Edição 483 | 18 Abril 2016

O holocausto dos animais

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João Vitor Santos | Fotos: João Vitor Santos/IHU

Encíclica Laudato Si’ é debatida e tensionada desde a perspectiva da ética e direito dos animais
Gilmar Zampieri

As contribuições da Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, voltaram à mesa de debates dentro do Ciclo de atividades. O cuidado de nossa Casa Comum, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, nesta quarta-feira (13-04). O objetivo dos professores Lucas Henrique da Luz e Laércio Pilz, da Unisinos, e Gilmar Zampieri, da Unilasalle, foi analisar o documento apostólico como forma de provocar um pensamento sobre o enfrentamento da crise ambiental. Lucas abre o debate recuperando a metodologia de Francisco ao destacar a necessidade do cuidado com “a casa comum”, a partir da ideia de que, na mesma medida em que se fala em desenvolvimento tecnológico, há a deterioração do planeta pelo homem. Zampieri vem na sequência, provocando e tensionando o documento. “É um documento amplo para se pensar a questão ambiental. Entretanto, ainda incorre numa perspectiva antropocêntrica quando não trata da questão da ética e direito dos animais”, destaca, ao classificar a realidade dos animais como vítimas de cinco tipos de campos de concentração, numa analogia ao holocausto.

Lucas (foto ao lado) lembra que a Encíclica abre com um primeiro capítulo contextualizando a realidade do planeta, numa crítica à ideia da modernidade, em que coloca o ser humano como senhor da natureza. “Vivemos um momento específico de transição, não é simplesmente uma ideia de evolução. Precisamos pensar o uso que fazemos da nossa casa comum, que não está a serviço do consumo e da produção”, pontua. Lucas ainda destaca que o Papa vai fundo na crítica ao modelo econômico e lembra que é preciso mudar essa perspectiva “para de fato haver uma mudança na questão ambiental”. É um movimento de crítica ao antropocentrismo que o documento faz. Zampieri compactua com essa crítica, mas provoca: “não abordar a perspectiva da ética e direito dos animais nesse primeiro capítulo incorre num erro que se desenvolve ao longo do texto: não vai fundo na dramática relação entre ser humano e animais”.

 

Zampieri assinala três ou quatro passagens em que Francisco fala “nos animais” na Encíclica. “Mas há sempre uma ênfase aos animais silvestres, como parte da natureza. Isso é importante, mas há algo mais. Os animais não podem ser vistos como parte da natureza, no sentido de paisagem. São diferentes de árvores ou rochas, estão entre o humano e a natureza”, analisa. É aí que entra a reflexão do professor sobre essa relação a partir da analogia com os campos de concentração. “O que fazemos com os animais hoje é um verdadeiro holocausto. E, na nossa relação com eles, promovemos esse holocausto em cinco campos de concentração específicos”.

 

Os cenários do holocausto

O primeiro campo de concentração da relação entre ser humano e animais, na visão de Zampieri (na foto ao lado), se dá no convívio com animais domésticos. “Nas nossas casas cuidamos dos nossos animais, cachorros e gatos, mas pensamos que estes resumem todas as formas de vida animal”, complexifica, ao problematizar a ideia: “amo meu cachorro, assim, amo todos os animais”. “E mais: os animais não precisam ser amados. Ninguém ama uma lesma ou uma cobra. Eles precisam ser respeitados”. Além disso, o professor lembra que quando temos um animal doméstico estamos lhe privando da vida em grupo, com seus pares da mesma espécie. “E o temos como forma de conforto para nós. Brincamos, cuidamos e damos atenção, mas é só por alguns momentos do dia. No resto do tempo, ele fica de canto, sozinho”.

O segundo campo de concentração se dá na relação de animais como formas de entretenimento humano. É, para o professor, mais uma forma de ver os animais como coisa, objeto para um determinado uso. “São os rodeios, vaquejadas, rinhas de galo, animais em zoológicos. Enfim, são relações de prazer com animais em que ignoramos que há sofrimento, morte, tortura e estresse”, destaca.

Ter o animal como fonte para fornecer artigos para indumentária humana é, segundo Zampieri, mais uma materialização da realidade de campo de concentração. “É quando os animais são criados para serem mortos e, por exemplo, fornecer materiais para vestirmos, usarmos como um acessório ou utensílio como relógio, cinto, uma roupa...”, explica.

Quando o ser humano usa cosméticos, produtos de limpeza e mesmo qualquer elemento vindo da indústria química, não imagina que ali está o quarto campo de concentração. “São os animais de laboratório, usados para ensino ou mesmo pesquisa de produtos. Não são apenas ratos, são vários animais torturados e submetidos a testes de irritabilidade e toxidade de produtos. Embora já existam leis e práticas que contestem, esses usos ainda são comuns”, explica Zampieri.

 

O mais terrível deles

Para o professor Gilmar Zampieri, o mais dramático dos cenários de holocausto da relação homem X bicho é na perspectiva da alimentação. “É aí que a coisa fica grandiosa, até em termos numéricos. Matamos 60 bilhões de animais por ano. São sete milhões por hora”. A produção de comida animalizada hoje, explica ele, dentro da lógica industrial do capitalismo, provoca imenso sofrimento aos bichos. “Veja ao que o gado é submetido na indústria da carne. Olhe para a complexidade que é um bovino na escala evolutiva, algo que criamos só para matar, acelerando seu crescimento. Um frango, na natureza, por exemplo, pode durar até sete anos. Nós criamos e matamos em 39 dias”, argumenta.

Zampieri lembra ainda que 70% das áreas agricultáveis são usadas para produzir alimento para animais que serão mortos. “Usamos os grãos para alimentar bichos para gerar proteína, quando poderíamos buscar isso na própria agricultura”. Por fim, destaca que essa perspectiva dos animais quase nunca é confrontada como problema. “Essa é minha provocação com relação a toda a questão ambiental e que aparece na Encíclica: não nos confrontamos com o problema que é nossa relação com os animais, que é aquela ‘do outro’, para além de nós e que está entre o humano e a natureza”.

 

Provocações e inquietações

A fala do professor Laércio Pilz (foto ao lado) confere sentido à perspectiva de Zampieri. O professor da Unilasalle provoca inquietações que são percebidas por Pilz. “E é isso que se faz na Universidade e fora dela. A Encíclica traz questões e podemos, a partir dela, propor novas tensões que nos desacomodem e inquietem”. O que o professor Pilz deixa claro, depois da fala de Zampieri, é que a questão não é passar a ser vegano ou vegetariano, mas sim ter um pensamento ecológico que leve em conta essa problematização. É esse o espírito que apreende da Encíclica. “O documento nos desperta para pensar no ‘eco-lógico’, de forma ampla e interdisciplinar. É como as falas que me antecederam: provocam, perturbam; e tem que ser assim. Muito mais do que respostas e formas prontas, temos que sair daqui com essas inquietações”, pontua Pilz.

 

Gilmar Zampieri, frade capuchinho, graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Pelotas e em Teologia pela Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana - Estef, com mestrado nas duas áreas na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre - PUCRS. É professor de Ética e Direitos Humanos no Centro Universitário La Salle de Canoas e de Teologia Fundamental na Estef.

Lucas Henrique da Luz é mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, graduado em Administração de Empresas - Hab. Recursos Humanos pela mesma universidade e com especialização em Elaboração e Avaliação de Projetos Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é coordenador do Curso de Administração da Unisinos, professor nesse curso e na Graduação Tecnológica em Gestão de Recursos Humanos.

Laércio Pilz possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - FAFIMC, mestrado e doutorado em Educação Básica, ambos pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Atualmente é professor titular da Unisinos e coordenador da formação humanística (humanismo social cristão - HSC) na mesma universidade.

A reportagem foi publica nas Notícias do Dia, de 14-04-2016, nos sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU■

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