Edição 481 | 21 Março 2016

Mudanças climáticas e a internacionalização de doenças virais

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Leslie Chaves | Edição João Vitor Santos

Nelson da Cruz Gouveia analisa o surgimento e a mudança de hábitos de vetores de doenças virais, como o Aedes aegypti, como mais um efeito do aquecimento global

As alterações do clima em todo o mundo incidem nas mais diversas formas de vida na Terra, inclusive em vetores de doenças transmissíveis, como os insetos. Na prática, significa que países que sequer possuem clima tropical passam a conviver com problemas típicos de lugares mais quentes. É mais ou menos essa lógica que leva o mosquito Aedes aegypti a se adaptar até em lugares menos quentes. “E, com o mosquito, aparece a possibilidade de transmissão de doenças virais”, completa o médico, doutor em Saúde Pública, Nelson da Cruz Gouveia, ao explicar como o vírus da Zika vem se espalhando pelo mundo. E mais: o próprio vírus pode ir se transformando. “A questão dessas doenças virais é que esses vírus podem ir se modificando e gerando doenças com manifestações diferentes de pessoa para pessoa”, completa.

Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Gouveia lembra também que a facilidade da movimentação de pessoas pelo mundo é outro fator que contribuiu para a internacionalização das doenças virais. “As hipóteses que existem sobre a chegada do vírus da Zika é de que foi introduzido no Brasil durante a Copa do Mundo de 2014. Possivelmente foi um indivíduo infectado que veio para cá e, como aqui temos o vetor, o mosquito que transmite também Dengue e Chikungunya pode muito bem ter picado a pessoa infectada e começado a transmitir essa doença por aqui”, explica.

Conforme destacado por Gouveia, nos países em que já existe o vetor em potencial de uma doença viral, como o Zika, a iminência de alastramento é ainda maior. “No caso específico do Brasil, ainda há um agravante, que é a falta de saneamento básico. Com isso, há mais água parada e mais chances de proliferação do vetor e, portanto, a possibilidade de doenças e epidemias é maior”, completa o médico. É por isso que defende ações integradas de combate ao mosquito, e não apenas uma política de saúde baseada em aplicações de venenos. “Essa forma de controle baseada nos inseticidas acaba jogando veneno no meio ambiente e não se sabe quais são os riscos e os problemas de saúde que podem estar sendo causados”, completa, ao defender mecanismos intersetoriais de controle.

Nelson da Cruz Gouveia é graduado em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo, mestre em Epidemiologia e doutor em Saúde Pública pela London School of Hygiene and Tropical Medicine - University of London. Atualmente é Professor Associado do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. É vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco e membro de seu Grupo Temático de Saúde e Ambiente. Tem atuado em diversos comitês técnico-assessores do Ministério da Saúde. Tem experiência na área de Epidemiologia e Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Ambiental.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como chegam ao Brasil o Chikungunya e o vírus da Zika, agravando o cenário das doenças vetoriais no país?

Nelson da Cruz Gouveia – O mecanismo exato de como eles entraram é sempre uma suspeita, pois é algo muito difícil de determinar. As hipóteses que existem sobre a chegada do vírus da Zika é de que foi introduzido no Brasil durante a Copa do Mundo de 2014, em função do grande número de pessoas circulando. Possivelmente foi um indivíduo infectado que veio para cá e, como aqui temos o vetor, o mosquito que transmite também Dengue e Chikungunya pode muito bem ter picado a pessoa infectada e começado a transmitir essa doença por aqui.

É assim, muito provavelmente, que vêm sendo espalhadas essas doenças ao redor do mundo. Hoje, temos uma circulação de pessoas pelo mundo inteiro muito maior do que tínhamos há 30 ou 40 anos. Isso propicia a circulação desses vírus. Claro que se uma pessoa com Zika vai para um país em que não tem o vetor, não vai conseguir deixar essa doença lá. Com o Chikungunya deve ter havido algo similar, mas não sei precisar por que a doença já está há mais tempo aqui. Temos relatos da circulação dessa doença no Brasil que são bem mais antigos que os relatos sobre o Zika.


IHU On-Line – Inicialmente o Chikungunya e o vírus da Zika foram considerados formas brandas da Dengue. O que gerou essa percepção? Essa ideia contribuiu de algum modo para o quadro que se tem hoje?

Nelson da Cruz Gouveia – De certa forma, é até um pouco errado dizer isso — que são formas brandas da Dengue — porque são três doenças virais, três vírus que possuem alguma similaridade, mas que são diferentes. Todos têm a possibilidade de ter o mesmo vetor, o mosquito Aedes, mas é apenas uma similaridade. Há também características distintas. O Zika, das três doenças, talvez fosse a mais branda no sentido da enfermidade. Ele apresenta um quadro viral bem leve, com algumas características peculiares, mas que muitas vezes pode passar despercebido.

O Chikungunya costuma causar dores nas articulações muito mais fortes, com rash cutâneo . E mesmo a Dengue, hoje em dia, já tem quatro sorotipos circulando no Brasil. Não é mais um vírus igual, mas sim quatro com sorotipos diferentes. Eles causam quatro tipos de Dengue de forma similar, mas, também, com algumas características distintas. A questão dessas doenças virais é que esses vírus podem ir se modificando e gerando doenças com manifestações diferentes de pessoa para pessoa.


IHU On-Line – A situação do meio ambiente, com a poluição, mudanças climáticas e a crise hídrica no país, contribui de alguma forma para a proliferação de mosquitos e a consequente propagação das doenças vetoriais?

Nelson da Cruz Gouveia – Com certeza. Uma das grandes preocupações com relação às mudanças climáticas é que, em muitos países em que o vetor não existia, em decorrência da mudança do clima ele começa a aparecer. E, com o mosquito, aparece a possibilidade de transmissão da doença.

Veja, também, a questão da crise de abastecimento de água. As pessoas têm de lidar com essa situação de diversas maneiras, e uma delas é armazenando água em casa. Se essa água é armazenada em condições não favoráveis, o mosquito também pode se reproduzir ali, já que gosta de água parada e, de modo geral, limpa. Embora, hoje em dia, essa água que atrai o Aedes para a reprodução não precisa ser mais tão limpa assim. 

São todos fatores que contribuem para que a proliferação dos mosquitos aumente. E no caso específico do Brasil ainda tem um agravante, que é a falta de saneamento básico, sobretudo nas grandes cidades onde há bolsões de pobreza. Com isso, há mais água parada e mais chances de proliferação do vetor e, portanto, a possibilidade de doenças e epidemias é maior. Até que chegamos a situações como a da Dengue, em que temos epidemias quase todo ano há cerca de 20 anos, tornando-se hoje quase uma endemia.

O peso da falta de saneamento

É preciso destacar que um dos determinantes é justamente a pobreza e, consequentemente, a falta de saneamento básico. Claro que não é o único. Vemos epidemias de Dengue no município de São Paulo, por exemplo, em regiões e bairros considerados nobres, onde há esgoto e água encanada. No entanto, a falta de saneamento adequado propicia o aparecimento de mosquitos. E as regiões onde essas epidemias são mais frequentes, se olharmos no mapa, são exatamente aquelas em que a falta de saneamento é maior.


IHU On-Line – Ainda sobre esses determinantes ambientais, essas doenças estão sendo levadas para outros países, até mais desenvolvidos, em que não há problemas como a falta de saneamento. Como se dá o alastramento dessas doenças nesses países como, por exemplo, os Estados Unidos?

Nelson da Cruz Gouveia – Os Estados Unidos estão muito preocupados com o vírus da Zika e realmente não há essas questões de esgotamento sanitário. Nas regiões mais ao sul, em que o clima é mais temperado, mais propício aos Aedes, a incidência já é grande. Assim, em países como os Estados Unidos e outros da Europa, a preocupação é com o aquecimento global. Se há um aumento de temperatura em regiões tradicionalmente mais frias, o mosquito vai se adaptando e tendo mais possibilidade de se reproduzir. 


IHU On-Line – A nota técnica da Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco  a respeito dos perigos das medidas químicas de combate ao Aedes aegypti alerta para a necessidade de uma abordagem intersetorial no controle de doenças vetoriais. Quais são os setores fundamentais nessa articulação e como poderiam contribuir em conjunto para o enfrentamento dessas enfermidades?

Nelson da Cruz Gouveia – A nota técnica chama atenção para o fato de que vem se fazendo um controle focado basicamente em ações para eliminar o mosquito. É essa a política de saúde praticada no Brasil nos últimos 20, 30 anos, seja aplicando inseticidas através dos fumacês  ou aplicando larvicidas na água. Mas, na verdade, isso não vem dando certo. Percebemos, ao longo desses 20 ou 30 anos, que ocorreram epidemias. Às vezes elas são menos intensas, mas muito mais por questões climáticas do que pela eficácia de controle por esse modo de ação.

Essa forma de controle baseada nos inseticidas acaba jogando veneno no meio ambiente, e não se sabe quais são os riscos e os problemas de saúde que podem estar sendo causados por essa exposição a produtos químicos. A ideia é tentar passar para um mecanismo de controle dessas doenças que não seja única e exclusivamente jogando inseticida na população, que se possa fazer o que a nota técnica coloca como abordagem intersetorial. Significa que é preciso trabalhar a questão do saneamento, do crescimento das cidades, do planejamento e desenvolvimento urbano, como forma de se evitar o surgimento de criadouros. É ter uma cooperação do setor da saúde com o setor do planejamento urbano e diversas áreas que pensam construir uma cidade com condições de habitação e moradia adequadas para a população. 

 

IHU On-Line – Com a promoção dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro em breve, o cenário das doenças vetoriais no país pode ser agravado? De que maneira?

Nelson da Cruz Gouveia – É difícil fazer uma previsão dessa natureza. Há algumas variáveis que precisamos considerar. A primeira é que os jogos vão ocorrer num período tradicionalmente de inverno, um período em que a incidência dessas doenças cai. As epidemias de Dengue e de outras doenças virais são sempre mais prolongadas durante o verão. Ainda que o Rio de Janeiro não seja um estado onde o inverno é rigoroso, a tendência é sempre de queda.

Outra questão é que deve haver grande fluxo de pessoas, como foi na época da Copa do Mundo. E o que ficou da Copa — pelo que vimos até agora e pelas suspeitas — é a introdução do vírus da Zika que antes não circulava por aqui. Pode ser que alguém traga algum vírus novo para cá e pode ser que alguém leve esses vírus daqui para um outro lugar no mundo. Agora, é complicado prever como isso deve acontecer. Também não acho que seja o caso de cancelar os jogos. Tem-se que promover as Olimpíadas e tomar todos os cuidados possíveis.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Nelson da Cruz Gouveia – A grande questão, e que a nota técnica da Abrasco tenta chamar atenção do governo e da população de um modo geral, é que essa ideia de combater somente o mosquito jogando inseticida na população não tem se mostrado efetiva e ainda traz riscos de contaminação. É preciso começar a pensar em alternativas. Estão surgindo algumas propostas de controle desses vetores através de medidas mais integradas de saneamento, controle biológico, captura, uma série de pequenas experiências que a própria Abrasco está tentando reunir para preparar uma publicação. Ou seja, é possível viabilizar alternativas, mas é preciso uma ação integrada.


IHU On-Line – E também é preciso fugir dessa lógica de culpar a população pela incidência da doença. Correto?

Nelson da Cruz Gouveia – Sim, a população não pode ser vista como única culpada. Entretanto, não podemos também tirar da população a responsabilidade e deixar somente na mão do Estado. Os dois entes devem estar envolvidos. Não adianta continuar jogando lixo na rua ou manter potenciais criadouros dentro de casa e ficar dependendo somente das ações do Estado.■

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