Edição 482 | 04 Abril 2016

A Rússia Movimenta mais uma Peça

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Gabriel Adam

“Nos últimos meses Moscou procurou dar as cartas no conflito sírio, o que tem lhe concedido um protagonismo no Oriente Médio inimaginável uma década atrás. As manobras estratégicas russas neste jogo de grandes potências são tanto bem planejadas quanto surpreendentes. A última cartada inesperada foi a retirada de suas tropas da Síria, anunciada em 14 de março de 2016”, escreve Gabriel Adam.

 

Gabriel Adam é formado em Ciências Jurídicas e Sociais, possui mestrado em Relações Internacionais e doutorado em Ciência Política. É professor dos cursos de Relações Internacionais e Direito na Unisinos.

Eis o artigo.

O retorno da Federação Russa como participante de peso no sistema internacional era o principal objetivo em termos de política externa de Vladimir Putin desde que assumiu seu primeiro mandato como Presidente do país, no ano 2000. Ao longo destes 16 anos, nos quais Putin atuou 12 deles como Presidente (2000 a 2008 e desde 2012) e quatro no cargo de Primeiro-Ministro (2008 a 2012), sempre com Sergei Lavrov como seu ministro das Relações Exteriores, tal meta vem sendo alcançada de forma paulatina e constante. A crescente assertividade de Moscou na política internacional pode ser verificada em duas crises internacionais, a ucraniana, fomentada a partir de um golpe de Estado ocorrido em 2014 e, especialmente, a guerra civil síria, cuja origem pode ser largamente debitada no interesse de Washington de derrubar o governo de Bashar Al-Assad por questões de cunho geopolítico (ainda que Assad seja um ditador, o discurso pró-democracia das potências ocidentais é cortina de fumaça ocidental para justificar seus atos de hegemonia). 

A defesa russa do regime sírio contra uma intervenção externa ocorre desde 2011 e se pautou na maior parte do tempo por uma postura reativa às ações da tríade Washington-Paris-Londres. Contudo, nos últimos meses Moscou tentou dar as cartas no conflito sírio, concedendo um protagonismo no Oriente Médio inimaginável uma década atrás. As manobras estratégicas russas neste jogo de grandes potências são tanto bem planejadas quanto surpreendentes. A última cartada inesperada foi a retirada de suas tropas da Síria, anunciada em 14 de março de 2016. Para compreender o inesperado gesto do Governo Putin, é necessário antes verificar as razões que levaram os russos a intervirem militarmente em tal conflito. 

Os interesses russos na manutenção de Al-Assad no poder possuem conotações geopolíticas, econômicas e históricas. A presença russa no Oriente Médio remonta ao Império Russo e à disputa com o Império Britânico por influência na antiga Pérsia e na Ásia Central. Após o final da URSS o papel russo na região diminuiu, sendo convicção do Governo Putin a necessidade de retomá-lo. Especificamente no tocante à Síria, a ligação entre os governos da família Assad e de Moscou remonta à Guerra Fria e tem se mantido sólida desde então. Do ponto de vista econômico, a Síria não é exportadora de gás natural ou petróleo, mas possui costa no Mediterrâneo, o que a torna potencial rota de exportação destes recursos para a Europa. Em termos de segurança, a Rússia possui em território sírio duas bases navais (Tartus e Latakia), as quais cairiam nas mãos da OTAN caso um regime pró-Ocidente venha a assumir o governo da Síria. Por fim, a estabilidade do Oriente Médio é de interesse da Rússia, pois ela faz fronteira com a região e detém significativo contingente de muçulmanos em sua população. 

Às razões que impulsionam os atos russos a apoiar o regime de Bashar Al-Assad se somou o surgimento do Estado Islâmico e seu avanço sobre o território sírio desde 2014. As seguidas conquistas territoriais do grupo serviram de justificativa para uma intervenção militar unilateral por parte dos Estados Unidos e seus aliados. Todavia, tais incursões se mostraram ineficazes e invariavelmente atingiam alvos do governo sírio. Diante do novo quadro, segundo Moscou, o Presidente Bashar Al-Assad solicitou apoio militar direto. Assim, em 30 de setembro de 2015, de forma relativamente inesperada, a força aérea russa começou suas investidas contra o Estado Islâmico. Segundo dados russos, até 14 de março de 2016 foram mais de 9.000 ataques aéreos numa área de mais de 1.500 km. Entre os alvos atingidos com sucesso estavam estruturas ilegais de transporte e refino de petróleo (cuja venda no mercado negro financia o grupo extremista). 

Com esta ofensiva, o Estado islâmico foi obrigado a liberar 400 áreas com população síria e perdeu mais de 10.000 km de território (SPUTNIK NEWS, 2016). Em meio à campanha militar, um cessar-fogo foi negociado por Moscou e Washington e teve início em 26 de fevereiro de 2016. A conjunção destes fatores levou Putin a declarar que por hora o “trabalho estava feito”, justificativa oficial para a retirada de grande parte das forças russas da Síria. Na medida em que o Estado Islâmico não foi inteiramente derrotado no país e que a guerra civil ainda está em curso, vale indagar acerca dos motivos por trás da ação russa.

Em primeiro lugar, o fato de ter agido na Síria por demanda oficial do mandatário do país confere legitimidade à intervenção russa, assim como sua saída aparentemente negociada entre Moscou e Damasco fortalece o respeito aos primados do direito internacional público. Assim agindo, a Rússia projeta perante a opinião pública mundial e os países do Oriente Médio a imagem de uma potência que respeita a soberania alheia. Com isto ela procura se diferenciar das potências ocidentais, que historicamente agem de modo unilateral e impositivo na região. Logo, a Rússia seria uma potência confiável, pois ao solicitar sua ajuda, em tese, um Estado não estaria atraindo uma intervenção permanente em seu território. Ademais, ao apoiar Damasco, Moscou confirma lealdade a um país aliado, mas sem que isto represente a subjugação plena do mesmo. Ainda no campo do direito internacional, a posição russa de que a guerra civil síria deve ser resolvida fundamentalmente por negociação entre os grupos sírios, ainda que com mediação de terceiros, é reforçada com a sua saída, pois se há um cessar-fogo em curso e a ameaça vinda do principal inimigo externo (o Estado Islâmico) foi severamente diminuída, estaria aberta a via da resolução interna do conflito. Neste quadro, uma intervenção externa direta poderia atrapalhar o processo, além de ser vista como uma ingerência indevida na soberania síria. 

Claro que há a perspectiva de um cenário de agravamento da crise, recrudescimento do Estado Islâmico e novas investidas ocidentais. Para o caso de ter que enfrentar tal conjuntura, Moscou manteve duas bases aéreas no território sírio. Saindo do campo jurídico e ingressando no aspecto militar, a Rússia demonstrou aos países do Oriente Médio e às potências ocidentais que já reúne capacidade de intervir na região, o que a torna um ator a ser considerado no complexo jogo que lá se desenvolve. Por fim, ao planejar e negociar o fim da sua ação armada na Síria, Moscou indica que não é dada a se meter em intervenções custosas e sem fim que se tornam verdadeiros atoleiros, como os Estados Unidos costumam fazer desde o Vietnã. 

Expediente

Coordenador do curso: Prof. MS. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme

Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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