Edição 485 | 16 Mai 2016

Quando o bolso enche e o espírito se esvazia

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João Vitor Santos | Tradução Moisés Sbardelotto

Alastair McIntosh trabalha na perspectiva da ecologia humana para entrelaçar os conceitos de ativismo espiritual com ambiental, uma forma de despertar a consciência para guiar mudanças

A conexão entre o espírito e o ambiente é fundamental para compreender o mundo e a relação com ele. Essa é a perspectiva de Alastair McIntosh, ativista, acadêmico e escritor escocês, que trabalha conceitos baseados na Teologia da Libertação. Para ele, “o ativismo espiritual tem a ver com trabalhar com conscientização — a ativação da consciência para guiar a mudança que esperamos no mundo”. Sem essa postura, acredita que o ativismo ambiental pode correr o risco de esvaziamento. “Temos observado que, se as pessoas não têm um fundamento espiritual para o seu ativismo pela mudança social, ambiental e até mesmo religiosa, então, na maioria das vezes, elas se ‘queimam’ ou se ‘vendem’”, completa.

McIntosh também destaca que quando, por exemplo, a questão econômica está desprendida dessa relação (espiritual/ambiental), se esvazia e passa a ser um fim em si e não um meio para a vida humana no planeta. “A questão espiritual, portanto, é perguntar que necessidade o consumismo está tentando preencher. Eu acho que ele está preenchendo um vazio dentro de nós mesmos, que não aprendemos a preencher de maneiras melhores”, analisa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o ativista aponta que “o problema com o capitalismo é quando o dinheiro por si só vem regular o mundo”. Para ele, o que deve mover é o sentido à vida. Assim, a ideia primeira é sempre se as ações que se executam promovem a vida ou a destruição. “A questão de economia, então, sempre deve ser: ela é conduzida dentro de um marco de sentido e de ética que dá vida?”, questiona.

Alastair McIntosh é ativista, acadêmico e escritor escocês que busca aplicar a Teologia da Libertação no seu trabalho de ativismo espiritual pela mudança social, ambiental e religiosa. Ao se anunciar como Quaker (nome dado a vários grupos religiosos, com origem comum em um movimento protestante britânico do século XVII), não assume formação teológica formal. Entretanto, é membro honorário da Faculdade de Teologia da Universidade de Edimburgo e professor visitante de Ciências Sociais na Universidade de Glasgow. É líder do movimento de reforma agrária da Escócia, conforme descrito em seu livro Soil and Soul: People versus Corporate Power (London: Aurum Press, 2001) (em tradução livre, Solo e alma: o povo contra o poder corporativo). Vive com a sua esposa em Govan, onde é diretor fundador da associação GalGael Trust, que trabalha com a pobreza urbana.


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como o senhor compreende a ecologia humana, desde a relação do ser humano com o ambiente social e com o ambiente natural?

Alastair McIntosh – Eu entendo a ecologia humana como a ecologia do ser humano. Falamos sobre a ecologia dos ratos, ou das girafas, ou dos cardumes de peixes no mar. O que queremos dizer com isso é a sua relação com o ambiente. Pois bem, é o mesmo para a ecologia humana. A relação entre o ambiente social e o ambiente natural.

Você pode perguntar se isso não é o mesmo que a geografia humana. Sempre, no uso de tais palavras, isso depende de como definimos nossos termos. Geografia, do grego geo, significa aquilo que tem a ver com a Terra. A raiz grega oikos é um pouco diferente. Ela significa “habitação” ou “casa”. Palavras como ecologia, economia, ecumênico e paroquial, portanto, têm todas a ver com a nossa relação com a casa, com o nosso ser incorporado no lugar. Esse sentido de lugar é cosmológico.

E, mais, eu diria que ele deve se integrar em um sentido exterior, geográfico e geológico, mas também em um sentido interior. Um sentido criativo, imaginativo e espiritual. Para mim, portanto, a ecologia humana engloba questões do sentido e da sustentação da vida. Ela pode nos ajudar a abordar a questão de qual é o sentido que dá sentido à vida. Para mim, portanto, a ecologia humana integra o estudo da espiritualidade e da teologia. Nem todo mundo concordaria com isso, porque, para alguns, a vida interior — aquela que eu estou chamando de vida espiritual — não tem qualquer sentido mais profundo. Bem, isso depende do nosso sistema de crenças e também da nossa experiência de vida. Algumas pessoas simplesmente não experimentaram isso ou podem estar fechadas para experimentar isso. Essa pode ser a sua escolha.


IHU On-Line – Em que medida o agronegócio representa uma relação baseada na lógica do consumismo/capitalismo entre o ser humano e o planeta? Como a agroecologia pode se apresentar como alternativa?

Alastair McIntosh – Essa é uma forma de relação entre o ser humano e o planeta, e, como uma forma de fazer economia, é uma maneira de organizar essa relação medida com a nossa casa. É isso que a palavra economia significa. A medição ou a métrica de como nós habitamos o nosso mundo. O problema com o capitalismo é quando o dinheiro por si só vem regular o mundo, na ausência de valores baseados naquilo que dá sentido. Especificamente, no sentido expressado pelo fato de perguntar o que dá vida. Esta sempre é a questão espiritual central na ética: isso dá vida?; e, se tomarmos os ensinamentos de Jesus, somos chamados a apreciar não apenas qualquer tipo de vida, mas a “vida abundante” (João 10, 10), a riqueza da plenitude da vida. Eu chamo isso de vida como amor tornado manifesto.

A questão de economia, então, sempre deve ser: ela é conduzida dentro de um marco de sentido e de ética que dá vida? O fluxo de capitais às vezes é e às vezes não é. Quando o capitalismo não tem qualquer restrição, ele tende à destruição da vida. Quando o consumismo é promovido para vender produtos, explorando as vulnerabilidades psicológicas dos consumidores, ele destrói o planeta, assim como a alma.

Mas não tem que ser assim. Uma economia que dá vida é aquela que alimenta as cinco mil pessoas [referindo-se ao relato evangélico] com base em princípios de justa relação entre as pessoas. E. F. Schumacher , que escreveu Small is Beautiful , falou sobre a justa relação como o princípio da economia budista. Eu acho que a maioria das tradições espirituais entende isso. Elas encorajam as pessoas a buscar a suficiência na produção econômica, a serem consumidoras, mas não a irem ao excesso, a serem consumistas. Platão  descreveu isso muito claramente no Livro 2 da República . Ele contou como as pessoas precisam viver com uma abundância modesta, em vez de um estado de “inflamação”, como ele a chamou, se quiserem viver em contentamento e em paz; e, no seu tempo livre, disse ele, elas irão cantar hinos aos deuses. Pois bem, os jovens da cidade riram dele, mas, como ele apontou, no seu tipo de economia exploradora, vemos as raízes da guerra.

 

Uma outra economia

Qual é a resposta? Para mim, a resposta é trazer as relações de volta para a nossa economia. É por isso que movimentos como o Fair Trade [Comércio Justo]  e a agricultura orgânica são tão importantes. Eles são formas de fazer negócios que buscam trazer as justas relações. É por isso também que eu não debocho da responsabilidade social corporativa (CSR). Sim, muitas vezes ela é uma greenwash [“maquiagem verde”], mas eu também a tenho visto ser muito mais do que isso.

Todos nós consumimos os produtos e os serviços de empresas, e é importante lembrar que pode haver pessoas nessas organizações que tentam não ter que abandonar seus valores na soleira da porta quando vão para o trabalho. Eu tenho trabalhado com o programa One Planet Leaders  da WWF  sobre isso e devo dizer que tenho ficado impressionado com algumas das iniciativas que vi e com as pessoas que conheci.


IHU On-Line – Qual a relação entre mudanças climáticas e espiritualidade? De que forma o pensamento teológico pode contribuir para a compreensão sistêmica da relação do ser humano com o planeta?

Alastair McIntosh – As mudanças climáticas são impulsionadas tanto pelos níveis populacionais, quanto pelo nível de consumo material. Neste momento, no mundo, é o consumismo — que eu defino como consumo em excesso daquilo que é necessário para a suficiência digna — que está guiando o impacto planetário por meio das emissões de CO2 e, portanto, causando as mudanças climáticas.

A questão espiritual, portanto, é perguntar que necessidade o consumismo está tentando preencher. Eu acho que ele está preenchendo um vazio dentro de nós mesmos, que não aprendemos a preencher de maneiras melhores. A vida espiritual é a melhor maneira. Aqui, o objetivo é preencher nosso vazio interior com o divino, com revelações do amor divino e de tudo o que flui a partir do amor.

 

Perspectiva de Francisco

O papa vem de uma tradição que, da melhor forma, entende essas coisas. Estou animado com o fato de que esse papa parece estar aberto e parece estar praticando a Teologia da Libertação . Eu defino a Teologia da Libertação como a teologia que liberta a própria teologia, de modo que ela possa dar vida. Embora eu não seja católico romano, admiro muito as pessoas dessa Igreja que estão ensinando o resto de nós a como fazer isso, e a Laudato si’ , assim como outros escritos desse papa e, especialmente, a Evangelii gaudium , estão ajudando muito nisso. Eles legitimam formas espirituais de pensar sobre questões como o capitalismo, em relação ao qual o papa é extremamente crítico. A minha esperança é de que ele vai começar, em breve, a pensar mais profundamente sobre a espiritualidade da violência e da não violência, porque isso está no coração de tudo.


IHU On-Line – No que consiste a perspectiva do ativismo espiritual e como pode se entrelaçar a ideia de ativismo ambiental?

Alastair McIntosh – Recentemente, com a ajuda de um ativista mais jovem, Matt Carmichael, eu escrevi um livro chamado Spiritual Activism [Ativismo espiritual] , que se baseia no meu livro anterior e mais conhecido, Soil and Soul, que é sobre a comunidade e a reforma agrária. Nós escrevemos sobre o ativismo espiritual, porque temos observado que, se as pessoas não têm um fundamento espiritual para o seu ativismo pela mudança social, ambiental e até mesmo religiosa, então, na maioria das vezes, elas se “queimam” ou se “vendem”.

 

O que é o espiritual?

O espiritual é a interioridade, ou a natureza interior, de todas as coisas. É o que dá sentido e interconecta. É o fluxo da própria força vital, e não estou me referindo à vida apenas no sentido biológico: estou me referindo à vida como uma qualidade da consciência, e, portanto, aquilo que o grande educador brasileiro Paulo Freire  chamou de “conscientização”.

O ativismo espiritual tem a ver com trabalhar com conscientização — a ativação da consciência para guiar a mudança que esperamos no mundo. Isso significa que temos de entender o que significa ser um ser humano. É entender o que Freire chamou de processo de humanização. E isso não apenas para os pobres, mas também para aqueles que são afligidos por serem ricos, porque, como Freire mostrou em sua profunda humanidade, os pobres são as únicas pessoas que podem libertar os ricos das desilusões da sua riqueza.

Quando Freire veio para a Escócia nos anos 1990, eu tive o privilégio — quando ele estava falando, e a sua garganta ficou seca — de ir buscar para ele um copo d’água. Eu nunca escrevi sobre isso antes. Mas, de certa forma, é isso que faz a conscientização do ativismo espiritual como uma aplicação da teologia da libertação. Ela nos molha quando as nossas gargantas secam. Ela nos capacita no nosso ativismo, não apenas para falar, mas também para fazer poesia e até mesmo para cantar um canto novo (Salmo 96, 1).


IHU On-Line – Como compreender a relação entre o ser humano e a terra? Em que medida o desequilíbrio nessa relação — a inabilidade de compreender essa relação — pode representar risco para todas as formas de vida do planeta?

Alastair McIntosh – Eu acho que a relação tem a ver com o desenrolar da vida consciente, mediante os processos de tempo dentro da eternidade. É sobre isso que estou escrevendo em meu próximo livro — Poacher’s Pilgrimage: an Island Journey [A peregrinação do caçador ilegal: uma jornada insular, em tradução livre]. Estou escrevendo sobre a questão do que somos por dentro. Estou chamando isso de “uma ecologia da imaginação”. Eu acho que a Terra e este universo inteiro são mantidos dentro da habilidade imaginativa de Deus; mantidos dentro do mythos cósmico como a inteligência imaginativa ou criativa, e expressados, manifestados através do logos cósmico ou inteligência organizativa. Nesse pensamento, eu recorro fortemente ao teólogo indiano-espanhol Raimon Pannikar .

Quando Panikkar veio para Glasgow no início dos anos 1990, para dar suas Gifford Lectures, agora publicadas no livro The Rhythm of Being  [O ritmo do ser, em tradução livre], foi uma xícara de chá que eu servi para ele. A sua conferência em Govan, em Glasgow, onde eu vivo agora, foi sobre o tema Agricultura, tecnocultura ou cultura humana?. No fim, eu fiz uma pergunta: “Panikkarji, você nos mostrou muito claramente o que está errado no mundo, mas como podemos endireitá-lo?”.

Ele respondeu: “Não cabe a mim lhe dizer como. Você deve trabalhar o ‘como’ por conta própria”.

Quando eu levei para ele a xícara de chá — bem, podemos imaginar como os indianos podem ser em relação ao açúcar... —, ele pegou uma colher de açúcar, depois duas, e três, e foi colocando a colher no açucareiro de novo, quando me perguntou: “Quanto açúcar...?”.

E eu respondi: “Panikkarji, não cabe a mim dizer quanto açúcar. Você deve resolver isso...!”.

Bem, aí você vê que está o desafio do consumo e do consumismo. De encontrar o equilíbrio da relação certa dentro de nós mesmos, com os outros e com todo o ecossistema, que inclui o seu contexto divino.


IHU On-Line – Como os princípios de Quaker , a ideia de não violência, por exemplo, podem ser associadas à relação do ser humano como o meio ambiente? Quando a produção de alimentos pode ser tomada como “ação de violência” para com a terra e demais formas de vida do planeta?

Alastair McIntosh – Eu acho que temos sido mal servidos pelas teologias — sejam elas cristãs ou não — que nos ensinam as religiões violentas de homens violentos de tempos violentos. Quando eu leio os quatro evangelhos, eu encontro Jesus praticando e ensinando profundamente não a teoria da guerra justa, mas plenamente a não violência.

Eu entendo a Cruz como a representação do poder do amor para absorver a violência do mundo, assumindo o sofrimento. No fim, esse amor nunca pode morrer. A Ressurreição é intrínseca a ele, porque esse amor vem de um lugar que impacta dentro do tempo, por meio da encarnação, mas está fora do espaço e do tempo.

No livro Poacher’s Pilgrimage , em que eu escrevo sobre isso, estou usando o termo “teoria da libertação da expiação” [liberation theory of the atonement]. Eu tomo isso do meu falecido amigo, o teólogo estadunidense Walter Wink . Para mim, uma teoria da libertação entende que nós só somos libertados da violência quando nos recusamos a jogar o seu jogo, quando nos recusamos a entrar no seu enquadramento da realidade. Como podemos fazer isso? Os santos e mártires mostram que apenas pelo poder de Deus podemos fazer isso. O arcebispo [Óscar Arnulfo] Romero  disse que isso significa assumir a violência do amor, mas não no sentido de ser violento, e sim de entender o caminho da Cruz como um caminho que absorve essa violência e a transforma em amor.

Essa é a grande tarefa teológica e espiritual do terceiro milênio do cristianismo, e uma tarefa na qual devemos trabalhar junto com todas as outras fés que se baseiam na busca de entender e de se apaixonar pelo Deus que é amor.


IHU On-Line – Por que é importante abordar o tema da reforma agrária ao tratar das questões ambientais?

Alastair McIntosh – Porque a terra é a própria base do ecos (latim) ou oikos (grego) de que eu tenho falado. É por isso que o meu trabalho tem sido tão profundamente influenciado pelos teólogos da libertação latino-americanos — por Gustavo Gutiérrez , Leonardo Boff , Dom Helder Câmara  e todos os outros — e pelos invisíveis povos camponeses da terra — que eram a sua inspiração. Em Soil and Soul, mostrei como alguns de nós aplicaram as suas ideias na Escócia, e isso faz parte do motivo pelo qual agora a reforma agrária está acontecendo aqui.

A terra é a base da providência de Deus, e a palavra “providência” significa providenciar, prover. É o dom da bênção, da suficiência pela suficiência abençoada. A terra, propriamente entendida, nos religa à nossa natureza divina. Ela ajuda a nos tornarmos, como disse o apóstolo Pedro, “participantes da natureza divina” (2Pedro 1, 4).


IHU On-Line – Quais os desafios da humanidade para produzir alimentos numa integração sistêmica com o planeta?

Alastair McIntosh – “O pão nosso de cada dia nos dai hoje... venha a nós o Vosso Reino... assim na Terra como no Céu” (Mateus 6, 9-13).


IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Alastair McIntosh – É suficiente dizer: amém. Mas, lembre-se, embora eu tenha dito essas coisas dentro da compreensão da fé cristã, o próprio Cristo disse: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste rebanho” (João 10, 16). Devemos resistir à tentação de tornar o nosso Cristo muito pequeno. Nós vivemos em uma era global com uma exposição às mais diferentes fés pelas quais os seres humanos tentam entender a realidade divina, incluindo as fés indígenas. Somos chamados, creio eu, a honrar todos os caminhos para a Verdade que se baseiam no amor tornado manifesto.■

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