencial de insegurança absoluta vinda não apenas do risco exterior, mas da violência imanente da relação entre indivíduos. Imagina-se, por outro lado, que a esperança seria o afeto capaz de se contrapor a esse corpo paranoico. No entanto, talvez não exista nada menos certo do que isso”. A reflexão é do filósofo Nythamar de Oliveira, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Em suas respostas ele adianta aspectos abordados na conferência O Circuito dos Afetos. Corpos Políticos, desamparo e o Fim do Indivíduo, realizada em 09-06-2016, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU e cuja programação completa pode ser conferida  aqui. A atividade traz reflexões centrais acerca da obra de Vladimir Safatle com nome idêntico: O Circuito dos Afetos. Corpos Políticos, desamparo e o Fim do Indivíduo (Editora Cosac Naify, 2015. 512p). Safatle também estará no IHU em 15-06-2016, quando falará sobre o livro em questão.

Nythamar cita Spinoza explicando que, nas democracias liberais de nosso tempo, “a liberdade da alma, ou seja, a coragem, é uma virtude privada, a virtude necessária ao Estado é a segurança”. Em seu ponto de vista, “a servidão ocorre quando a mente é dominada por tais paixões ou afetos, a ponto de poder atormentar as pessoas e inviabilizar a sua convivência social em harmonia uns com os outros. Safatle observa, com bastante perspicácia e justeza, que Espinosa se diferencia de Hobbes precisamente no papel que a temporalidade desempenha em sua teoria ético-política, na medida em que não se trata apenas de aludir ao papel do Estado hobbesiano como ‘gestor da insegurança social’, mas de resgatar a ideia espinosana de liberdade sub specie aeternitatis”.

Graduado e mestre em Teologia pela Faculdade de Teologia Reformada D’Aix-en-Provence, na França, Nythamar de Oliveira é mestre em Filosofia pela Universidade Villanova, nos Estados Unidos, e doutor em Filosofia pela Universidade do Estado de Nova York – SUNY, Estados Unidos, com a tese On the genealogy of Modernity: Kant, Nietzsche, Foucault. Cursou inúmeros pós-doutorados e, entre outras atividades, é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e pesquisador do CNPq desde 1995. De sua produção bibliográfica, destacamos: Justice and Recognition: On Axel Honneth and Critical Theory (Praga (República Tcheca): Filosofia, 2015), On the Genealogy of Modernity: Foucault’s Social Philosophy (2. ed. Hauppauge, NY: Nova Science, 2012) e Rawls (Rio de Janeiro: Zahar, 2003).

Nythamar esteva na Unisinos na quinta-feira, 09-06, proferindo a conferência O Circuito dos Afetos. Corpos Políticos, desamparo e o Fim do Indivíduo. Discussão do livro de Vladimir Safatle, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A palestra foi uma preparação ao debate com Safatle, o autor do livro o Circuito dos Afetos, que ocorrerá na próxima quinta-feira, 15-06, às 19h30min, também numa promoção do IHU. Leia mais sobre a conferência de Nythamar. A palestra também está disponível na íntegra, através do canal do IHU no You Tube.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O que é o circuito dos afetos?

Nythamar de Oliveira - É o modo como emoções sociais, desejos e sentimentos de pertença e identidade (político-nacional, étnico-racial, gênero e sexualidade) são articulados na gestão e co-constituição do corpo político, não apenas no exercício do poder e controle social do Estado, mas também em sua correlata circulação e distribuição de bens e riquezas. Assim, o circuito dos afetos diz respeito ao correlato instintivo do circuito institucional em que o poder e o dinheiro determinam os imperativos sistêmicos e as configurações das instituições. Segundo Vladimir Safatle , ao invés de nos contentarmos com teorias tradicionais que reduzem os vínculos sociais à normatividade social que permeia todo o tecido social através de instituições e estruturas funcionais, é mister revisitar “a circulação daquilo a que nossos olhos não podem ser indiferentes porque nos afeta, seja através das formas da atração, seja através da repulsa. No lugar da lei, das normas e das regras havia, na verdade, um circuito de afetos” (Circuito dos Afetos, p. 15).


IHU On-Line - Qual é a origem filosófica dessa ideia? Que autores fundamentais estão em seu cerne?

Nythamar de Oliveira - Segundo Safatle, Thomas Hobbes  teria sido um dos primeiros teóricos a ter empreendido, ainda no século XVII, uma descrição assaz precisa do “modelo hegemônico de circuito de afetos próprio a nossas sociedades de democracia liberal, com suas regressões securitárias e identitárias periódicas”, embora essa não tenha sido propriamente uma versão do liberalismo que estava por emergir (por exemplo, a partir de Locke  e Espinosa ), na medida em que Hobbes ainda colocava “os interesses da soberania acima da defesa da propriedade dos indivíduos” (Circuito, p. 19). Safatle menciona também o clássico estudo de Ernst Kantorowitz , Os dois corpos do rei (The King’s Two Bodies: A Study in Mediaeval Political Theology), de 1957, que tornou essa concepção bastante conhecida e utilizada em teoria política, tendo sido também evocada por Michel Foucault  em Vigiar e Punir (Surveiller et Punir, 1975), onde são analisados os mecanismos sociais e teóricos correlatos às grandes mudanças que ocorreram em sistemas penais ocidentais durante a Modernidade, não porque a prisão teria se tornado a forma por excelência de castigo por razões humanitárias dos reformistas, mas pelas mudanças culturais que levaram à predominância de uma nova forma de poder tecnológico, enfocando o corpo e as disciplinas punitivas. Com Foucault, o poder deixa de ser tomado como algo ou uma entidade, uma substância ou essência, como centro de relações de dominação ou como objeto ôntico de uma “crítica do poder”, para ser tematizado como relação, conduta, como o próprio conduzir-se ou governar-se a si mesmo e a outros, em uma verdadeira explicitação do kybernein humano, sua conduta social, individualizante e normalizante, enquanto governança da subjetivação e seus dispositivos institucionais. 

Política e encarnação

Portanto, embora não seja explicitamente desenvolvida nesses termos, trata-se de reformular uma ideia de “biopolítica vitalista transformadora” (seguindo uma fórmula de Georges Canguilhem ) que permita a articulação entre corpo político e controle social através dos afetos, de forma a evitar, por um lado, a simples “denúncia foucaultiana da administração dos corpos como mola de funcionamento das estratégias do poder” e, por outro lado, as “teorias hegemônicas do reconhecimento”, como as de autores liberais, comunitaristas e alternativas contemporâneas (tais como Taylor , Habermas , Honneth  e Fraser , apenas para pensar nos que são citados em seu programa de pesquisa). 

Safatle evoca destarte as metáforas do corpo e seus afetos, através da reapropriação crítica de outros tantos autores, tão diversos quanto Aristóteles , Rousseau , Kafka , Freud , Lacan , Zizek , Laclau  e Agamben , justamente para mostrar como a “instauração política aparece assim como a constituição de um corpo dotado de unidade, de vontade consciente, de eu comum”, ao mesmo tempo em que “nos lembram como não é possível haver política sem alguma forma de incorporação”. Em última análise, nas palavras do próprio Safatle, “Não há política sem a encarnação, em alguma região e momentos precisos, da existência da vida social em seu conjunto de relações. Pois é tal encarnação que afeta os sujeitos que compõem o corpo político, criando e sustentando vínculos” (Circuito, p. 22s). Trata-se, portanto, de uma inovadora e original reformulação de uma teoria “biopolítica da mobilidade normativa” como alternativa à teoria crítica da sociedade que desafia os paradigmas frankfurtianos da análise marxista do capital, do trabalho e do reconhecimento, resgatando o papel revolucionário do proletariado e de uma crítica do capitalismo, sobretudo de suas versões neoliberais. 


IHU On-Line - Qual é a contribuição específica de Espinosa a essa questão?

Nythamar de Oliveira - O termo “afeto” (affectus) é usado por Espinosa para aludir à transição (transitio) de um estado a outro, no corpo afetado (passivamente, passivum), assim como no corpo afetante (ativamente, activum). Segundo Espinosa, afetos são as afecções do corpo (corporis affectiones), pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída (Ética III, Definição 3), enquanto o corpo (corpus) é definido como uma potência em ato, uma força de existir, um aglomerado de partes duras e moles, em nossa linguagem científica, um conjunto de átomos, moléculas, tecidos e órgãos que possuem a capacidade de se manter unidos, se regenerar e agir em conjunto. Para Espinosa, o corpo humano pode ser afetado de muitos modos, que aumentam ou diminuem sua potência de agir, assim como de outros que não tornam sua potência de agir nem maior nem menor. Todavia, como o mundo em muito nos excede, geralmente não temos a capacidade de agir sobre ele e “flutuamos como ondas do mar agitadas por ventos contrários, sem saber de nossa sorte ou nosso destino” (Prop. LIX Esc.). Assim, as afecções são o corpo sendo afetado pelo mundo. É o encontro pontual de um corpo com outro. Somos corpos que se relacionam com outros corpos, quando sofremos suas afecções, quando somos afetados pelos outros corpos, sofremos uma alteração, uma passagem, nossa potência aumenta ou diminui. De acordo com a ontologia espinosana, não se trata de opor razão e afetos (ou paixões), que se manifestam como expressões distintas de uma única potência da natureza, mas podemos evocar apenas a contraposição entre atividade e passividade, pois nem todos os afetos são necessariamente paixões, podendo a afetividade também agir sobre o intelecto, ao contrário da tradição cartesiana: “agimos, quando algo acontece, em nós ou fora de nós, de que somos causa adequada, isto é, quando se segue de nossa natureza, em nós ou fora de nós, algo que se entende clara e distintamente apenas por ela. Digo ao contrário que padecemos, quando algo acontece, em nós ou fora de nós, de que somos apenas causa parcial” (Ética III, Definição 2). Assim, na esteira da teoria safatliana, “podemos pensar a política a partir da maneira como afetos determinados produzem modos específicos de encarnação. Nem todas as corporeidades são idênticas; algumas são unidades imaginárias, outras são articulações simbólicas, outras são dissociações reais. Cada regime de corporeidade tem seu modo de afecção.” (p. 23).


IHU On-Line - Quais são as ideias centrais de Espinosa que dão origem a resistências na política e, sobretudo, nas democracias liberais de nosso tempo?

Nythamar de Oliveira - Segundo o modelo hobbesiano, por exemplo, a saída do estado de medo constante da morte violenta, no estado de natureza, a um estado de direito com relativa segurança e paz se dá pela transferência contratual que legitima a soberania absoluta do monarca ou do governante. Geralmente, coloca-se Espinosa dentro da mesma tradição contratualista que vai de Grotius  e Hobbes até Locke, Rousseau  e Kant . Ora, na sua Ethica, Espinosa parece defender uma leitura necessitarista da condição humana, ao menos em termos de uma antropologia filosófica: “Os homens se enganam quando se pensam livres e esta opinião consiste apenas em serem conscientes de suas ações e ignorantes das causas que as determinam. Assim, a ideia que têm de sua liberdade vem de não conhecerem nenhuma causa de suas ações, pois quando dizem que as ações humanas dependem da vontade, são palavras sem nenhuma ideia. Com efeito, todos ignoram o que é a vontade e como ela move o corpo e os que presumem outra coisa e inventam sedes ou habitáculos para a alma normalmente despertam o riso ou a náusea.” (Prop. XXXV). É importante lembrar que após haver publicado seu Tractatus Theologico-Politicus em 1670, Espinosa ainda levou pelo menos cinco anos até concluir sua Ethica, publicada postumamente em 1677, de forma que ambos tratados deveriam ser tomados como correlatos em suas teses principais, notadamente no que diz respeito à condição humana entre o dogmatismo da religião, do autoritarismo político e das superstições, de um lado, e o determinismo da natureza e dos condicionamentos sociais, de outro. 

Liberdade sub specie aeternitatis

Espinosa decerto rejeita o finalismo e o idealismo de cosmovisões religiosas e metafísicas tradicionais, assim como refuta concepções racionalistas e libertárias de liberdade, como se os seres humanos fossem idealmente ou totalmente livres para agir — uma vontade livre da natureza —, mas ele também recusa a ideia de uma natureza independente da ideia metafísica de totalidade, infinito ou substância, como se esta pudesse se contrapor à própria ideia de liberdade (talvez esta seja, afinal, uma maneira apropriada de entender a enigmática frase deus sive natura). 

Com efeito, a sua concepção ético-política é melhor caracterizada como sendo, ao mesmo tempo, antirrealista (antiplatônica) e antirreducionista (contrária a uma versão eliminacionista de materialismo ou a um naturalismo reducionista, na terminologia atual), favorecendo um tipo de construtivismo mitigado como o que encontramos em António Damásio  ou Jesse Prinz , evitando concepções redutivas de naturalismo e de normatividade ético-política. Assim, na terceira parte da Ética, Espinosa pode argumentar que todas as coisas ou entes, incluindo os seres humanos, esforçam-se para perseverar em seu ser, ou seja, buscam durar tanto tempo quanto puderem. Espinosa explica como este esforço (conatus) subjaz nossas emoções (amor, ódio, alegria, tristeza etc.). 

Segundo uma concepção espinosana clássica, “o esforço (conatus) pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser é a essência atual desta própria coisa” (Ética III, Prop. VII). Destarte, a mente é, na maior parte das vezes, passiva, e em outros casos ativa: na medida em que tem ideias adequadas, a mente é necessariamente ativa, e na medida em que tem ideias inadequadas, ela é necessariamente passiva. 

Na quarta parte, “Sobre a servidão humana” (De servitute humana), Espinosa analisa as paixões humanas enquanto aspectos da mente que nos dirigem para o exterior, ao buscar o que nos dá prazer e evitar o que provoca a dor. A servidão ocorre quando a mente é dominada por tais paixões ou afetos, a ponto de poder atormentar as pessoas e inviabilizar a sua convivência social em harmonia uns com os outros. Safatle observa, com bastante perspicácia e justeza, que Espinosa se diferencia de Hobbes precisamente no papel que a temporalidade desempenha em sua teoria ético-política, na medida em que não se trata apenas de aludir ao papel do Estado hobbesiano como “gestor da insegurança social”, mas de resgatar a ideia espinosana de liberdade sub specie aeternitatis: “quanto mais nos esforçamos por viver sob a condição da razão, tanto mais nos esforçamos por depender menos da esperança e por nos livrar do medo, por dominar, o quanto pudermos, o acaso (fortunae), e por dirigir nossas ações de acordo com o conselho seguro da razão” (Ética IV, Prop. XLVII Esc.). 

Sociedade “paranoica”

Segundo Safatle, o medo enquanto afeto político “tende a construir a imagem da sociedade como corpo tendencialmente paranoico, preso à lógica securitária do que deve se imunizar contra toda violência que coloca em risco o princípio unitário da vida social”. Imunidade que precisa da perpetuação funcional de um estado potencial de insegurança absoluta vinda não apenas do risco exterior, mas da violência imanente da relação entre indivíduos. Imagina-se, por outro lado, que a esperança seria o afeto capaz de se contrapor a esse corpo paranoico. No entanto, talvez não exista nada menos certo do que isso. Em primeiro lugar, porque não há poder que se fundamente exclusivamente no medo. Há sempre uma positividade a dar às estruturas de poder sua força de duração. Poder é, sempre e também, uma questão de promessas de êxtase e de superação de limites. Ele não é só culpa e coerção, mas também esperança de gozo. 

“Nada, nem ninguém, consegue impor seu domínio sem entreabrir as portas para alguma forma de êxtase e gozo”(p. 24). Safatle retoma, na verdade, uma problemática que havia sido por ele formulada, em seu Grande Hotel Abismo (2012), pelas perguntas programáticas: “que afetos criam sujeitos? Que afetos impulsionam os indivíduos que acreditamos um dia dever ser a esta dilatação produzida pela implicação com a desmesura que funda todo sujeito?” (p. 39). Em vez de investirmos na correlação afetiva medo-esperança ou na busca da felicidade, por exemplo, Safatle sugere que investiguemos o desamparo, pela sua negatividade essencial a toda forma de subjetividade e intersubjetividade, como potencial a ser explorado para uma subjetivação pró-ativa. Afinal, nas democracias liberais de nosso tempo, Espinosa nos lembra que “a liberdade da alma, ou seja, a coragem, é uma virtude privada, a virtude necessária ao Estado é a segurança” (Tratado político, p. 9). E Safatle acrescenta, corroborando com mais uma citação do filósofo sefardita no mesmo tratado: “a finalidade do Estado civil não é nenhuma outra senão a paz e a segurança de vida, pelo que o melhor Estado é aquele onde os homens passam a vida em concórdia e onde os direitos se conservam inviolados” (p. 44).


IHU On-Line - Em que aspectos essa teoria do circuito dos afetos nos ajuda a compreender a política em nosso tempo?

Nythamar de Oliveira - A teoria safatliana do circuito dos afetos nos propõe cinco linhas de força para entender o seu programa de ação política, a saber: (1) desenvolver de forma mais sistemática a articulação entre afetos e corpo político; (2) colocar em questão o modo de reconhecimento que determina os sujeitos como indivíduos e pessoas, viabilizando um pensamento da sociedade a partir de um circuito de afetos que não tenha o medo como fundamento; (3) desconstruir teorias normativas do reconhecimento que se mostram hoje dependentes de horizontes de avaliação de demandas sociais fundamentados em uma dimensão antropológica construída a partir de categorias de teor psicológico, tais como “identidade pessoal” e “personalidade”; (4) ao tematizar o desamparo como afeto político central, compreender, a partir de uma certa tradição dialética, as condições para a emergência de sujeitos políticos, evitando teorias hegemônicas do reconhecimento, institucionalidades e normatividades capazes de permitir o reconhecimento mais exaustivo de predicações dos indivíduos e a consequente ordenação social de diferenças; (5) ao tentar formular o que seria uma teoria do “reconhecimento antipredicativo”, a teoria safatliana do circuito dos afetos problematiza o amor como estrutura não-recíproca de reconhecimento, desvelando uma compreensão das dinâmicas processuais da dialética e de seus modelos de produtividade, recolocando a negatividade em seu horizonte correto. Segundo Safatle, trata-se de “partir da dialética para pensar movimentos de transformação estrutural da experiência e de seu campo”. 

Safatle reconhece destarte o experimentalismo do seu livro, que deve ser compreendido como um verdadeiro work in progress, sobretudo nessa quinta linha de força do livro, aquela que se encontra em estado mais latente: “Sua latência se justifica por ter sido inicialmente necessário apelar ao pensamento psicanalítico a fim de recolocar certos problemas políticos fundamentais em outro plano, de onde se seguiu a necessidade de repensar a corporeidade do vínculo social e sua dinâmica de afetos a fim de nos livrarmos de algumas ilusões e problematizações incorretas próprias de teorias da democracia hegemônicas” (p. 39). Uma teoria crítica e uma biopolítica de nossa sociedade brasileira pode nos ajudar a compreender a política em nosso tempo, na medida em que estamos hoje inseridos num sistema capitalista globalizado, atravessados por crises de representatividade (no caso doméstico da nossa jovem democracia, desde as jornadas de junho de 2013 até a atual crise do impeachment) e de protagonismo político, sobretudo quanto ao papel revolucionário do proletariado, supostamente suplantado por movimentos estudantis (em 1968) ou movimentos de libertação no chamado Terceiro Mundo (anos 1970 e 80). Segundo Safatle, é mister empreender uma verdadeira “genealogia do proletariado” a fim de resgatar o sentido normativo de “absoluta despossessão” que configura a emergência do proletariado. 

Proletário procriador

Safatle nos lembra de que, segundo a Constituição Romana, o proletário era caracterizado como a “última das seis classes censitárias, composta daqueles que, embora livres, não têm propriedade alguma ou, por não terem propriedades suficientes, não são considerados cidadãos com direito a voto e obrigações militares”. O proletário tem sido, outrossim, reduzido à condição biopolítica mais elementar de reprodutor da população pela capacidade de procriar e ter filhos (p. 335). Da sua particularidade de se tornar um “significante vazio” (p. 116) e da indeterminação que resiste à “juridificação da liberdade” (segundo a feliz fórmula de Hans-Georg Flickinger, aludindo a imigrantes ilegais na Europa ou Estados Unidos), tal reabilitação do proletariado poderia dessa forma responder aos déficits normativos das reconstruções crítico-imanentes frankfurtianas em autores como Habermas e Honneth  na direção de um “reconhecimento antipredicativo”, evitando a redução do político a um “campo de universalidade formadora de direito”. 

Segundo a estratégia safatliana, “longe de se afirmarem de maneira ‘antipredicativa’, temos, ao contrário, uma predicação dos sujeitos através da determinação fornecida por direitos positivos juridicamente enunciados que, até então, lhes foram negados. Falar em ‘reconhecimento antipredicativo’ só faria sentido se pudéssemos afirmar a necessidade de algo do sujeito não passar em seus predicados, mas continuar como potência indeterminada e força de indistinção. Como se aprofundar as dinâmicas de reconhecimento não passasse por aumentar o número de predicados aos quais um sujeito se reporta, mas que passasse, na verdade, por compreender que um sujeito se define por portar o que resiste ao próprio processo de predicação. O que nos deixa com uma questão fundamental: como reconhecer politicamente essa potência que não se predica? Poderíamos pensar em lutas políticas cujas encarnações em demandas particulares nos levasse, necessariamente, ao reconhecimento do que é radicalmente antipredicativo?” (p. 357).


IHU On-Line - Em que sentido o medo, a segurança e a esperança são afetos políticos centrais?

Nythamar de Oliveira - De acordo com as Definições dos Afetos no Livro III de sua Ética, Espinosa contrasta a esperança (spes), enquanto “alegria inconstante, originada da ideia de uma coisa futura ou passada, cuja ocorrência duvidamos até certo ponto” (XII), com o medo (metus), enquanto “tristeza inconstante, originada da ideia de uma coisa futura ou passada, cuja ocorrência duvidamos até certo ponto”(XIII), oferecendo-nos a seguinte explicação: “segue-se destas definições que não há esperança sem medo nem medo sem esperança. Pois se supõe que quem depende da esperança tem dúvida sobre a ocorrência da coisa e também imagina algo que exclui a existência futura de tal coisa; nesta medida (pela Prop. XIX), ele também se entristece. Consequentemente, quem depende da esperança, teme que a coisa não aconteça. Por outro lado, quem tem medo, isto é, quem tem dúvida da ocorrência daquilo que odeia, também imagina algo que exclui a existência de tal coisa e, portanto (pela Prop. XX), também se alegra e, consequentemente, tem esperança de que a coisa não ocorra”. No mesmo contexto da Ética, a segurança (securitas) é definida como “a alegria originada da ideia de uma coisa futura ou passada da qual foi removida toda a causa de dúvida” (XIV).


IHU On-Line - O que o dito de Lacan “viver sem esperança é também viver sem medo” tem a dizer às sociedades hoje, em termos políticos?

Nythamar de Oliveira - Como nos lembra Safatle, justamente porque Espinosa acreditava que o medo (metus) e a esperança (spes) se complementam, há uma relação pendular entre os dois: “não há esperança sem medo, nem medo sem esperança” e “daí por que ‘viver sem esperança’, disse uma vez Lacan, ‘é também viver sem medo’ (p. 24) Seguindo a intuição freudiana do desamparo, Safatle crê evitar que a ideia de que vínculos sociais sejam apenas criados através da transformação de toda abertura ao outro em demandas de amparo (p. 25). Safatle resgata, outrossim, o legado de contribuições psicanalíticas e especificamente freudianas para uma teoria crítica da sociedade, como foi de resto o intento originário da primeira geração da chamada Escola de Frankfurt, que seria abandonado por Habermas depois de sua guinada linguístico-pragmática (como atestam suas primeiras obras, notadamente Conhecimento e Interesse, que ainda continha dois capítulos sobre Freud e a psicanálise). Nas palavras de Safatle, “A perspectiva freudiana não é, no entanto, apenas a expressão de um desejo em descrever fenômenos sociais a partir da intelecção de seus afetos. Freud quer também compreender como afetos são produzidos e mobilizados para bloquear o que normalmente chamaríamos de ‘expectativas emancipatórias’. Pois a vida psíquica que conhecemos, com suas modalidades de conflitos, sofrimentos e desejos, é uma produção de modos de circuito de afetos” (p. 48).


IHU On-Line - Em que consistiria uma política que daria à vida social a potência de um horizonte antipredicativo e impessoal?

Nythamar de Oliveira - Segundo Safatle, sua teoria “procura defender que uma política realmente transformadora só pode ser atualmente uma política que não se organize a partir do estabelecimento de institucionalidades e normatividades capazes de permitir o reconhecimento mais exaustivo de predicações dos indivíduos e a consequente ordenação social de diferenças. Ao contrário, ela só pode ser uma política que traga à vida social a potência de um horizonte antipredicativo e impessoal que, à sua forma, Marx foi capaz de trazer através de seu conceito de proletariado” (p. 29s).

Com efeito, como diz o autor, o livro procurou “expor as limitações de uma teoria do reconhecimento presa à determinação antropológica do indivíduo e suas exigências identitárias. Se a primeira parte procurou, à sua forma, mostrar a potencialidade de uma política desprovida da exigência de ser pensada a partir do processo de constituição de identidades coletivas, esta última insistiu em pensar modos de relação como dinâmicas de despossessão de identidades individuais” (p. 409).


IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Nythamar de Oliveira - Pensei sobretudo na dimensão neurocientífica, na possível integração do nível natural (correlatos neurais e condicionamentos neurobiológicos) com o nível cultural-ambiental (condicionamentos comportamentais e sociais, que podem ser descritos por análises empíricas, psicológicas, antropológicas e sociológicas), como temos procurado fazer com relação a uma formulação de um construtivismo social que permita aproximar concepções político-normativas da teoria crítica (Habermas e Honneth) e de versões mitigadas do naturalismo não-reducionista (Damásio e Prinz).

Pensei ainda que seria interessante ressituar a teoria safatliana do circuito dos afetos com relação à teoria crítica brasileira desenvolvida por autores como Sergio Paulo Rouanet , Barbara Freitag , Marcos Nobre , Jessé Souza , Marcelo Neves , Marcia Tiburi  e Leonardo Avritzer , enfocando problemas de Pós-Modernidade versus Modernidade para caracterizar o ethos social brasileiro e seus déficits normativos.

Finalmente, creio que seria interessante revisitar as interlocuções possíveis com autores das chamadas teologias da libertação, reformulando o problema da guinada teológica na fenomenologia (Ricoeur , Levinas , Henry , Marion ) e a hermenêutica pós-estruturalista francesa (Foucault, Derrida , Deleuze ) em torno de problemas de alteridade e reconhecimento.

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