Edição 481 | 21 Março 2016

A audácia ou a tumba? Um dilema latino-americano

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João Vitor Santos | Tradução Henrique Dênis Lucas

Alejandro Mantilla analisa o que chama de fim de ciclo de governos progressistas. Para ele, o estágio em que estão é fruto da pouca audácia em enfrentar velhos modelos

Partidos mais alinhados com as ideias socialistas chegaram ao poder nas duas últimas décadas em vários países da América Latina, mas agora patinam em crises. Para o articulista colombiano Alejandro Mantilla, a equação é muito simples: ou se encaram os desafios rompendo com paradigmas ou se aceita a velha lógica e a iminência de cair por terra. “Ausência de audácia implica em cavar a própria tumba”, sentencia. Ele explica: “Os governos audazes, que pretendem realizar grandes transformações, se deparam com o risco de tomar medidas impopulares que reduzam suas governabilidades, ou a assumir medidas econômicas que possam gerar inflação ou redução do crescimento”. Entretanto, não é o que parece acontecer entre os latinos. “Outra possibilidade acaba sendo atrativa: manter a governabilidade gerando estabilidade econômica suportada por medidas neoliberais e extrativistas, acompanhadas de programas sociais que ajudem a superar a pobreza, mas sem redistribuir a riqueza”, completa.

Assim, ao invés de assumir as bandeiras das transformações, os governos têm se associado ao ideário burguês. O problema é que quando faltam recursos para programas sociais, o Estado “não pode” tocar no quinhão das camadas mais altas. Levados a promover ajustes fiscais, miram nos programas sociais. “Assim você fica, como dizem na Colômbia, ‘sem o pão e sem o queijo’: sem câmbios de fundos e com problemas econômicos profundos”, completa o entrevistado.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Alejandro também reflete sobre o que implica a virada de mesa, assumindo a postura audaz. “A resposta óbvia seria propor uma economia produtiva e redistributiva, que regule o capital financeiro, limite os mercados, gere tributação alta para os grandes capitais e desenvolva programas de fomento à produção nacional sustentados no Estado”. Entretanto, reconhece que a virada não é fácil: “por um lado, porque ao viver em uma economia globalizada no meio da turbulência mundial, as receitas econômicas de mudança enfrentam a desestabilidade econômica como dado objetivo. Em segundo lugar, porque a crise ecológica contemporânea exige o abandono do paradigma dos velhos modelos industriais que afirmaram a proposta keynesiana do pleno emprego fordista”.

Alejandro Mantilla é articulista dos portais Colombia Informa e Palabras al Margen. Também é membro do Comité Executivo do Poder y Unidad Popular – PUP, organização que faz parte do Polo Democrático Alternativo e dos Congressos dos Povos.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line - Os governos progressistas da América Latina chegaram ao final de um ciclo? Qual? Por quê?

Alejandro Mantilla - O fim de um ciclo pode ser compreendido como a conclusão de um período histórico marcado pela ascensão de forças políticas alternativas ao governo em diversos países da América Latina. Essas forças políticas representaram tais alternativas em três sentidos: 1) frente às oligarquias nacionais tradicionais; 2) frente aos programas de governo neoliberais; e 3) frente ao imperialismo norte-americano.

Considero que a tese do “final de ciclo” deva ser descrita em dois aspectos. Por um lado, o fim de ciclo deve ser atribuído principalmente aos governos alternativos, não sendo claro que se possa dizer o mesmo ante o conjunto de esquerdas e os movimentos sociais do continente. Por outro lado, é prematuro fazer prognósticos sobre a duração desta etapa de retrocesso, pois até agora parece que estamos diante de um período transitório.

Dentro dos processos que permitem compreender o final de ciclo se incluem:

Dificuldades econômicas motivadas pela crise das commodities nas economias dependentes do extrativismo, aprofundadas pela desaceleração da economia da China.

Derrotas eleitorais derivadas da conjunção de erros estratégicos, ofensivas midiáticas da direita continental e sabotagem econômica imperialista.

Ocorrência prévia de “golpes de estado institucionais” em Honduras e Paraguai, que começaram a debilitar o bloco regional alternativo.

Dificuldades de liderança política na Venezuela e escândalos de corrupção graves no Brasil.

Obstáculos para a renovação política frente à acentuação do presidencialismo.

Há uma tendência a privilegiar as construções políticas que colocam o Estado acima da estrutura, que por si só já é construída privilegiando o topo da cadeia, incluindo os movimentos sociais e organizações populares (exceto a rica experiência das colunas venezuelanas). 

Continuidade de políticas neoliberais e extrativistas que limitam as possibilidades dos processos de câmbio.

Em alguns casos, evidencia-se um distanciamento entre os movimentos sociais históricos e os governos alternativos.

Pouca audácia na busca por reconfiguração da entidade do estado capitalista.

Reagrupamentos da oposição de direita e divisão das esquerdas em setores. 

Um estranho paradoxo. Os governos do Equador, Nicarágua e Bolívia têm sido curiosamente conservadores no que diz respeito a assuntos como os direitos das mulheres, dos jovens e a diversidade sexual.

 

IHU On-Line - Como construir um debate que mobilize a mudança de época, imposta pelos limites do atual ciclo?

Alejandro Mantilla - Este momento histórico é propício para impulsionar um debate sobre a perspectiva das esquerdas na América Latina. Esse debate pode ter as seguintes coordenadas:

A relação entre os governos alternativos e os movimentos populares.

O questionamento sobre quais são as medidas de transição a uma economia que supere o neoliberalismo e não seja dependente da renda extrativista.

O questionamento sobre quais são as políticas que podem ir além da redução da pobreza, visando à redistribuição da riqueza.

A formação de políticas ecossocialistas orientadas à consolidação do que é comum a todos, à proteção do ambiente e do território e uma nova economia, que evite a depredação dos ecossistemas.

A questão da transição ao socialismo e a temporalidade das mudanças sociais.

As possíveis mudanças do modelo político que gerem instituições centradas no coletivo, que superem o caudilhismo e o presidencialismo.

O questionamento pelas coordenadas da transformação do Estado para os processos de mudança social e democratização política.

Os caminhos para gerar uma reforma moral e intelectual que instaure novas crenças, valores e uma nova afetividade política que contribua para forjar novas relações sociais que derrotem os poderes do capitalismo.

 

IHU On-Line - Como compreender o que está por trás das dificuldades desses governos ditos progressistas nas experiências de Venezuela e Brasil?

Alejandro Mantilla - Acredito que as experiências sejam muito diferentes e prefiro evitar comparações. Na Venezuela, a ausência da liderança de Hugo Chávez gerou um vazio difícil de ser preenchido. Tal situação, agregada à queda dos preços do petróleo, desembocou no pior cenário para qualquer governante: desestabilidade econômica somada a profundas dificuldades para conseguir coesão política. Não obstante, soma-se a isso o avanço da direita, apoiada pelos poderes imperialistas globais e pela direita continental.

No Brasil, os escândalos de corrupção deixaram a liderança moral do PT muito debilitada e colocaram o governo de Dilma Rousseff em uma profunda crise de governabilidade. O correlativo fortalecimento de uma oposição ultraconservadora no parlamento e a pouca habilidade do governo para responder aos problemas sociais (que se expressaram com a onda de protestos antes e durante a copa do mundo) geraram um distanciamento do PT frente a setores das classes médias e classe trabalhadora, deixando campo livre para o avanço da direita local.

 

IHU On-Line - A partir da experiência argentina, nas eleições de Mauricio Macri, como compreender essa retomada da direita nos governos de países da América Latina? Que direita é essa?

Alejandro Mantilla - Macri representa o mais claro retorno à normalidade neoliberal que os governos alternativos tentaram deslocar. Como mencionei antes, os governos progressistas buscaram ser alternativa diante das oligarquias tradicionais, os programas neoliberais e o imperialismo dos Estados Unidos; Macri representa esses três fatores de poder.

Na Argentina, o questionamento principal está relacionado com as capacidades da esquerda (em especial o Peronismo  Kirchnerista  e os setores da esquerda autonomista e trotskista) de exercer uma oposição forte, de vocação ao poder, e com capacidade de coordenação unitária para enfrentar o governo de Macri, situação complicada diante da divisão do peronismo e da distância entre os trotskistas e os kirchneristas.


IHU On-Line - O que está por trás desta guinada direitista dos governos de esquerda, como no caso do Uruguai, em que Tabaré Vasquez suaviza os ideais da Frente Ampla, e do Brasil, em que Dilma Rousseff cede a interesses neoliberais?

Alejandro Mantilla - Em outro texto, formulei a distinção entre “a audácia e a tumba”, dilema que os esforços emancipatórios deverão enfrentar diante do governo na atualidade. Os governos audazes, que pretendem realizar grandes transformações, se deparam com o risco de tomar medidas impopulares que reduzam suas governabilidades, ou a assumir medidas econômicas que possam gerar inflação ou redução do crescimento. A outra possibilidade acaba sendo atrativa: manter a governabilidade gerando estabilidade econômica suportada por medidas neoliberais e extrativistas, acompanhadas de programas sociais que ajudem a superar a pobreza, mas sem redistribuir a riqueza. Esta parece ser a fórmula de Uruguai e Brasil.

O problema que reside no dilema mencionado é que a ausência de audácia também implica em cavar a própria tumba, pois em um contexto global marcado pela crise, a estabilidade econômica capitalista é um presente de curta duração. Assim você fica, como dizem na Colômbia, “sem o pão e sem o queijo”: sem câmbios de fundos e com problemas econômicos profundos.


IHU On-Line - Qual a questão que paira como pano de fundo no descontentamento de movimentos sociais com os governos autodenominados progressistas? Por que o grito das ruas não ecoa em governos que se dizem defensores de políticas horizontais?

Alejandro Mantilla - Talvez as respostas anteriores iluminem esta questão, reiterando: 1) Parece que certas lideranças, baseadas em uma pessoa apenas, são compreendidas como imprescindíveis nos processos de mudança. Tal situação se opõe à organicidade política dos processos coletivos próprios dos movimentos sociais contemporâneos. 2) O compromisso com o extrativismo e as alianças com os capitais chineses têm gerado conflitos territoriais entre os governos e os movimentos sociais defensores do território, em especial ambientalistas, indígenas e agricultores. 3) O conservadorismo moral gera profundas distâncias com os movimentos feministas e de diversidade sexual.


IHU On-Line - O que as políticas econômicas revelam sobre o modelo de desenvolvimento, o neodesenvolvimentismo, adotado pelos “progressistas” latino-americanos? Como compreender os limites desse modelo?

Alejandro Mantilla - A política da maioria dos governos progressistas buscou medidas de mudança com estabilidade econômica; creio que isso explica esse “neodesenvolvimentismo” (termo que não sei se descreve corretamente os governos progressistas).

Os limites desse modelo podem ser constatados com a realidade da crise econômica e ambiental: é uma receita centrada no extrativismo que gera dependência de produtos de preços flutuantes no mercado internacional e que intensifica os problemas ambientais e territoriais para os povos.


IHU On-Line - Quais as conquistas mais simbólicas dos governos de esquerda na América Latina nos últimos 16 anos?

Alejandro Mantilla - Os governos de esquerda alcançaram importantes conquistas. Derrotaram as oligarquias tradicionais em diversos países, limitaram a influência dos Estados Unidos na região, impulsionaram novos cenários de integração no sul e promoveram programas sociais que reduziram a pobreza. Essas conquistas não podem ser tiradas deles.


IHU On-Line - Como compreender movimentos feitos pelos latino-americanos de substituição do imperialismo norte-americano por uma espécie de imperialismo à moda chinesa?

Alejandro Mantilla - Há dois fatores em jogo. Em primeiro lugar, a China expandiu sua esfera de influência em boa parte do planeta e a América Latina é parte deste processo de expansão. Tal influência também se apresenta nos governos neoliberais do continente, e, como bom exemplo, temos o crescimento do investimento chinês na Colômbia. Por outro lado, creio que os acordos financeiros com a China permitiram que vários governos progressistas contassem com novos recursos sem ter que pedir socorro aos empréstimos de instituições multilaterais condicionadas a programas de ajuste neoliberal.


IHU On-Line - Como romper com os modelos de economia rentista perpetuados pelos governos de esquerda?

Alejandro Mantilla - Esta é a pergunta mais difícil de todas. Em princípio, a resposta óbvia seria propor uma economia produtiva e redistributiva, que regule o capital financeiro, limite os mercados, gere tributação alta para os grandes capitais e desenvolva programas de fomento à produção nacional sustentados no Estado. Esse programa seria o início de uma das etapas de transição de superação do neoliberalismo e do extrativismo rumo a uma perspectiva de transformação socialista possível.

No entanto, não é fácil assumir tal resposta com tanta comodidade, por duas razões. Por um lado, porque ao viver em uma economia globalizada no meio da turbulência mundial, as receitas econômicas de mudança enfrentam a desestabilidade econômica como dado objetivo. Em segundo lugar, porque a crise ecológica contemporânea exige o abandono do paradigma dos velhos modelos industriais que afirmaram a proposta keynesiana  do pleno emprego fordista.

Hoje é necessário gerar um profundo debate que redefina os padrões de extração, produção, circulação e consumo, assim como as possibilidades de uma economia que supere tanto a exploração humana como a depredação ambiental. Esse é o maior objetivo da esquerda de nossa era, é a maior prova que afronta a humanidade hoje.■

 

Leia mais...

 

- América Latina: fim de ciclo? Artigo de Alejandro Mantilla Q, publicado por Outras Palavras e reproduzido nas Notícias do Dia, de 24-11-2015, do sítio do Instituto Humanitas Unisinos.

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