Edição 481 | 21 Março 2016

Nem fumacê, nem larvicida químico. Coragem e saneamento contra o mosquito

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Leslie Chaves | Edição João Vitor Santos

Fernando Carneiro entende como equivocada a política de saúde pública apoiada no uso de venenos no combate ao Aedes aegypti. Para ele, é preciso encarar o desafio do saneamento ambiental no Brasil

A política de saúde pública no Brasil quer matar o Aedes aegypti com bala de canhão. É com essa metáfora que Fernando Carneiro, biólogo, pesquisador e diretor da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz no Ceará, evidencia os equívocos dos Programas Nacionais de controle do vetor. Para ele, o uso de venenos, seja nos fumacês ou na aplicação de larvicidas químicos, representa um modelo fracassado. “Em que se baseia esse fracasso? Baseia-se na constatação de que vivemos, nos últimos anos, uma sequência de grandes epidemias que assolam nossos estados. Não se está conseguindo controlar o mosquito em função dos métodos que estão sendo preconizados”, argumenta.

O pesquisador entende que a arma é outra: investimento em saneamento ambiental, um debate que, por falta de coragem política no Brasil, é negligenciado há anos. “Sempre que tocamos nesse ponto, as pessoas alegam que no momento é uma questão de emergência. O tema do saneamento é sempre colocado em segundo plano porque lidamos com o ‘curtoprazismo’ da emergência”, avalia. E ainda dispara: “estamos sempre apagando incêndio de uma epidemia, e o saneamento acaba sendo tratado como algo de médio a longo prazo. Assim, o saneamento está, há 30 anos, para depois”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Carneiro ainda alerta que a insistência no uso de venenos está deixando o mosquito resistente, levando as autoridades a usar químicos cada vez mais perigosos para a saúde pública. Além disso, o uso dessas substâncias está envolto numa série de dúvidas sobre os efeitos colaterais em humanos e no ambiente. “É que faltam estudos científicos de longo prazo, frente a uma nova situação, de interações e impactos na saúde que esse produto possa estar causando”, explica.

Fernando Carneiro possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialização em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestrado em Saúde Ambiental pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México, doutorado em Epidemiologia pela UFMG e pós-doutorado em Sociologia pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra - Portugal. Possui experiência na área de Saúde Coletiva. Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Coordenou a área de Epidemiologia Ambiental da Secretaria de Saúde de Minas Gerais e atuou como Coordenador Geral de Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde; foi professor e chefe do Departamento de Saúde Coletiva da UnB. Atualmente é Pesquisador e Diretor da Fiocruz Ceará. É professor colaborador do Núcleo de Estudos de Saúde Pública da UnB. É credenciado aos Programas de Mestrado em Trabalho, Ambiente e Movimentos Sociais da ENSP/FIOCRUZ; Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva da UnB e do Mestrado em Saúde da Família da Fiocruz Ceará. Participa do GT de Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva- ABRASCO. Coordena o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas - Teia de saberes e práticas.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – De que forma avalia a política brasileira de enfrentamento das doenças vetoriais?

Fernando Carneiro – Após esses 30 anos de combate sistemático ao Aedes, a constatação é de que temos fracassado no modelo preconizado pelo Ministério da Saúde. Em que se baseia esse fracasso? Baseia-se na constatação de que vivemos, nos últimos anos, um sequência de grandes epidemias que assolam nossos estados. Hoje, talvez a metáfora mais ilustrativa é “enxugar o gelo”. O combate fica parecendo isso, pois não se consegue controlar o mosquito em função dos métodos que estão sendo preconizados, haja vista o quadro epidemiológico atual.

Além de não controlar a Dengue, temos hoje novas epidemias, como Zika e Chikungunya, muito mais graves pelo aspecto crônico – pois na Chikungunya a pessoa pode ficar até um ano com os sintomas e no caso do Zika ainda não existe uma comprovação científica robusta. Porém a cada dia há mais evidências que vão se somando e fortalecendo a associação entre a presença de Zika com os casos de microcefalia. 

Isso é uma verdadeira tragédia sanitária, assim como foi no início da epidemia de AIDS, quando não tínhamos muitas evidências e não sabíamos da gravidade do que estava acontecendo. Ou seja, hoje estamos vivenciando isso com a relação entre Zika e microcefalia em bebês. Não sabemos o mecanismo, mas na maioria dos casos de microcefalia estamos encontrando o vírus da Zika no líquido amniótico, nos tecidos cerebrais. 

Impacto demográfico

Imagine isso numa escala de país continental como o Brasil, com 200 milhões de habitantes. Podemos ter, inclusive, uma queda na curva de natalidade, com impacto demográfico, já que a falta de informações tem feito com que muitos casais adiem a gravidez. Até porque medidas cautelares para evitar ser picado pelo inseto, como uso de repelentes e, no caso das grávidas, evitando aglomerações, são muitas vezes difíceis de serem tomadas. Como fazer quando uma grávida tem que pegar um metrô ou um ônibus, por exemplo?

Princípio da precaução

A Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz encontrou atividade do vírus na saliva, por exemplo. É claro que, até fazer a ponte entre a atividade do vírus e a possibilidade de que ele sobreviva aos líquidos do estômago ou possa ser absorvido pelas vias aéreas, fechando um ciclo de transmissão, ainda há muito a ser feito em termos de pesquisas. Há um mundo de possibilidades e, nesse momento, o que nós estamos recomendando é o princípio da precaução. Quando não se tem total evidência científica sobre um tema, mas em que há risco à saúde, deve-se usar o princípio da precaução.

Há toda uma conjuntura em volta dessa epidemia de Zika que traz novos elementos. São dois cenários: 1) temos algo que vem de décadas, um modelo já falido de controle de um vetor; e 2) temos, agora, um novo cenário, de uma doença que se utiliza do mesmo vetor e que exige medidas cautelares imediatas, mas temos mais perguntas do que respostas.

Atacando criadouros

Há algo central, independentemente de Dengue ou Zika: é consenso, ao menos em estratégia de controle, mas pouco efetivado em termos de políticas públicas, que é necessário o controle efetivo dos criadouros do Aedes. Historicamente, uma grande estratégia de controle efetivo dos criadouros é a de boas ações de políticas urbanas, como o saneamento ambiental. Isso estava em vários planos de erradicação da Dengue desde o final da década de 1980.

Entretanto, essa ação foi sistematicamente minimizada na prática nos planos de controle em função de custos, decisões políticas equivocadas, e sempre foi privilegiado o controle químico com o uso de venenos para controle do Aedes. É uma lógica muito mais fácil a de comprar veneno do que fazer obra de saneamento. Além do mais, fica tudo dentro do setor da saúde. O saneamento exige articulação extramuros, o desafio da intersetorialidade...

 

IHU On-Line – Por que essas estratégias de combate ao vetor utilizando a aplicação de larvicidas químicos na água e o fumacê  continuam, apesar dos perigos e insucessos?

Fernando Carneiro – Essas estratégias se diferenciam de acordo com as situações geográficas do país. Os larvicidas são mais utilizados na região Nordeste, onde há mais reservação de água e menos saneamento. E, ainda, é utilizado em água potável. Falando agora como membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, onde faço parte do GT de Saúde e Ambiente, já fizemos até uma nota técnica sobre esse uso de larvicida em água potável , que gerou uma decisão corajosa do Secretário de Estado de Saúde do Rio Grande do Sul de suspender o uso desse produto na água.

Para Abrasco, a água potável não é para se colocar veneno, é para se resguardar e cuidar! É claro que há uma distância enorme a dizer que nós estamos afirmando que os larvicidas causam microcefalia. Não dissemos isso, e sim que a água potável deve ser resguardada, cuidada. Muitas vezes se colocam doses de larvicida maiores do que o recomendável e isso pode gerar riscos à saúde, mas não temos, até o presente momento, evidências de que dano pode ser causado.

Fumacês

Sobre o uso do fumacê: para que ele seja efetivo, já que é um aerossol e faz aquela nuvem de veneno, a gotícula desse aerossol tem que entrar em contato com a forma alada do mosquito para matá-lo. Veja como essa possibilidade é muito pequena na medida em que o mosquito é muito adaptado ao ecossistema urbano, pois não é à toa que conquistou as cidades e sabe se alojar em múltiplos esconderijos.

E o que é pior: com anos e décadas de usos intensivos dos fumacês, o mosquito foi ficando resistente ao veneno. Isso está obrigando o Ministério da Saúde a usar o Malathion , um organofosforado que atinge o sistema nervoso central e é considerado pela Agência Internacional de Pesquisa sobre Câncer - IARC  um provável carcinógeno  humano. E veja que, com tudo isso, o governo continua querendo matar o mosquito com bala de canhão e, agora, ainda quer banhar as grandes metrópoles brasileiras com um provável carcinógeno humano. Isso é muito grave! Essa substância está liberada para uso e é encontrada em todo o país. E ainda, para ajudar... Deputados Federais ligados ao agronegócio estão propondo o uso de aviões para pulverizar esse veneno sobre as cidades.

 

IHU On-Line – Quais são os venenos mais utilizados como larvicidas e nos fumacês?

Fernando Carneiro – Hoje, em função da resistência, os piretroides  estão sendo trocados pelo Malathion, que é esse organofosforado que referi e que recentemente foi classificado como provável carcinógeno humano. Isso no que diz respeito ao fumacê. Como larvicida, explicamos muito bem na nota da Abrasco, está sendo usado Pyriproxyfen . O mecanismo de ação dele causa uma má-formação da genitália do inseto, no sistema reprodutivo dele.

 

IHU On-Line - Quais são as populações mais atingidas por esta política de usos desses venenos? Em que implica isso?

Fernando Carneiro – Quero demarcar uma questão que considero central: o saneamento. Sempre que tocamos nesse ponto, as pessoas alegam que no momento é uma questão de emergência. O tema do saneamento é sempre colocado em segundo plano porque sempre lidamos com o “curtoprazismo” da emergência. Estamos sempre apagando incêndio de uma epidemia e o saneamento acaba sendo tratado como algo de médio a longo prazo. Assim, o saneamento está, há 30 anos, para depois.

Nesse quesito, foi muito importante a Campanha da Fraternidade deste ano , promovida pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que tem o foco na questão do saneamento. Essa é a grande solução, e também a mais perene, para eliminar os vetores. 

As autoridades dizem que os vetores estão muito associados à questão domiciliar — do acúmulo de água parada dentro de casa. Sim, mas veja, por exemplo, a região Nordeste. É lá que se inicia a epidemia e é também lá que se concentram 70% dos casos de microcefalia, onde as pessoas estão abaixo da linha de pobreza. Pessoas que estão no centro da epidemia de microcefalia no Nordeste estão em áreas sem saneamento, em que há dificuldade de acesso ao Sistema Único de Saúde – SUS, e há pessoas que talvez estejam com baixa capacidade imunológica.

Associação com fatores sociais

Claro que são as primeiras informações e é importante esclarecer que estão sendo realizados estudos epidemiológicos para que esses dados sejam mais bem avaliados. E as primeiras informações vão chegando no momento em que estamos combatendo a epidemia; é como se trocássemos um pneu com o carro andando. Ainda assim, isso nos dá algumas pistas de que essa virulência de Zika no Brasil pode estar associada não só a uma tipologia diferente do vírus, como a Fiocruz está investigando, mas também talvez a outros fatores associados. E aí, sim, temos coisas a serem descobertas do ponto de vista científico, que possam estar tornando esses vírus com uma capacidade agressiva maior. Pode estar associado a esses determinantes sociais.

Parece que a falta de saneamento dá pistas importantes, pois a ação política não protege as pessoas. Quando você não tem saneamento, precisa armazenar água para uso doméstico, e é aí que se acumula água e se tem um reservatório como criadouro em potencial. E, cada vez mais, onde não existe saneamento, onde há esgoto a céu aberto, falta de água e lixo descoberto, percebe-se que o Aedes está cada vez menos exigente. Não está mais atrás somente daquela água limpinha; o mosquito está se adaptando a coleções de águas diferentes também. Assim, a falta de saneamento combina muito com essa proliferação do mosquito no Brasil.

Por isso considero o saneamento básico uma política central, embora, quando ouvimos os discursos desses líderes políticos, vemos que destacam que não vão conseguir cumprir metas. O curioso é que, quando o Brasil se propõe a construir estádios para Copa do Mundo e Olimpíadas, consegue cumprir as metas. Agora, quando é para garantir saneamento e salvar vidas, não consegue cumprir metas. Tem algo errado aí. Está na hora de o saneamento virar prioridade.

 

IHU On-Line - O uso de produtos químicos para combater o mosquito Aedes aegypti pode ter algum reflexo no sistema imunológico das pessoas?

Fernando Carneiro – Isso merece ser investigado. A associação do uso intenso de larvicidas e se isso aumenta o poder dessa substância pela relação cruzada com outras substâncias é hoje uma pergunta de pesquisa. Não posso afirmar se isso potencializa ou não o que está acontecendo, por exemplo, aqui no Nordeste.

 

IHU On-Line – Como é feita a regulamentação dos produtos químicos que são permitidos no combate às doenças vetoriais?

Fernando Carneiro – A Abrasco publicou um Dossiê  sobre usos de agrotóxicos, onde inclusive eu fui um dos organizadores. A novidade é que estamos elaborando a continuidade desse dossiê, que é a quinta parte. Para nós que somos da saúde pública, talvez seja uma das partes mais difíceis do Dossiê. É como na metáfora “em casa de ferreiro, o espeto é de pau”, pois o Dossiê Abrasco Parte 5 trata dos venenos da saúde pública. Para nós, seria muito mais fácil falar dos venenos da agricultura, pois é outro setor, e criticar outro setor é mais fácil. Agora, criticar nossos próprios colegas é muito mais complexo. Só essa nota técnica que lançamos já gerou inúmeras confusões. Essa nota, inclusive, já é uma peça do Dossiê Parte 5.

O rito de avaliação dos agrotóxicos para a saúde pública é muito menos criterioso do que para a agricultura no território nacional. Na agricultura, passa por três órgãos: o Ibama trata da ecotoxicologia; a Agricultura (departamentos do Ministério), da eficiência agronômica; e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa analisa a toxicologia. Quando é para saúde pública – e não para agricultura -, já Ibama e Agricultura não opinam. E a Anvisa não tem muito poder direto porque o próprio Ministério da Saúde, que é o interessado, segue o que a Organização Mundial da Saúde - OMS determina. Se um comitê técnico específico da OMS diz que é para usar, o Brasil usa. Não há uma análise criteriosa de nosso país, é basicamente só o que o comitê da OMS recomenda. É um rito mais sumário.

Pulverização aérea

A sociedade tem que estar vigilante. O deputado Valdir Colatto, do PMDB de Santa Catarina, está propondo o uso de pulverização aérea de agrotóxico nas grandes cidades para combater o Aedes. Existe um projeto de lei nesse sentido. É radicalizar o modelo do agronegócio para combater o Aedes.


IHU On-Line – Notas técnicas têm sido elaboradas pela Abrasco a respeito da gravidade dos problemas advindos pelas políticas de enfrentamento às doenças vetoriais no Brasil. De que forma estão sendo recebidos esses documentos pela sociedade e pelas autoridades?

Fernando Carneiro – Sobre a nota técnica da Abrasco, ficamos muito felizes com a reação do secretário de Saúde do Rio Grande do Sul , João Gabarddo dos Reis, porque, baseado na nota, suspendeu o uso do larvicida Pyriproxifen na água potável. Usando essa nota como referência, questionou todo o Ministério da Saúde. Foi uma decisão corajosa e que gerou todo um impacto nacional e internacional. Inclusive, há toda uma aproximação do grupo de GTs da Abrasco que assinaram a nota técnica com o secretário e o Conselho Nacional dos Secretários de Estado de Saúde – CONASS, na perspectiva de criar zonas de diálogo e aproximações técnicas.

Estamos tentando organizar, também, chamadas de revistas científicas para colher experiências de controle do Aedes sem o uso de venenos. É papel nosso enquanto academia reunir não só artigos científicos, mas também experiências que já existem em municípios e que, às vezes, ficam escondidas. Além do não uso de venenos, são experiências de integração de vigilâncias de atenção básica, educação popular como referência e participação social e popular, entre outras. É interessante estimular essas experiências que já estão acontecendo num movimento propositivo que vem de baixo para cima.


IHU On-Line – Gostaria de detalhar um pouco mais essa polêmica quanto ao uso do larvicida Pyriproxyfen, quando se aventou a possibilidade de estar relacionado aos casos de microcefalia? No Rio Grande do Sul, como o senhor mesmo já destacou, em função dessa possibilidade foi proibida a aplicação deste químico. De que forma avalia essa questão?

Fernando Carneiro – A decisão do Rio Grande do Sul foi acertada, por três grandes aspectos. 1º) Água potável é para ser resguardada, não é lugar para se colocar veneno. 2º) Como o Rio Grande do Sul é um estado com alto índice de saneamento, tecnicamente já não se justificava a utilização desse larvicida na água. Era uma medida desnecessária se compararmos com estados em que a reservação alternativa – por falta de saneamento – é muito alta. 3º) O secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, João Gabarddo dos Reis, é o presidente do Conass, o que faz com que ele também seja uma liderança nacional. E por isso ele fez do tema algo nacional e internacional, liderando também uma nova abordagem e pode, a partir do Rio Grande do Sul, pela preocupação e pela dúvida que levanta, ser um exemplo para inspirar outras iniciativas. O primeiro aspecto é importante, mas o segundo ainda reforça o primeiro, e o terceiro é extremamente estratégico.

 

IHU On-Line – Mas ainda não é possível relacionar o uso desse produto com a microcefalia?

Fernando Carneiro – Não temos qualquer indicação científica, até o momento, nessa direção.


IHU On-Line – Então, a relação entre microcefalia e o Pyriproxyfen está descartada até então?

Fernando Carneiro – Veja bem: eu não concordo com essa outra afirmação. Não usaria a palavra “descartada”. São duas coisas diferentes. Uma coisa é dizer que não há evidências científicas de que o larvicida causa microcefalia; mas, também, não tenho a evidência científica que comprove que ele não cause. É que faltam estudos científicos de longo prazo, frente a uma nova situação, de interação que esse produto possa estar causando. Hoje, digo que a atitude do Rio Grande do Sul é uma atitude do princípio da precaução, e nós da Abrasco entendemos que seria a atitude mais adequada a se tomar no Brasil.

Quando há dúvida científica, a cautela é o melhor caminho. É muito parecido com a questão dos transgênicos, podemos fazer essa analogia. Hoje, não se pode dizer com toda certeza que os transgênicos não causam câncer, mas também não podemos dizer o contrário. As evidências são controversas: estudos dizem que causaram câncer em ratos e outros dizem que não. Na dúvida, a Europa entrou em moratória.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Fernando Carneiro – Para romper com 30 anos de um modelo em que hoje se constata um fracasso é preciso reinventá-lo. E para reinventar esse modelo é preciso ter coragem de fazer o que não foi feito nos últimos 30 anos. E o saneamento é uma dessas questões. Não dá para não priorizar o saneamento. Vão dizer que há crise econômica, que são ações de médio prazo, mas temos que enfrentar isso.

Também gostaria de destacar algumas iniciativas. Estamos conhecendo a experiência do município de Pedra Branca, no Ceará, dentro de uma estratégia da Fiocruz Ceará em parceria com Abrasco, muito exitosa no controle da Dengue. Há praticamente 15 anos não existem casos de Dengue nesse município. Eles já não usam produtos químicos, nem fumacê, nem larvicida químico, e tem toda uma mobilização social envolvida, um trabalho com enfoque ecossistêmico a partir dos focos do Aedes, numa integração com a vigilância em saúde e atenção básica. Nossa intenção é aplicar essa experiência de Pedra Branca em outro município, Tauá, que está numa situação bem crítica. A cidade fica numa das áreas mais secas do Ceará e está com 15% de infestação nas residências.

A outra iniciativa que quero destacar é a nota técnica que estamos elaborando. O objetivo é reunir iniciativas bem sucedidas de controle do mosquito sem o uso de veneno pelo mundo, com abordagens participativas, integradas e intersetoriais. Essa nota deve estar pronta até o final do mês. É mais uma iniciativa da Fiocruz com apoio da Abrasco, também, a criação de um fórum de ciência e tecnologia e inovação para o desenvolvimento sustentável. A ideia é disponibilizar esse tipo de ferramenta para os municípios.■

 

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