Edição 486 | 30 Mai 2016

O velho cardeal que se entrega ao povo da floresta

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João Vitor Santos

Dom Claudio Hummes recorda o início da vida religiosa e revela que não quer saber de aposentadoria. Aos 82 anos, segue o desafio de evangelizar e encorajar a população amazônica
Hummes: “aqueles missionários e missionárias [da região amazônica] precisam de encorajamento nessa região tão difícil”/ Fotos Cristina Guerini Link

Ele saiu do interior de Montenegro, da localidade em que hoje é o município de Salvador do Sul, no Rio Grande do Sul, quando era ainda um gurizote que nem havia completado dez anos. Tornou-se padre, concluiu os estudos entre o Brasil e a Europa e foi para o ABC paulista e, como bispo de Santo André, esteve à frente da Igreja que se abriu para movimentos que deram origem à Central Única dos Trabalhadores – CUT. Foi para o Nordeste, imaginando que se aposentaria sob o sol cearense, mas pouco tempo depois teve que se desacomodar de Fortaleza e encarar o comando da Igreja Católica na maior cidade do país. Mas também não foi em São Paulo que dom Claudio Hummes  encerrou sua missão.

O agora cardeal é chamado pelo Papa Bento XVI para trabalhar junto à cúria Romana. Chegam os 76 anos e com eles a aposentadoria. Correto? “Poderia ter ficado lá o resto da vida, o que é normal. Mas vendo tudo aquilo (a situação dos bispos eméritos, os aposentados em Roma), me sentia ainda com saúde e muita vontade de trabalhar. E lá você não tem nada para fazer. Sobretudo depois dos 80 anos, não tem realmente nada para fazer, pois não se tem nenhuma função. Eu pensei: ‘não vou aguentar isso aqui’”, recorda.

E não aguentou. Hoje, aos 82 anos de idade, o cardeal percorre o norte do país e descobre um mundo a que sempre quis servir. “Desde jovem, desde padre, queria ser missionário na Amazônia. E, veja, agora, no fim da vida, Deus me faz isso cair no colo”, brinca. À frente da Rede Eclesial Pan-Amazônica – Repam e da Comissão Episcopal para a Amazônia da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, dom Claudio percorre o norte do Brasil e países da América Latina. “É um trabalho de visita em que a gente vai levar o apoio da CNBB. É uma visita fraterna, que quer encorajar, pois aqueles bispos, aqueles missionários e missionárias precisam de encorajamento nessa região tão difícil”.

Encantado pelo franciscano

Hummes nasceu na localidade de Batinga, interior de Montenegro, RS. O local hoje pertence ao município de Brochier. “Era um local de prevalência de luteranos. Meu pai dizia que éramos uma das únicas famílias católicas naquele lugarejo”, conta. A família já tinha duas filhas quando nasceu Claudio, o mais velho dos rapazes. Ele ainda era bebê e o pai decidiu se desfazer da fabriqueta de queijos e comprar uma pequena propriedade da sogra. Foi a mudança da família Hummes para a Linha Comprida, que hoje pertence ao município de Salvador do Sul. Essa é uma região em que a Companhia de Jesus mantinha um seminário denominado Colégio Santo Inácio. “Eu me lembro de ver os jesuítas saírem lá de cima do seminário e passarem pela propriedade que era mais embaixo. Pegavam muitas frutas e tinham contato com a comunidade”.

A mãe sonhava em ver o filho entre aqueles jovens. “Minha mãe era muito devota de Santo Inácio”, recorda. Entretanto, a única certeza que a família tinha era de que Claudio entraria para a vida religiosa. Além do seminário de Salvador do Sul, tinha a possibilidade de ir para o município de Gravataí, onde formavam-se os padres diocesanos. “Nosso vigário era diocesano e queria que eu fosse para lá”. Porém, tudo mudou assim que a comunidade recebeu uma visita. “Um dia passou por lá um franciscano, frei Olímpio Reichert. Ninguém jamais tinha visto um franciscano por lá e ele foi à minha escola. Era um homem de fala muito agradável, e perguntou quem queria ser padre”. Claudio estava entre os rapazotes que ergueram o braço.

Mais tarde, frei Olímpio foi conhecer os Hummes e falar da possibilidade de levar Claudio com ele. “O meu pai gostou muito dele e eu, ainda muito criança, me encantei com ele. O pai ficou satisfeito porque gostou dele, estava decidido”. Mas o que será que encantou aquele menino? Com olhar distante, como que buscando lá naquele tempo as lembranças, dom Claudio explica: “fazendo um exame de consciência para entender por que será que me encantei com aquele franciscano, eu me lembrei de uma capela que havia numa comunidade ali perto, em Linha Bonita. Era uma capela de Santo Antônio, e sempre gostei muito daquela imagem de Santo Antônio que havia lá. Era um olhar muito vivo, e existe essa imagem até hoje. Penso que aquilo deve ter funcionado como uma certa identificação na minha cabeça, daquele franciscano e aquela imagem de Santo Antônio”.

O início da vida religiosa

Claudio Hummes entra no seminário dos franciscanos em Taquari, RS, ainda muito jovem. “Fui para lá sem bem saber ao certo o que era ser franciscano e nem mesmo religioso. Queria apenas ser padre e pronto”. É dentro do seminário que começa a descobrir essa opção e vai, ao poucos, animando sua vocação. Questionado sobre a saudade de casa, recorda uma história curiosa. “A pensão de meu primeiro ano de seminário foi paga com uma vaca. A vaca chamava-se Bonita. Meu pai brincava que, se eu sentisse saudades, era só ir lá ver a Bonita”, brinca.

Passados oito anos de estudos em Taquari, inicia o noviciado na localidade de Daltro Filho, na cidade de Imigrante. É lá que estuda Filosofia e, ao completar 18 anos, em 1952, inicia essa nova etapa na formação. Porém, um ano antes Hummes tem um grande baque. “Em 1951 perdi a mãe. Ela tinha 38 anos e morreu de parto, no nascimento do 13º filho. Era uma menina, que morreu meses depois. A mãe teve uma hemorragia, pois naquele tempo as coisas eram muito difíceis”. No semblante é possível perceber a dor, mas Hummes não fala muito mais sobre essa perda. No bate-papo, logo traz outro assunto. “E, assim que concluí o noviciado, fui fazer Teologia em Minas Gerais.”

É em Minas Gerais que conhece dom Aloísio Lorscheider . “Ele foi meu professor de Teologia lá. Era muito bom professor. Era um grande professor de Dogmática”, destaca. É também em Minas Gerais, em Divinópolis, que é ordenado padre em 1958. De lá, vai prestar serviço num ginásio até ser enviado a Roma para aprofundar os estudos em Teologia. Eram os tempos do início do Concílio Vaticano II . “Eu me doutorei em Filosofia no Antoniano (Universidade Antoniana de Roma), minha tese foi sobre Blondel (Maurice Blondel ), e voltei em dezembro de 1962, com 28 anos. Isso tudo quando o Concílio já havia começado”.

De volta a Roma em 1963, sua proximidade com dom Aloísio lhe rende um encontro com o papa, então João XXIII . “O Concílio já estava em andamento, foi exatamente durante o tempo de João XXIII que estive em Roma. Tive até um encontro com ele, na época em que dom Aloísio foi feito bispo. Foi dom Aloísio que me levou à audiência dele”.

O bispo e os operários

De volta ao Rio Grande do Sul, dom Claudio chega à direção da Faculdade de Filosofia de Viamão. Em 1975, torna-se bispo de Santo André, em São Paulo. Por 21 anos, o novo bispo acompanha as transformações políticas do Brasil que surgem no ABC paulista e toda a movimentação de metalúrgicos. Na cidade, substituí dom Jorge Marcos Oliveira , “que já era um homem muito dos operários”. “Era uma figura muito interessante. Seguia do jeito dele, não ia muito mais à reunião dos bispos, o que gerava problemas com Roma por causa disso. Mas era uma figura, um carioca todo especial. Ele foi bispo auxiliar do Rio de Janeiro junto com dom Helder (Câmara) . É dessa geração”, recorda.

É assim que dom Claudio Hummes entra na década de 80, abrindo a Igreja para o movimento de trabalhadores e trabalhadoras das indústrias da região. “Em 1980 ocorre a greve maior em que nós da Igreja demos muito apoio e abrimos a Igreja; lá que conheci o Lula”. É nessa época, em Santo André, que nasce a Central Única dos Trabalhadores - CUT e inclusive o Partido dos Trabalhadores - PT. “Eu estive na assembleia de fundação da CUT. Na do PT não. O Lula disse para não ir e eu também já havia dito que não iria. O Lula disse que a Igreja não deveria ser o braço religioso do PT e nem que o PT seria o braço sindical da Igreja. Cada um deveria manter a sua autonomia”, recorda.

Buscando no passado aquelas memórias com seu olhar distante, Hummes dispara. “Se a Igreja não tivesse feito essa opção de apoiar os trabalhadores, teríamos cometido um erro histórico”. A reflexão leva a pensar o momento que vive o Brasil de hoje. Muito mais comedido, avalia: “a gente espera que o Brasil encontre seu caminho e possa se reconstruir. Há muitas coisas que desmoronaram por uma série de motivos. A Igreja tem que continuar a indicar os grandes valores éticos de uma democracia, de um estado de direito. Tem que continuar a insistir nisso e, ao mesmo tempo, encorajar o povo, manter a esperança viva de que é possível vencer essa crise e caminharmos para frente”.

Da Cúria ao povo da Amazônia

Em 1996, dom Claudio vai para Fortaleza. “Fui nomeado para suceder dom Aloísio e era para ficar lá para o resto da vida. Acontece que, logo depois, houve a sucessão de dom Paulo (Paulo Evaristo Arns)  em São Paulo. E essa sucessão foi logo em 1998”. O bispo gaúcho não esconde que ficou surpreso com essa guinada. Mas, afinal, como pode um bispo do Ceará assumir como arcebispo da maior metrópole brasileira? “Claro que não era candidato, pois recém havia chegado a Fortaleza. Porém, alguma coisa lá em São Paulo não deu certo. Se pergunta se sei, digo que não. Se soubesse, também diria que não sei”, despista, revelando sagacidade, o que parece ser uma característica sua.

Dez anos depois, já cardeal (foi feito cardeal por João Paulo II  em 2001), assume um posto na Cúria Romana, como prefeito da Congregação para o Clero . “Eu estava lá no Círio de Nazaré , quando recebi o chamado do papa Bento XVI . Fiquei meio assim, pois estava com 72 anos e aos 75 anos terminam os prazos (se aposenta). Mas o papa Bento queria que eu fosse. Então fui lá e fiquei até fim de 2010”. Só que dom Claudio não gostou muito do que via para depois da aposentadoria, não se via como “cardeal aposentado”. É aí que decide voltar ao Brasil e recebe o convite para assumir a comissão de bispos para Amazônia e a Repam. Para ele, a Igreja precisa rever suas normas, pois grande parte do clero ainda tem muito que oferecer depois da aposentadoria. “Isso está ainda mal resolvido”.

O “amigo” do Papa

Durante o tempo que esteve em Roma, Hummes conheceu os meandros da Cúria e esteve bem próximo a Bento. Questionado sobre se supunha, naquela época, que esse papa renunciaria, é enfático: “Não! Ninguém pensava nisso. Era inconcebível. Embora soubéssemos que era possível, era inconcebível”. Mas não é dessa época a fama que Hummes tem de “amigo do papa”. Todos recordam a imagem do cardeal ao lado de Jorge Mario Bergoglio, na sua primeira aparição como papa Francisco, na sacada do Palácio Apostólico. Há uma história de que Bergoglio teria escolhido o nome de Francisco inspirado por Hummes.

O cardeal brasileiro sorri muito ao se lembrar da história. Diz que o que se passou lá dentro da Basílica de São Pedro é segredo de Conclave. Mas, como o papa não está mais submetido aos segredos do Conclave e já contou essa história, não vê problemas. “Eu conto isso porque ele já contou”, brinca. Ele, o papa, tornou pública essa história numa coletiva com jornalistas do mundo inteiro. “O papa recorda que, quando do último escrutínio, os votos começaram a convergir para o lado dele. ‘E eu me senti ameaçado’, disse o papa. ‘Ao meu lado estava sentado o cardeal brasileiro dom Claudio Hummes. Ele me consolava’. E, de fato, foi assim”.

Hummes não poupa detalhes ao reconstituir aquele momento, inclusive reproduz o que diz ter sido a fala de Francisco na ocasião. “Quando veio o número suficiente de votos, houve um grande aplauso. E segue o papa contando: ‘depois desse aplauso, dom Claudio me abraçou’, e de fato eu o abracei, sentado mesmo. E o papa segue contando: ‘dom Claudio me abraçou, deu um beijo no rosto e me disse ‘não te esqueças dos pobres’’. Daí o papa refletiu e chegou à ideia de Francisco, o santo dos pobres, da paz, da criação. “De fato eu disse isso. A historinha é verdadeira (risos, muitos risos). Só que aquilo me veio de forma espontânea, não tinha preparado nada. Sempre digo que foi o Espírito Santo que falou pela minha boca.”

O cardeal diz que nos instantes que sucederam ao Conclave, Francisco já dava sinais de como seria seu pontificado , ao quebrar protocolos, recusar vestes luxuosas e chamar Hummes e outro cardeal para orar com ele. “O papa chamou o cardeal Agostino Vallini , que cuida da Diocese de Roma, e olhou para mim e disse: ‘oh, Dom Claudio. Venha comigo. Quero que você esteja aqui comigo’. Fiquei todo espantado, mas fui lá. Havia até esquecido meu barrete e ele disse para eu voltar lá e buscar meu barrete. Numa simplicidade, em meio àquele momento soleníssimo”. Seguindo a quebra, Francisco chama os dois cardeais para estarem ao seu lado na apresentação.

Sobre a “amizade com Bergoglio”, diz: “nunca nos visitamos antes. Apenas trabalhamos juntos na Conferência de Aparecida ”. “O trabalho era reunir todas as sugestões que vinham e redigir o texto. Havia nesse grupo uns seis bispos e dois teólogos que tinham a função de assessores e lembro que eles já tinham na cabeça um projeto de documento. E eu, e o Bergoglio, sobretudo, defendíamos que deveríamos recolher o que vinha da Assembleia”, recorda, ao enfatizar o ar de colegialidade que mais tarde se revelaria tão forte em seu pontificado. “É um homem que não quer governar de cima para baixo, mas junto com bispos do mundo inteiro”, ressalta, lembrando também o caráter pastoral. “O papa diz que o povo também é iluminado pelo Espírito Santo e que o bispo, às vezes, também precisa ficar atrás para ver para onde está indo o povo”. ■

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