Edição 487 | 13 Junho 2016

A política da infinitude

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Márcia Junges e Ricardo Machado

O professor e filósofo Vladimir Safatle analisa como as sociedades contemporâneas se constituem, para além das leis e consumo de mercadorias, em circuitos de afetos

A complexidade com que as sociedades contemporâneas se constituem ultrapassam as relações mercantis e legais, o que, para entendê-las, requer perspectivas mais amplas de análise. “As sociedades não são apenas sistemas de circulação de bens e riquezas. Da mesma forma, elas não são apenas sistemas de normas, regras e leis. Sociedades são, acima de tudo, circuitos de afetos”, defende Vladimir Safatle, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A maneira com que afetos circulam em uma determinada sociedade define a forma com que tais sociedades definem seus campos de experiências possíveis, seus campos de visibilidade e de existência”, complementa.

A política moderna e seus sistemas de ordenação social se caracterizaram em grande parte por uma perspectiva hobbesiana do medo como vínculo social. O impacto desta racionalidade levou as sociedades contemporâneas à tecnocracia como solução distópica, o que gera certo descompasso entre os modelos políticos dominantes e a atual conjuntura. “As teorias da democracia baseadas na crença em uma ‘descorporificação’ necessária do social pecam por entenderem que as metáforas do corpo político são todas necessariamente unitárias, hierárquicas e identitárias, o que é falso”, propõe. “Conjugar melhor a multiplicidade das metáforas corporais no interior da reflexão política seria condição necessária para pensarmos melhor as relações entre democracia e corporeidade”, reflete. 

Vladimir Safatle é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo - USP e em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. Realizou mestrado em Filosofia pela USP e doutorado em Lieux et transformations de la philosophie, pela Université de Paris VIII. Atualmente é Professor Livre Docente do departamento de Filosofia da USP. Foi professor visitante das Universidades de Paris VII, Paris VIII, Toulouse, Louvain e Stellenboch (África do Sul), além de responsável de seminário no Collège International de Philosophie (Paris). É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy, do Laboratório de Pesquisa em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) e presidente da Comissão de Cooperação Internacional (CCint) da FFLCH-USP desde 2012. É autor de diversos livros, dentre os quais destacamos A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo: Unesp, 2006), Lacan (São Paulo: Publifolha, 2007), A esquerda que não teme dizer o seu nome (São Paulo: Três Estrelas, 2012) e O circuito dos afetos. Corpos Políticos, desamparo e o Fim do Indivíduo (São Paulo: Cosac Naify, 2015).

Safatle estará no Instituto Humanitas Unisinos - IHU na próxima quarta-feira, 15-06-2016, apresentando a conferência O Circuito dos Afetos. Corpos Políticos, desamparo e o Fim do Indivíduo, em que discute seu livro homônimo. O evento ocorre na sala Ignacio Ellacuría e companheiros - IHU a partir das 19h30min.

Confira a entrevista.


IHU On-Line - O que poderíamos entender por teoria dos afetos ou circuito dos afetos?

Vladimir Safatle - As múltiplas formas de teoria dos afetos que apareceram nos últimos vinte anos procuram dar conta não apenas de um problema psicológico ligado à estrutura das emoções, mas também de um problema social ligado à natureza dos vínculos sociais. Ou seja, os afetos não são apenas um modo de descrever disposições motivacionais de sujeitos psicológicos. Eles podem também constituir um campo privilegiado de compreensão das formas sociais de instauração de relação, de implicação em identidades e de incorporação política. 


IHU On-Line - A partir desse horizonte, em que aspectos as sociedades são circuitos de afetos?

Vladimir Safatle - Dizer isto é afirmar que sociedades não são apenas sistemas de circulação de bens e riquezas. Da mesma forma, elas não são apenas sistemas de normas, regras e leis. Sociedades são, acima de tudo, circuitos de afetos. Elas determinam seus regimes de coesão a partir dos afetos que elas produzem e estimulam. A maneira com que afetos circulam em uma determinada sociedade define a forma com que tais sociedades definem seus campos de experiências possíveis, seus campos de visibilidade e de existência. Por isto, uma crítica social não deve se contentar em indicar déficits normativos ou em denunciar relações injustas no processo de circulação de bens e riquezas. Ela deve saber analisar os afetos que sustentam vínculos sociais, assim como seus efeitos.


IHU On-Line - Em que medida o medo, a segurança e a esperança são afetos políticos centrais?

Vladimir Safatle - Medo e esperança constituem a polaridade fundamental no circuito de afetos das sociedades modernas. Desde Hobbes,  sabemos como o medo é mobilizado para fundamentar vínculos sociais no interior da sociedade dos indivíduos. Ele aparece como uma paixão calculadora que permitiria aos indivíduos estabelecerem certa previsibilidade das ações a partir da memória dos danos sofridos. Conhecemos também como a esperança é continuamente mobilizada contra o medo, isto principalmente no interior das políticas das utopias. No entanto, Spinoza  tem uma bela crítica na qual insiste na polaridade complementar entre medo e esperança. Creio que tal crítica deveria ser constantemente relembrada. Contra medo e esperança, Spinoza sugere a segurança (securitas) como afeto político central. Em meu livro, procuro criticar tal alternativa através de uma discussão sobre as consequências políticas do chamado necessitarismo spinozista. 


IHU On-Line - Em que sentido se deveria falar em uma outra corporeidade política?

Vladimir Safatle - Política é, acima de tudo, um processo de incorporação. Não há política sem corpo, isto em dois sentidos. Primeiro, estamos presentes no campo social como sujeitos corporificados, sujeitos submetidos a um regime sensível de implicação. Neste sentido, há de se lembrar que só um corpo pode afetar outro corpo e tal cláusula restritiva tem consequências políticas claras. Segundo, a política funda-se em processos de aglutinação. Isto significa que seu horizonte é a aglutinação em corpos. No entanto, temos uma noção restrita do que é um corpo, pois quando falamos em corpos políticos temos a ideia de uma entidade orgânica, hierárquica, unitária e identitária. Este é o resultado de um descompasso profundo entre biologia e filosofia. Temos uma imagem da vida que não diz mais respeito à forma com que um organismo é atualmente definido em biologia, ou seja, como um processo contínuo de composição e decomposição, como nos mostra, entre outros, biólogos como Henri Atlan.  


IHU On-Line - O que o dito de Lacan “viver sem esperança é também viver sem medo” tem a dizer às sociedades, hoje, em termos políticos?

Vladimir Safatle - Viver sem esperança é também viver sem ter o que esperar. Mas podemos não ter o que esperar porque não há mais nada a esperar, porque todas as condições para a ação já estão dadas no presente, bastando apenas ter uma visão mais complexa e rica do próprio presente. Lacan  fazia tal afirmação para lembrar que a esperança estava sempre ligada à projeção de um horizonte de expectativas no interior do tempo. Isto implica submeter o tempo ao caráter prévio do horizonte de expectativas já traçado. Esta é uma maneira astuta de evitar todo acontecimento e contingência. A questão interessante será, pois: que tipo de sociedade será esta que organiza suas forças políticas para a tarefa de evitar a contingência?


IHU On-Line - A partir de Freud, como podemos compreender que o desamparo é o afeto político central?

Vladimir Safatle - Em Freud,  o desamparo aparece como uma condição ontológica do sujeito. Por isto, sua clínica não está voltada para “curar” o desamparo, mas para nos permitir desenvolver formas de afirmá-lo. Pois há uma forma de desamparo que equivale à afirmação da liberdade. Freud se interessa principalmente por estas situações nas quais estar desamparado é estar diante de um Outro que me despossui, que quebra minha narrativa sobre mim mesmo, que me coloca diante de algo que não controlo. Neste caso, temos uma liberdade que não pode mais ser pensada como autonomia, mas como uma heteronomia sem servidão, ou seja, como o reconhece de que há algo do exterior que me causa, que me afeta, mas tal exterioridade não é uma outra vontade, mas é aquilo que despossui o Outro de sua dominação da vontade. 


IHU On-Line - Que nexo une a encarnação, a corporeidade, com a política e a democracia, em específico?

Vladimir Safatle - Como disse, só há política como encarnação e incorporação. As teorias da democracia baseadas na crença em uma “descorporificação” necessária do social pecam por entenderem que as metáforas do corpo político são todas necessariamente unitárias, hierárquicas e identitárias, o que é falso. Se ela aparece assim em Hobbes, não creio que apareça desta forma em Spinoza, em Rousseau  e, mais recentemente, em Deleuze  e Guattari  com seu conceito de corpo sem órgãos. Conjugar melhor a multiplicidade das metáforas corporais no interior da reflexão política seria condição necessária para pensarmos melhor as relações entre democracia e corporeidade. De toda forma, eu recuso a noção de que a democracia é este regime no qual o lugar do poder está vazio, como quer Lefort.  Isto nunca ocorreu, não ocorre e nunca ocorrerá. Há sempre um suplemento fantasmático a preencher este lugar vazio. Contra este suplemento fantasmático, só é possível contrapor um corpo real, o real do corpo em sua potência disruptiva e fragmentada. 


IHU On-Line - Em que consistiria uma política que daria à vida social a potência de um horizonte antipredicativo e impessoal?

Vladimir Safatle - Uma política capaz de escapar dos impasses do uso político da identidade, que abra aos sujeitos a potência de serem mais do que portadores de atributos, predicados e propriedades. Ou seja, trata-se de uma política que desidentifica e permite subir à cena da vida social a negatividade daqueles capazes de dizerem, como lembrava Marx : “Não sou nada, por isto, posso ser tudo”. As políticas que se adequam a demandas identitárias jogam os sujeitos a uma analítica da finitude e da restrição das demandas políticas a demandas de reparação. Melhor seria se abríssemos a política à infinitude do que não se conforma a identidades determinadas. 


IHU On-Line - Pensando no cenário político brasileiro de nossos dias, qual é a atualidade fundamental do pensamento de Spinoza?

Vladimir Safatle - Como dizia Lacan, não se ultrapassa filósofos como Spinoza, Hegel,  Kant,  Descartes,  Marx, porque a verdade é sempre nova. Spinoza é o primeiro filósofo a pensar de maneira consequente as possibilidades da democracia e da emancipação política. Neste sentido, a reflexão sobre sua filosofia é obrigatória. 


IHU On-Line - Em que aspectos seu pensamento nos desafia a repensarmos a política e a representação democrática?

Vladimir Safatle - Na medida em que coloca no centro o problema da emancipação e da crítica aos constructos teológico-políticos tão presentes na vida contemporânea. Spinoza tem uma bela teoria a respeito da produção das ilusões em política, assim como foi muito consequente na defesa da soberania popular como multidão. Todas estas questões estão atualmente na ordem do dia.

 

Leia mais... 

- Reforma política. Artigo de Vladimir Safatle reproduzido nas Notícias do Dia, de 20-05-2016, no sítio do IHU. 

- A Nova República acabou, diz filósofo Vladimir Safatle. Artigo de Vladimir Safatle reproduzido nas Notícias do Dia, de 16-03-2015, no sítio do IHU. 

- A verdadeira face do Supremo Tribunal Federal. Entrevista especial com Vladimir Safatle publicada nas Notícias do Dia, de 05-04-2011, no sítio do IHU.   

- Racionalidade cínica, raiz da anomia social. Entrevista especial com Vladimir Safatle publicada nas Notícias do Dia, de 17-11-2008, no sítio do IHU.

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