Edição 486 | 30 Mai 2016

Uma face obscura da moda: condições insalubres de trabalho ainda são realidade na confecção têxtil

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Leslie Chaves

Para Antônio Carlos de Mello Rosa, a chaga mais grave provocada pela escravidão contemporânea é o profundo ferimento à dignidade humana

Oficialmente a escravidão foi abolida no Brasil em 1888 com a assinatura da Lei Áurea, que decretou a ilegalidade dessa prática no país. Entretanto, apesar do passar dos anos e das mudanças na legislação, as marcas do regime escravocrata ainda persistem, seja nas desigualdades, seja na perpetuação de um modus operandi encontrado em diversos casos em que as relações trabalhistas configuram um tipo de escravidão contemporânea, a qual não é uma particularidade apenas brasileira, mas se repete em diversas partes do mundo. “Estudos calculam que há uma estimativa de aproximadamente 21 milhões de pessoas no mundo trabalhando em condições análogas à escravidão”, alerta Antônio Carlos de Mello Rosa.

Ao longo da entrevista, concedida por telefone à IHU On-Line, o oficial do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da Organização Internacional do Trabalho – OIT no Brasil fala sobre o contexto de exploração de mão de obra considerada escrava na área rural, mas principalmente em ambiente urbano, onde a indústria de confecção têxtil é um dos setores que apresenta grande incidência dessa situação. 

De acordo com Rosa, o modo de organização da cadeia produtiva do setor acaba favorecendo essa prática e dando origem a uma faceta triste de degradação e ofensa à dignidade, totalmente contrastante com a beleza do mundo da moda. “A base da ocorrência do trabalho escravo na indústria de confecção têxtil é a terceirização e quarteirização da atividade-fim, que é a produção de roupas. O que acontece é que as grandes marcas contratam intermediários, que são oficinas de porte médio, e essas organizações terceirizam seu trabalho contratando oficinas menores. Os preços pagos a essas pequenas oficinas são irrisórios”, explica.

Apesar desse cenário hostil, as medidas brasileiras para combater as condições de trabalho análogas à escravidão têm assumido grande relevância. “O Brasil é considerado, tanto pela OIT como pela comunidade internacional, um dos países que mais atuou e vem atuando no combate ao trabalho escravo, com a implementação de diversos tipos de iniciativas que têm sido exitosas nessa luta”, ressalta Rosa.         

Antônio Carlos de Mello Rosa é graduado em Administração e especializado em Relações Internacionais e Direitos Humanos. É oficial do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da Organização Internacional do Trabalho – OIT no Brasil.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que caracteriza contemporaneamente uma relação de trabalho análoga à escravidão? Há estimativas de quantas pessoas trabalham nessas condições no mundo?  Como é essa realidade no Brasil? Quando é reconhecida a existência dessa prática no país?

Antônio Carlos de Mello Rosa – A escravidão clássica se caracterizava pelo domínio completo, pela posse, de um ser humano por outro. Alguns seres humanos eram considerados mercadorias e eram mantidos prisioneiros com o uso de grilhões e correntes e sofriam maus tratos. A partir da assinatura da Lei Áurea no Brasil, a escravidão foi oficialmente extinta. No entanto, o modus operandi da escravidão ainda persiste nos dias de hoje e se caracteriza principalmente pela submissão a uma condição de degradação tal em que a dignidade da pessoa é ferida. Ainda é possível encontrar pessoas submetidas à escravidão contemporânea sob a ameaça de arma, ameaça física, em isolamento etc., mas essa situação não é tão comum. Para além da ameaça da integridade física e do cerceamento da liberdade, que não estão descartados nesse processo, o que caracteriza com mais exatidão a escravidão na contemporaneidade é o dano à dignidade humana. 

A Organização Internacional do Trabalho - OIT tem estudos que calculam que há uma estimativa de aproximadamente 21 milhões de pessoas no mundo trabalhando em condições análogas à escravidão, o que na OIT denominamos de “Trabalho Forçado”. O conceito de trabalho escravo foi estabelecido no Brasil. Os termos “trabalho escravo”, “trabalho análogo à escravidão” ou “escravidão contemporânea” são utilizados como sinônimos. No Brasil, especificamente, não há como estabelecer um número estimado de trabalhadores em situação análoga à escravidão, porque como essa prática configura crime, ela é realizada às margens do conhecimento e da lei, portanto não é possível mantermos estatísticas sobre isso. 

O reconhecimento da prática de trabalho análogo à de escravo no Brasil aconteceu em 1995, quando houve uma declaração do país assumindo a existência dessa condição laboral em território brasileiro. Desde então, o país vem lutando abertamente contra esse problema, tanto que, entre os países de todo o mundo, a OIT o considera uma das nações que mais enfrenta o trabalho escravo.


IHU On-Line - O trabalho escravo geralmente é mais associado ao espaço rural, porém muitos casos têm sido flagrados em ambiente urbano. Quais são as principais características do trabalho escravo urbano? Como é a realidade desse tipo de trabalho escravo no Brasil e qual é a situação do país em relação ao mundo?

Antônio Carlos de Mello Rosa – No Brasil o trabalho escravo historicamente vem sendo associado ao meio rural, porém a partir de 2013 se demarca um aumento muito intenso da incidência do trabalho escravo em meio urbano, principalmente na construção civil e na indústria de confecção têxtil. Naquele ano foi a primeira vez que a quantidade de trabalhadores resgatados pela fiscalização do trabalho de condições análogas à escravidão no meio urbano ultrapassou a incidência dessa situação no meio rural.

As características do trabalho escravo urbano são as mesmas do rural. No conceito brasileiro de trabalho escravo, que está contido no artigo nº 149 do Código Penal, há basicamente quatro itens que podem tipificar essa prática de trabalho: 

- Trabalho forçado: aquele em que a pessoa é forçada a trabalhar contra a própria vontade, por coação ou por fraude;

- Degradação: submissão da pessoa a condições degradantes de trabalho, de alojamento, de alimentação, acesso à água e uma série de privações que fazem com que a dignidade humana seja ferida;

- Jornada exaustiva: jornada tão longa a ponto de o trabalhador não ter condições de ter o descanso suficiente para no dia seguinte cumprir outra jornada, podendo até levar a doenças e à morte;

- Restrição de locomoção: restringir o direito de locomoção do trabalhador, tanto por dívida como por qualquer outro meio ou motivação, obrigando-o a manter-se no local de trabalho.

Essas são as características que aparecem tanto no trabalho escravo urbano quanto no rural. Porém, no trabalho escravo urbano, é mais incomum haver a privação de liberdade, embora aconteça principalmente no caso de imigrantes, quando a documentação deles é subtraída e é mantida uma vigilância sobre eles. Então, de uma maneira geral, o que caracteriza o trabalho escravo em ambiente urbano são as condições de degradação e as jornadas exaustivas.

A realidade dessa prática de trabalho no Brasil perpassa diversos setores econômicos. Os campeões históricos do trabalho escravo são os setores de pecuária, agricultura, extração florestal, incluindo também as carvoarias. Mas conforme eu já mencionei, aumentou muito a incidência de trabalho escravo no meio urbano, principalmente nos setores da confecção têxtil e da construção civil.

Em relação à situação do Brasil em comparação com outros países nessa questão, a OIT não tem como produzir um ranking sobre a incidência de trabalho escravo no mundo porque cada nação tem conceitos e critérios específicos para definir o que considera situação de trabalho análoga à escravidão. Desse modo, não é possível fazer qualquer tipo de comparação entre os países. O que eu reitero aqui é que o Brasil é considerado, tanto pela OIT como pela comunidade internacional, um dos países que mais atuou e vem atuando no combate ao trabalho escravo com a implementação de diversos tipos de iniciativas que têm sido exitosas nessa luta.

 

IHU On-Line - Especificamente sobre a questão do trabalho análogo à escravidão no setor de confecção têxtil, como é essa realidade no mundo e no Brasil? Qual é o perfil dos trabalhadores que estão nessa situação no país?

Antônio Carlos de Mello Rosa – Há muitos relatos sobre a incidência de trabalho escravo na confecção têxtil em diversos países, principalmente nos orientais, como China e Índia. No Brasil a ocorrência de trabalho escravo tem se concentrado, sobretudo, em pequenas oficinas que são contratadas por oficinas maiores intermediárias para fornecer vestuário às grandes marcas. Apesar de haver brasileiros nesse grupo, em geral os trabalhadores que estão nessa situação são imigrantes. Uma grande maioria é formada por bolivianos, mas também há peruanos e paraguaios, que vêm para o Brasil fugindo de uma situação precária em seus países de origem, ou chegam aqui como vítimas do tráfico de pessoas. 


IHU On-Line – O Brasil tem recebido muitos imigrantes mais recentemente. Essas pessoas acabam se tornando vulneráveis à prática do trabalho escravo no Brasil? Os migrantes internos (de dentro do país) também passam pelo mesmo problema?

Antônio Carlos de Mello Rosa – Na migração em busca de oportunidade de trabalho, tanto no caso dos brasileiros quanto no caso dos estrangeiros, estão envolvidas pessoas em situação de pobreza, que são oriundas de um contexto de falta de oportunidades de emprego e que têm pouca qualificação profissional. Ao migrar em busca dessa chance de colocação no mercado de trabalho, essas pessoas de fato acabam ficando em uma posição de fragilidade maior.

Na indústria de confecção têxtil, a incidência de imigrantes ainda é muito grande. Geralmente essas pessoas são enganadas, pois vêm para o Brasil com a promessa de ganhar mais dinheiro e ter acesso a uma vida melhor, mas chegam aqui já endividadas, uma vez que os proprietários das oficinas cobram as despesas pelo deslocamento. Os documentos desses imigrantes são subtraídos e como na maioria dos casos eles não têm acesso à informação, não sabem que podem fazer essa migração de maneira legal, sem intermediários e que podem regularizar sua situação no Brasil. 

Assim, por medo de estarem em situação ilegal no país, eles são facilmente submetidos à pressão da ameaça de denúncia, deportação, e acabam ficando à mercê dos donos dessas pequenas oficinas.

 

IHU On-Line – Em geral, como se organiza a cadeia produtiva do setor de confecção têxtil? De que modo esses mecanismos de funcionamento favorecem a prática de trabalho análogo à escravidão? 

Antônio Carlos de Mello Rosa – A base da ocorrência do trabalho escravo na indústria de confecção têxtil é a terceirização e quarteirização da atividade-fim, que é a produção de roupas. O que acontece é que as grandes marcas contratam intermediários, que são oficinas de porte médio, e essas organizações terceirizam seu trabalho contratando oficinas menores. Os preços pagos a essas pequenas oficinas são irrisórios. Então, muitas vezes temos um vestido sendo vendido por 400,00 ou 500,00 Reais por uma marca famosa e não fazemos a mínima ideia de que houve um processo de subcontratação e que aquela pequena oficina pagou ao seu trabalhador apenas 10,00 ou 15,00 Reais por peça costurada. 

O que acontece, então, é um processo de usos de intermediários até que se chegue à base da cadeia produtiva, que são as pequenas oficinas, as quais, para ter um lucro maior, submetem os trabalhadores à escravidão, pois aí conseguem fazer a produção da roupa 

a custos quase irrisórios, tendo um lucro maior. Como esses custos baixos refletem em toda a cadeia de produção, as grandes marcas acabam comprando as peças a esse custo mais reduzido, o que não seria possível se essas empresas obedecessem a toda normatização brasileira. É nesse ponto que salientamos que não cabe a alegação das grandes marcas que dizem desconhecer que as roupas adquiridas por elas foram produzidas a partir de mão de obra escrava, pois os valores são tão baixos que é óbvio que não poderiam acontecer se todas as normas trabalhistas fossem de fato cumpridas.          

 

IHU On-Line – Quais são os principais riscos a que estão expostos os trabalhadores em situação de trabalho análoga à escravidão na indústria de confecção têxtil?

Antônio Carlos de Mello Rosa – Esses trabalhadores ficam com a sua liberdade restringida, pois eles não saem, e, quando saem, não têm liberdade. Existe uma submissão psicológica com degradação da autoestima, má alimentação e jornadas exaustivas que prejudicam a saúde, uma vez que não é raro as pessoas nessa situação terem suas camas ao lado das máquinas onde costuram por longos períodos, e quando têm filhos também é comum cuidarem das crianças enquanto trabalham. Assim, há todo um processo de degradação que faz com que a saúde dessas pessoas fique debilitada de uma maneira geral.


IHU On-Line – Que medidas têm sido implementadas no Brasil para combater o trabalho escravo urbano, como o envolvido na indústria de confecção têxtil?

Antônio Carlos de Mello Rosa – A principal medida que tem sido implementada é a criação do Grupo Móvel, que é um grupo de fiscalização que atua no Brasil inteiro, tanto no espaço urbano quanto no rural. O Grupo Móvel é composto por uma força policial, que pode ser a Polícia Rodoviária Federal ou a Polícia Federal, e por auditores fiscais do Ministério Público do Trabalho. Desde 1995, as fiscalizações realizadas pelo grupo já libertaram mais de 50 pessoas do trabalho escravo.

Além da atuação do Grupo Móvel, também foi criada a “Lista Suja”, que é um cadastro de empregadores envolvidos com trabalho escravo. Quando o empresário é autuado por exploração de trabalho escravo, ele passa por processo administrativo, após o qual ele é inserido nesta lita. Os bancos, tanto privados quanto públicos, consultam a Lista Suja durante o processo de análise de crédito para a concessão de financiamentos para empresas. Ou seja, essa é uma ferramenta forte porque as organizações que são flagradas explorando trabalho escravo deixam de ter acesso a financiamento, e bem sabemos que sem esse crédito as empresas ficam fadadas ao fracasso.

Outra ferramenta muito importante foi a criação do Instituto do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo – InPacto, que congrega um conjunto de empresas sob a coordenação do Instituto Ethos, com a participação do Instituto Observatório Social e da OIT. O objetivo é reunir as empresas em um ambiente de discussão do combate à escravidão. 

Em âmbito mais localizado, uma iniciativa que tem funcionado muito bem é o trabalho que os governos do Estado e do município de São Paulo vêm empreendendo com o setor de confecção têxtil. Atualmente existe um relacionamento entre a área de fiscalização e o próprio setor de confecção têxtil na tentativa de estabelecer prioridades e atividades para fazer com que a cadeia produtiva seja regulamentada, principalmente no que diz respeito às pequenas oficinas, para que não exista o trabalho escravo.

Finalmente, um instrumento muito útil para o cumprimento das leis no Brasil vem sendo o de atingir o bolso dos empresários. Atualmente, quando uma empresa é flagrada explorando trabalho escravo, urbano ou rural, o Ministério do Trabalho tem proposto processos trabalhistas nos quais essas organizações são condenadas não só a pagar uma multa de dano civil individual a cada um dos trabalhadores afetados, mas também uma multa de dano civil coletiva, que tem sempre valores muito altos, chegando à casa dos milhões de Reais. Como dói no bolso, essa também tem sido uma medida bem efetiva no combate à escravidão.

 

IHU On-Line – O Projeto de Emenda Constitucional - PEC do Trabalho Escravo corre o risco de ser descaracterizado por iniciativas em tramitação que buscam flexibilizar o conceito de trabalho escravo e eliminar a “Lista suja”. De que modo você avalia essa questão? Que impactos a aprovação destas medidas pode trazer para o combate ao trabalho escravo no país?

Antônio Carlos de Mello Rosa – A Lista Suja estava suspensa desde o fim de 2014 por decisão do ministro Ricardo Lewandowski, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, com base em uma ação movida por uma associação de construtoras de imóveis. Esse cadastro de empregadores foi relançado em 13 de maio de 2016 por uma nova portaria com base na Lei de acesso à informação, que determina que qualquer tipo de ação pública deve ser democratizada e socializada. Então, com base nesta legislação foi reeditada uma nova portaria para a criação desse cadastro de empregadores com o mesmo objetivo do anterior. 

Por outro lado, temos a PEC da Expropriação, a qual determina a expropriação de terras ou imóveis de empregadores que exploram mão de obra escrava. O que ainda precisa acontecer é a regulamentação desta PEC e o que está sendo proposto neste âmbito é exatamente retirar do conceito de escravidão os itens degradação e jornada exaustiva. Se essa medida for concretizada, o que vai acontecer é que as forças de repressão não poderão mais fiscalizar o trabalho escravo nas condições de degradação e jornada exaustiva, que são as situações que caracterizam a maior parte dos casos de escravidão contemporânea no país. Realmente corremos o risco de sofrer essa retroação na luta contra o trabalho escravo. Há cerca de um mês, a OIT lançou um documento se posicionando a favor da manutenção do conceito vigente por considerá-lo adequado às normas internacionais do trabalho e uma concepção atual que representa uma evolução da legislação sobre trabalho escravo.■

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