Edição 485 | 16 Mai 2016

Uma educação para além da gestão ambiental

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João Vitor Santos

Genebaldo Freire Dias defende uma reorientação na ideia de Educação Ambiental como forma de superar o que chama de “falha de percepção” humana que leva o Planeta ao esgotamento

O doutor em Ecologia Genebaldo Freire Dias endossa o discurso de quem acredita que a forma de vida humana hoje é uma postura suicida. “Sem tempo para refletir, investe tudo em um materialismo-consumismo insaciável e se afunda em depressões existenciais crônicas e sistêmicas”, analisa. Para ele, a questão está centrada na “lógica de mercado que vê a natureza como um fornecedor de capacidade infinita e gratuita, e sem qualquer tradução em consequências desse usufruto ignorante”.

Dias acredita que a educação possa ser um caminho para superar o que chama de “falha de percepção” social hoje. Porém, alerta que até mesmo em disciplinas como a Educação Ambiental há a reprodução de um modelo que já se mostra falido, baseado na mesma lógica de mercado. “A prática da Educação Ambiental estacionou nos elementos de gestão ambiental. A maior parte do que se faz é ainda muito afastado do que seria necessário para se atingir a ampliação da percepção, módulo inicial das mudanças necessárias”, dispara, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E completa: “o primeiro desafio é promover essa disciplina conforme seus objetivos e princípios primais. Sem isso, o que se segue é burocracia, acomodação cartorial”.

Genebaldo Freire Dias é bacharel, mestre e doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília – UnB. Atualmente é consultor independente com atuação nas áreas de Educação e Gestão Ambiental. Possui 19 livros publicados sobre a temática ambiental, entre eles Mudança climática e você (São Paulo: Editora Gaia, 2014), Dinâmicas e Instrumentação para a Educação Ambiental (São Paulo: Gaia, 2010) e Educação Ambiental – princípios e práticas (São Paulo: Gaia, 2010).


Confira a entrevista.


IHU On-Line - Qual o papel da educação ambiental como forma de introduzir novas perspectivas sistêmicas para a humanidade? Quais os desafios para se pensar a educação ambiental de forma interdisciplinar?

Genebaldo Freire Dias - A prática da Educação Ambiental - EA estacionou nos elementos de gestão ambiental — lixo, coleta seletiva, reciclagem, economias (de água, energia elétrica e outros), poluições, mudança climática etc. —, confundindo-os com os processos verdadeiros da EA. Assim, o primeiro desafio é promover essa disciplina conforme seus objetivos e princípios primais. A maior parte do que se faz é ainda muito afastado do que seria necessário para se atingir a ampliação da percepção, módulo inicial das mudanças necessárias. Sem isso, o que se segue é burocracia, acomodação cartorial.

O formato interdisciplinar proposto desde Tbilisi (1977)  foi sufocado pela egolatria. Cada dono do pedaço de conhecimento viu a sua “propriedade” ameaçada no processo natural de diluição. O ser humano ainda não atingiu um estádio  evolutivo a ponto de ceder um pouco do seu domínio para espaços-manifestações mais altruístas. O que vem dando resultados palpáveis é a abordagem por meio de projetos multidisciplinares.


IHU On-Line - No que consiste sua ideia de ecopercepção? Em que medida dialoga com o conceito de Ecologia Integral  e com teorias como a da Trofobiose ?

Genebaldo Freire Dias - Antes de qualquer coisa, refuto o “sua ideia”. Isso não existe. Não temos “nossa” ideia. Não somos autores de coisa alguma. Isso é criação do ego humano. Somos apenas sensores, sintonizadores das vibrações que já existem e estão por aí.

Ecopercepção? Simples: perceber o ambiente (em sua totalidade). A sociedade humana vive uma falha de percepção. Assume um estilo de vida suicida e cria inúmeros mecanismos para não aceitar isso. Sem tempo para refletir, investe tudo em um materialismo-consumismo insaciável e se afunda em depressões existenciais crônicas e sistêmicas. Erode  seu conforto emocional em troca de coisas. E estas logo viram lixo.

O conceito dialoga com a Ecologia Integral pela sua natureza “trans-sistêmica”. Com os ideais de Francis Chaboussou ,  Trofobiose dialoga ao expor o intricado equilíbrio que desmontamos por um misto de analfabetismo ambiental, ignorância e imediatismo.


IHU On-Line - De que forma a gestão de conflitos pode ser pensada como forma de romper a lógica mercantil que se estabelece entre o ser humano e o planeta?

Genebaldo freire Dias - O que se possa imaginar de “pensamentos” para essa possibilidade de se romper com essa lógica mercantil vem sendo tentada desde 1972 (Estocolmo) . Já se escreveu tudo o que precisamos, já se formalizou em tratados, acordos, convenções e tudo o mais que se possa nomear em maneiras de abordar a temática-desafio. Porém, os indicadores de insustentabilidade do modelo vêm se tornando cada vez mais nítidos, diversos e abrangentes. Ou seja, a velocidade de formação de fatores de sustentabilidade está infinitamente inferior à fúria e avidez dos fatores que empurram a relação pessoas-planeta para faixas de conflitos.

Muito do que será feito para ajustar a nossa equação vai ocorrer por meio de gestão de conflitos. Pode parecer neoecocatastrofismo, niilismo puritano ou surto espasmódico de verborragia ambientalista, mas estamos nos aproximando muito rápido dos cenários de conflitos, principalmente por energia, água e proteínas, muitas vezes expressados nas obras de ficção. Infelizmente, o que a mídia despeja em nossas salas diariamente parece não deixar de corroborar tais assertivas.


IHU On-Line - Como a degradação ambiental pode ser mensurada no cotidiano, desde a questão econômica, até perspectivas políticas e sociais? 

Genebaldo Freire Dias - Pela perda contínua da qualidade da experiência humana empurrada para baixo pela perda da qualidade de vida. São indicadores irrefutáveis dessa relação apodrecida. Desemprego, ondas migratórias desesperadas, radicalismo étnico-político-religioso, epidemias de hipertensão, obesidade, diabetes, câncer, estresse, cardiopatias, depressão e suicídio. E tudo isso ainda em meio a um caldo de ocaso moral e ético com o flagelo da corrupção global, da poluição generalizada e do desmonte dos mecanismos que sustentam a vida orgânica (desmatamento, queimadas, incêndios florestais, destruição de nascentes, abatimento da biodiversidade e outros) por meio de processos ecossistêmicos históricos, indicam a nossa falha de percepção.

Com tal contexto, justifica-se a improficuidade do processo de Educação Ambiental (e de outros tantos que precisam se ajustar), se praticada nos moldes majoritários atuais com foco apenas em gestão ambiental. Prescinde o tom transcendente sem o qual nos perdemos, sem o qual não ecoperceberemos nossos cenários, desafios e ingratidões.


IHU On-Line - Que relação é possível traçar entre as formas de vida humana pós-industrial e o aquecimento global? Quais os impactos desse “homem pós-industrial” no campo?

Genebaldo Freire Dias - A relação é simples e direta. Cada ser humano sobre o planeta exerce uma pressão de demanda de recursos naturais (pegada ecológica) . Tal pressão vem aumentando com o tempo em função de padrões de produção, consumo e descarte cada vez mais impactantes, requerendo cada vez mais recursos naturais. A lógica de mercado que vê a natureza como um fornecedor de capacidade infinita e gratuita, e sem qualquer tradução em consequências desse usufruto ignorante, está nos levando para quadros impensáveis de desequilíbrios políticos, sociais, econômicos e morais, cuja amostragem já está disponível nos noticiários da TV todos os dias.

O cinismo e a maluquice da negação da contribuição humana ao aquecimento global denotam bem a iniquidade do processo calculado de impor uma peneira à luz do sol, de calar obviedades. O impacto no campo dessa desastrosa “escolha” de modo de vida é multifacetado. Vai desde o caos climático que frustra safras até o sucesso das pragas; vai da erosão e perda da fertilidade do solo ao desemprego, falência e abandono de terras areificadas; vai desde o sumiço das abelhas que brindavam a polinização à escravidão tecnológica dos transgênicos; do uso crescente de biocidas ao suicídio de agricultores e indução de cânceres na população rurícola... e por aí segue.


IHU On-Line - Como o senhor entende o conceito de antropoceno? De que forma as discussões acerca do antropoceno podem contribuir para o debate ecológico?

Genebaldo Freire Dias - Quando publicamos o nosso livro Antropoceno – iniciação à temática ambiental (São Paulo: Gaia, 2002), quase fui trucidado. Há uns cinco anos, o conceito foi capa do The Economist  e virou “cult”. Pura representação acadêmica dos egos. Tal conceito é mais antigo do que a estrada. Não tem donos.

Antropoceno é a era da transformação-alteração da Terra por meio da ação humana. Admite-se a presença humana como um fator inclusive geológico, capaz de impor mudanças perceptíveis no planeta. Parece óbvio. E é. Mas não para desenvolvimentistas autocentrados. Afinal, seria difícil explicar como 7 bilhões de pessoas derrubando florestas, consumindo combustíveis fósseis (jogando gás carbônico para a atmosfera como vem fazendo nos últimos 400 anos), poluindo rios, lagos e mares, matando 1 milhão de bois e 120 milhões de frangos diariamente, produzindo milhares de toneladas de lixo diariamente e emitindo metano para atmosfera, dizimando animais e destroçando a biodiversidade não pudessem interferir em nada nas dinâmicas do planeta.

Não é por falta de ferramentas teóricas e evidências objetivas que o discurso dito ecológico ainda não se assenta em muitas mesas de decisões políticas e econômicas. Ecossistemas não sentam nessas mesas, mas também não conseguem enganá-los.


IHU On-Line - Qual o papel da sociedade civil, como as cooperativas, e o poder público na promoção e efetivação de formas de vidas mais ecológicas desde o campo até a cidade?

Genebaldo Freire Dias - Tudo poderia começar com um processo educacional que revelasse às pessoas o fascínio da vida, o mistério de estar vivo, de pertencer a uma forma orgânica raríssima no universo, com possibilidades mínimas de sobrevivência em um universo gelado. A utopia passaria por aqui. Mas isso vai levar muito tempo porquanto a teia educacional está atrelada a enciclopedismos engavetados com conteúdos. Afastada dos valores humanos, e centrada na produção de consumidores úteis, a educação ainda precisará de muitas décadas de saltos evolutivos até que a percepção da maioria das pessoas possa identificar e valorizar o seu lugar de expressão física e biológica, a Terra. Levará tempo para esse resgate, inclusive espiritual e estético. Mas não há nada de errado se olhamos o contexto como etapas evolutivas. Apenas dá uma angústia danada quando se sabe que tudo poderia ser diferente, mais sereno, menos conflitante, e com mais leveza.


IHU On-Line - O que está por trás da lógica do agronegócio e como a perspectiva da agroecologia se contrapõe a essa forma de produção? Que relação se estabelece entre a sociedade e o planeta nas duas perspectivas?

Genebaldo Freire Dias - Não há nada “por trás” da lógica do agronegócio além do lucro. Todo negócio, seja qual for, tem o lucro como base primal, onipresente, absoluta. Todo negócio que explora recursos naturais o faz em formas exploratórias via custo/benefício (socializar os custos e privatizar os benefícios). O negócio “verde” ainda é cinicamente hipócrita. Revestido em belas embalagens de marketing, ainda representa menos de 5% de produções honestas. 

A agroecologia não se contrapõe. Ela pode somar, complementar redes de cooperação e influência via resultados de inovações. Enquanto a agroecologia for vista-percebida como uma “alternativa”, e não como forma evoluída de relação com os sistemas terrestres de sustentação da vida, reinará a visão do primo pobre, do colar “riponga” sobre a mesa dos negócios. Os avanços e os desafios da agroecologia hoje no Brasil são os mesmos de todo processo que favorece a promoção de saltos evolutivos na escalada humana.


IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Genebaldo Freire Dias - Temos inscrito em nosso patrimônio genético as informações para a sobrevivência. Temos sido bons nisso. Até agora. ■

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