Edição 478 | 30 Novembro 2015

Bem-viver indígena, muito além do welfare state

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Por João Vitor Santos e Ricardo Machado | Tradução André Langer

Para o pesquisador e antropólogo argentino Guillermo Wilde, o desconhecimento sobre as lógicas indígenas é o maior desafio a ser superado

Aquilo que o Norte global chama de “welfare state”, surgido em meados do século XX e que emergiu como um avanço nas garantias de dignidade de vida básica às populações, não somente se mostrou insuficiente para resolver os problemas que se propunha, como é menos sofisticado que a perspectiva do Bem-viver. “A ideia do bem-viver indígena, assim como a entendo, inclui de qualquer maneira um número maior de elementos que o “welfare state” e as políticas públicas que se desprendem dele e fundamentalmente uma relação diferente com o ambiente, uma definição de bem-estar que inclui a relação com o ambiente e ao mesmo tempo concebe o ambiente como agente, e não simplesmente como um objeto ou variável quantificável em um censo, cadastro ou estudo de impacto”, analisa Guillermo Wilde, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Ao fazer um detalhado resgate histórico sobre as relações entre os indígenas e os migrantes europeus, ao longo de séculos, o professor avalia que a ignorância histórica e paradigmática com relação às questões indígenas resultam nas catastróficas políticas voltadas a esta população. “Ainda existe um alto grau de preconceito contra estas populações que deve ser superado através de um conhecimento mais profundo e enriquecedor de suas formas de vida, seus desejos e suas concepções do cosmos, e de uma consciência histórica (humanística) das arbitrariedades sistemáticas de que foram objeto”, pondera. “A população em geral deve abandonar um estado de ignorância e desinformação para acompanhar o movimento indígena em sua demanda por reconhecimento, exigindo que os governos locais se ajustem às normas internacionais”, complementa.

Guillermo Wilde é licenciado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de Buenos Aires. Atua na Universidade Nacional de San Martín, Instituto de Altos Estudos Sociais e no Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas – Conicet da Argentina. É professor visitante do Museu Nacional de Etnologia de Osaka, Japão. Em 2010, participou do XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade, ministrando a conferência intitulada Religião e poder nas missões, no dia 28-10-2010. Recentemente, seu livro Religión y Poder en las Misiones de Guaraníes ganhou o prêmio Iberoamericano de la Latin American Studies Association (LASA 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Desde uma perspectiva histórica até os dias de hoje, como compreender a relação entre povos indígenas e não indígenas na América Latina?

Guillermo Wilde - A questão é muito complexa para ser resumida em poucas palavras. Deve-se ter em conta muitos séculos de história, além de diferenças regionais muito marcadas. O ponto de partida deve ser o momento de contato iniciado com a invasão europeia, pois é somente a partir de então que se começa a falar dos “índios”, dos habitantes das “Índias”, como uma entidade homogênea, ao menos do ponto de vista jurídico. A conquista funda neste sentido um divisor de águas. A partir de então, a relação entre indígenas e não indígenas está marcada por uma diversidade de atitudes que incluem tanto assombro e fascinação como desprezo diante da diferença. 

Incompreensões

A partir de incompreensões básicas desenvolveram-se quase imediatamente tanto tentativas para compreender essa diferença como para destruí-la, especialmente do lado dos invasores. Depois do primeiro impacto da conquista, o Estado monárquico buscará formatar essas relações em um marco jurídico e normativo que, paradoxalmente, buscou tanto proteger a população indígena como dominá-la, basicamente incorporando-a às hierarquias de poder estabelecidas e ao sistema econômico dominante, sob o guarda-chuva ideológico de uma “monarquia católica” de aspirações universais. Ou seja, no plano prático as relações em questão estiveram marcadas pela situação de dominação colonial, com tudo o que ela implicou. 

Uma consequência imediata foi a transformação dos indígenas em objetos de conversão e de exploração econômica. Do lado indígena, houve atitudes muito diversas conforme a região, e os conquistadores puderam ser concebidos de maneiras muito diferentes, desde “parentes” bem-vindos às redes locais até seres não humanos de características sui generis que deviam ser combatidos, porque punham em risco as tradições dos antepassados ou a autoridade dos chefes. Todas as cosmologias nativas tiveram, em geral, um lugar reservado para os outros recém-chegados. 

Relações

A compreensão das relações entre indígenas e não indígenas implica necessariamente partir dos mal-entendidos e das negociações implicadas na interação, que, no melhor dos casos, comportaram cálculos de oportunidades e vantagens no marco de um regime colonial que obviamente impunha grandes limitações para os sujeitos colonizados. Em consequência, emergiram zonas de intermediação nas quais alguns atores e discursos tiveram uma margem maior de autonomia. A mistura cultural e biológica foi um dos efeitos imediatos da intermediação que resultou na formação de categorias que escapavam do esquema social estabelecido, como a de “mestiço”.

IHU On-Line - Quais são as particularidades das culturas dos povos indígenas na América Latina? No que se diferenciam, por exemplo, dos índios norte-americanos?

Guillermo Wilde - Os povos indígenas da América Latina sempre foram muito diversos em todos os pontos de vista (cultural, linguístico, econômico e político). A antropologia e a arqueologia americanistas traçaram, ao longo do século XX, uma série de tipologias para simplificar esta diversidade e pode-se dizer que chegaram a alguns consensos sobre algumas características que diferenciam os povos das Terras Baixas Sul-Americanas dos povos da região andina, mesoamericana ou das planícies norte-americanas. Foram encontradas também numerosas similitudes de tipo cultural e tecnológico entre povos muito distantes geograficamente entre si, as quais, em alguns debates, não completamente consensuados, foram atribuídas a fatores ecológicos determinantes ou simplesmente à possibilidade de desenvolvimentos tecnológicos simultâneos. 

Diferenciações

Dentre os aspectos diferenciadores mais importantes foram ressaltados frequentemente a organização política: enquanto algumas sociedades exibiram um grau maior de centralização e hierarquização (por exemplo, os incas nos Andes ou os mexicas na Mesoamérica), baseadas em um sistema de trocas e produção agrícola desenvolvido, outros se mostraram mais horizontais. No entanto, a partir da conquista e colonização fica difícil continuar falando em termos de tipologias sociopolíticas nítidas. A intervenção do Estado colonial primeiro, e republicano depois, acelerou processos que transformaram radicalmente as sociedades indígenas. As administrações coloniais de diferentes origens (espanhola, portuguesa, inglesa, holandesa, francesa, etc.) estabeleceram mecanismos e estratégias diferenciados de aproximação das populações indígenas que influenciaram direta ou indiretamente na fisionomia das instituições locais. 

Na América espanhola, desde os inícios, manifestou-se a intenção de impor uma “república de índios” baseada em parâmetros civis e urbanos europeus, forçando os indígenas a se integrarem e abandonarem seus antigos costumes religiosos e sociais e suas formas de organização do espaço e do tempo. Esta política, embora tenha sido aplicada de maneira unificada, teve efeitos muitos diferentes nas diferentes regiões. O êxito ou o fracasso dessas estratégias estatais dependeu também em boa medida das características das sociedades indígenas, mais ou menos propensas a tratar com os invasores. Em todo o caso, o que se descobre são muitas situações de ambivalência ou de ambiguidade por parte da população indígena, que oscila entre a aceitação das tecnologias coloniais (como as armas e os cavalos) e a negação dos valores cristãos, especialmente nas zonas fronteiriças dos Impérios Ibéricos e dos Estados nacionais.

IHU On-Line - Como o senhor avalia a relação que se estabeleceu entre o povo indígena e os imigrantes na América Latina? O que muda, sociológica e antropologicamente, em ambos os povos depois desse contato e dessa relação?

Guillermo Wilde - A relação que historicamente a população migrante e indígena estabeleceu é um tema complexo que exige diferenciar diferentes tipos e fases de migração. A primeira colonização europeia da época colonial é diferente daquela que influenciou massivamente em períodos posteriores, promovida pelos Estados nacionais. Enquanto as primeiras interações parecem mais ambíguas e ambivalentes, inclusive mais propensas à interação e à mescla, posteriormente se veriam gradualmente marcadas pelo discurso do racismo, que atinge sua culminância, enquanto teoria “científica”, no século XX. 

Uma análise mais profunda exige ter em conta a política dos Estados emergentes na região com relação a estes setores diferenciados da população, desde a segunda metade do século XIX. Nessa época, esta política esteve claramente orientada para acelerar o processo de assimilação ou desaparecimento dos indígenas “dentro” dos territórios nacionais, especialmente nas chamadas fronteiras da civilização, seja por meio de campanhas de extermínio, ao estilo da “conquista do deserto” na Patagônia ou da colonização do Chaco na fronteira entre a Argentina, Paraguai e Bolívia, seja pela política de criação de reduções, reservas e missões evangélicas. 

Migrantes Europeus

Simultaneamente, os Estados nacionais fomentavam a vinda de migrantes europeus com o objetivo de promover a “civilização” e o “desenvolvimento”, assim como o “branqueamento” da população. Este será o setor da população majoritariamente favorecido nos processos “modernizadores” e “integradores” do século XX, pois a maior parte de seus componentes foi incorporada aos sistemas educacionais nacionais, à vida cívica dos países receptores e aos sistemas de bem-estar, apesar de que também foram objeto de discriminação por parte das elites governantes. 

Entretanto, a população indígena continuou marginalizada. As sucessivas ondas migratórias implicaram diferenciações internas neste setor da população, e é fácil constatar que os últimos migrantes se mantiveram tão empobrecidos quanto os indígenas, especialmente nas áreas rurais. As disputas que de fato hoje persistem pelo acesso à terra entre indígenas e colonos pobres são uma evidência neste sentido.

IHU On-Line - Como compreender os conflitos entre brancos e índios hoje, mantendo sempre atual as disputas pela terra e o choque de culturas?

Guillermo Wilde - Novamente, devemos analisar cada situação particular, mas como assinalei antes, não se pode equiparar um colono ou um pequeno produtor, que se encontram em uma situação de pobreza e que enfrentam muitas vezes as mesmas dificuldades de sobrevivência que os indígenas, e o grande proprietário e a corporação anônima dedicados à agroindústria. Se vamos às grandes cidades, encontraremos também um número crescente de população indígena marginalizada em bairros nos quais não se diferenciam completamente da outra população não indígena também empobrecida. Apesar disso, no marco legislativo presente, tanto em nível local como global, os indígenas com dificuldades conseguiram defender seu direito à especificidade cultural, o que em alguns casos pode implicar alguma vantagem frente a outros setores desfavorecidos da sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo, a particularidade de cada perspectiva indígena dificulta o acesso aos benefícios “colaterais”, por assim dizer, das políticas nacionais em geral.

IHU On-Line - Como avalia a relação entre os governos latino-americanos que se autointitulam de esquerda com os povos indígenas?

Guillermo Wilde - Neste ponto devemos introduzir matizes. Os governos “ditos de esquerda” não são a mesma coisa, e insisto em que as diferenças históricas nacionais devem ser levadas em conta, assim como fatores demográficos e sociais particulares. Certamente, casos como o Equador, Bolívia ou Peru, são muito diferentes dos países do Mercosul, fundamentalmente Brasil, Argentina e Paraguai, já diferentes por si na configuração de suas estruturas estatais e suas políticas indigenistas. Nestes últimos, a questão indígena deve ser avaliada negativamente, mesmo considerando que muitos destes governos buscaram melhorar as condições dos setores mais desprotegidos da sociedade. As políticas econômicas dos governos da região favoreceram um modelo desenvolvimentista que vai geralmente contra a preservação ecológica, fomentando a megamineração e a agroindústria, o que foi altamente prejudicial para os povos indígenas. Neste sentido, a posição dos governos foi muitas vezes ambígua. 

Outra questão crítica é o tema do acesso a títulos de terra, principal demanda das organizações indígenas, que não receberam um tratamento eficaz até o momento em um país como a Argentina. Neste ponto, creio válido questionar-se justamente a presença indígena como uma espécie de contraponto constante em relação às políticas nacionais, e neste sentido o valor de “sintoma social” ou contradição constante em relação aos discursos nacionais.

IHU On-Line - Quais são as similaridades e diferenças entre o welfare state e o bem-viver indígena?

Guillermo Wilde - A ideia do bem-viver indígena foi codificada no Convênio ILO 169  das Nações Unidas e em geral todos os Estados nacionais aderiram a este convênio, embora sua proteção esteja longe de ser regulamentada ou aplicada em nível local em cada país ou região. Seja como for, uma certa consciência da importância das tradições indígenas na preservação do ambiente encontra-se cada vez mais difundida na sociedade e nos foros internacionais.

A ideia do bem-viver indígena, assim como a entendo, inclui de qualquer maneira um número maior de elementos que o “welfare state” e as políticas públicas que se desprendem dele e fundamentalmente uma relação diferente com o ambiente, uma definição de bem-estar que inclui a relação com o ambiente e ao mesmo tempo concebe o ambiente como agente, e não simplesmente como um objeto ou variável quantificável em um censo, cadastro ou estudo de impacto.

IHU On-Line - O que podemos aprender da experiência das missões jesuítas na relação com os povos indígenas? No que estava baseada a relação nas reduções? Quais suas influências e transformações que trouxeram aos povos nativos?

Guillermo Wilde - As missões ou reduções jesuíticas fizeram parte de um programa mais amplo da coroa espanhola, destinado em princípio a reorganizar a população indígena de toda a América espanhola com o duplo objetivo de protegê-la dos abusos de diferentes setores da sociedade colonial, como os encomenderos  e os colonos escravizadores de indígenas, e de assegurar sua conversão ao cristianismo e sua integração ao sistema econômico espanhol, como tributários da coroa. Para além das disparidades entre as diferentes missões, em geral se ajustaram a um marco jurídico que garantiu em muitos casos a sobrevivência física das populações em questão, mesmo quando o processo de formação de reduções foi dramático em termos políticos, sociais e demográficos, com muita perda de vidas. Neste sentido, como sugeriram alguns autores, as reduções ironicamente buscaram curar as feridas provocadas pelos abusos da primeira colonização, recompondo um território que serviu como nova referência às populações indígenas desestruturadas. 

Usualmente, as reduções implicaram a redefinição completa das referências identitárias indígenas no marco de povos que se adaptavam ao padrão urbano hispânico, a instituições municipais como os cabildos e a uma série de comandos militares e eclesiásticos que foram adaptados pelos próprios indígenas dentro do marco colonial. Estes elementos, embora tenham sido impostos, também foram apropriados de maneira gradual pelos indígenas, que em muitos casos os preservam até hoje. Diversas formas ou elementos fragmentários da antiga vida litúrgica e cerimonial missional, formas da língua ou instituições e cargos municipais e eclesiásticos existem até hoje na região de Moxos e Chiquitos, onde foram instaladas missões jesuíticas similares àquelas que existiram no Paraguai. Isto nos indica claramente que os indígenas não foram sujeitos passivos deste processo, mas protagonistas muito ativos. Este processo foi frequentemente denominado de “etnogênese” ou “territorialização” e tratei disso em meu livro Religión y Poder en las Misiones de Guaraníes (Buenos Aires: Colección Paradigma Indicial, 2009), que reconstrói a participação guarani nas transformações regionais ao longo de 200 anos de história.

IHU On-Line - Hoje, enquanto desafio missiológico, com inspiração no Papa Francisco, trabalha-se a ideia de inculturação da fé. No que essa concepção se difere da empregada nas reduções jesuítas? Em que medida a ideia de inculturação da fé cristã possibilita a preservação da cultura nativa?

Guillermo Wilde - É notável como nos discursos do Papa Francisco  aparece a necessidade de respeitar a diversidade cultural, religiosa e ambiental. Esta posição está claramente inspirada em uma tradição desenvolvida já há mais de meio século na teologia missionária católica que cunhou a expressão “inculturação da fé”. Embora os primeiros esboços desta noção apareçam inclusive no final do século XIX, ela só foi formulada sistematicamente depois do Concílio Vaticano II.  Sua conexão conceitual mais direta é a noção de “acomodação”, concebida pelos missionários jesuítas nas missões da Ásia. Esta última propunha que os missionários, para se aproximarem dos não cristãos objeto de conversão, deviam estudar seus costumes e adaptar-se a eles na medida do possível. Assim, por exemplo, um jesuíta como Matteo Ricci  na China ou Roberto de Nobili  na Índia aprenderam respectivamente os costumes das elites letradas imperiais e os hábitos bramânicos para posteriormente transmitir a fé cristã. 

Inculturação da fé

Eles entendiam que esse modo de agir não implicava ir contra a fé cristã, mas simplesmente aceitar o que constituía um costume nativo inócuo, sem riscos para a fé; pelo contrário, seria útil na aproximação aos “infiéis”. A ideia de inculturação da fé supõe, de modo semelhante, que já não são os missionários, mas os próprios sujeitos da conversão, os nativos, que devem assumir um papel ativo no processo de conversão, adotando a fé cristã em seus próprios termos, colorindo-a com suas próprias tradições e crenças. Na América, pode-se dizer que há um certo precedente disto na tradição lascasiana (por Bartolomeu Las Casas ), que manifestou certa abertura às expressões locais de religiosidade e à concepção de que a ideia de Deus já existia entre os indígenas e de fato era nomeado por eles em suas línguas antes da chegada dos espanhóis. Ou seja, Deus se manifestava em uma diversidade de “rostos índios”, como ilustra o título de um conhecido livro que apareceu há duas décadas (El Rostro Indio de Dios – Cidade do México: Universidad Iberoamericana, 1994).

Reduções Jesuíticas

Pois bem, as reduções jesuíticas implicaram um certo grau de adaptação ou acomodação, mas é controverso dizer que implicaram uma “inculturação da fé”, na medida em que pouquíssimos elementos locais das sociedades indígenas realmente foram preservados neste processo. Em sentido estrito, as reduções criadas depois do Terceiro Concílio de Lima  (1582-83), que estabeleceu uma metodologia evangelizadora bastante rígida, implicaram a aceitação de elementos indígenas no marco mais geral do cânone cristão (a litúrgica, os sacramentos, a doutrina) deixando pouco lugar para a expressão de formas indígenas de religiosidade autônomas. Deve-se dizer, no entanto, que existem algumas manifestações da ritualidade cristã das reduções que estiveram marcadas pela presença daquilo que poderíamos chamar de perspectivas ou leituras indígenas do cristianismo. Este é um tema que ainda deve ser estudado e no qual me concentro atualmente, a partir do estudo das expressões visuais e sonoras missionais.

IHU On-Line - Em que medida, hoje, a cultura da financeirização impõe-se como forma de poder sobre os povos indígenas numa atualização do que foi a religião nas missões de guaranis?

Guillermo Wilde - Uma primeira questão a ser esclarecida é que a economia nunca esteve completamente separada da religião e da política: as missões foram um projeto religioso, mas também econômico e político. Em todo o caso, as reduções iniciaram um processo de integração ou assimilação da população indígena que mais tarde foi aprofundado pelos Estados republicanos e estendido para os grupos indígenas que conseguiram manter-se à margem deste processo. Após a expulsão dos jesuítas das reduções houve uma gradual mescla e assimilação da população indígena a outros setores sociais que habitavam a campanha, camponeses, afrodescendentes, espanhóis e portugueses, e notavelmente os indígenas praticamente desapareceram dos censos populacionais em meados do século XIX. Isto não quer dizer que desaparecessem, mas que simplesmente deixaram de ser contemplados pelos censos como tais. Passam a ser “cidadãos” e frequentemente participam dos Exércitos e das guerras que atingem toda a região. 

Economia-mundo

Especialmente desde o século XIX intensifica-se na região o crescimento daquilo que Immanuel Wallerstein,  entre outros, chamou de “economia-mundo”, isto é, a expansão do sistema capitalista global, processo que se acelerou particularmente nos últimos 30 anos, e que, atualmente, exibe sua faceta mais letal na provocação de guerras atrozes. Isto já existia antes inclusive da Segunda Guerra Mundial, mas hoje esta expansão vai acompanhada de um desenvolvimento tecnológico inédito, alcançando os rincões mais remotos do mundo. 

Mineração

Na América Latina as diversas formas de economia extrativista de grande escala vêm sendo a maneira mais aberta de exercício da violência contra as populações indígenas, com a conivência dos Estados nacionais. Um exemplo próximo é a Mata Atlântica, território dos guaranis, que no período de um século ficou reduzida a menos de 1% de sua superfície. Esta destruição do ambiente expressa a culminância do desenvolvimento do naturalismo ocidental que viu na natureza um objeto a ser explorado para o desenvolvimento das nações. Esta resultou em uma concepção sumamente limitada da terra e dos recursos naturais como objetos mensuráveis ou quantificáveis, despojados de todo significado simbólico ou cosmológico.

IHU On-Line - Como trabalhar a ideia de reconciliação com povos indígenas na América Latina? Como dirimir conflitos e garantir a autonomia cultural das populações originárias?

Guillermo Wilde - Primeiro, devemos reconhecer o papel dos indígenas como protagonistas na história da América Latina, não apenas antes da conquista, mas durante todos os processos políticos e econômicos que atravessam a etapa independente. Isto significa ter claro que sua presença antecede a formação dos Estados nacionais e é constante desde antes da conquista até hoje, como mostra muito bem a arqueologia e a etnologia. Apenas recentemente a pesquisa etno-histórica está visibilizando este papel protagônico, revelando as numerosas mortes provocadas por massacres e guerras (entre as mais ressonantes da nossa região cabe mencionar a chamada Guerra da Tríplice Aliança ou do Paraguai,  ocorrida entre 1876 e 1870, e a Guerra do Chaco (1934-35) . Estes fatos se tornam cada vez mais conhecidos, mas ainda há muito a ser feito para divulgá-los entre o público não acadêmico.

Reconhecer os direitos

Segundo, devemos reconhecer direitos postergados deste setor da população, facilitando seu acesso à propriedade da terra, tema central de demanda dos povos indígenas hoje em dia, e constantemente postergado pelas agendas estaduais e nacionais. Garantir a autonomia dos povos indígenas não é fácil na medida em que as políticas voltadas para eles, independentemente de onde tenham vindo, foram geralmente paternalistas. Ainda existe um alto grau de preconceito contra estas populações que deve ser superado através de um conhecimento mais profundo e enriquecedor de suas formas de vida, seus desejos e suas concepções do cosmos, e de uma consciência histórica (humanística) das arbitrariedades sistemáticas de que foram objeto. A população em geral deve abandonar um estado de ignorância e desinformação para acompanhar o movimento indígena em sua demanda por reconhecimento, exigindo que os governos locais se ajustem às normas internacionais.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Guillermo Wilde – Fundamentalmente, ressalto, que é fundamental ter presente as  generalizações que fiz. Embora apontem para a um marco interpretativo amplo, provocativo, deve se considerar a simplificação da riqueza da particularidade, de fundamental importância em relação aos povos indígenas, que apresentam uma variedade de opções de acordo com cada grupo ou inclusive comunidade em diferentes contextos regionais e nacionais.■

 

Leia mais...

- Interpretações históricas e atuais da experiência jesuítica. Entrevista com Guillermo Wilde, publicada na revista IHU On-Line nº 348, de 25-10-2010.

- Os guarani e o território latino americano: uma relação histórica. Entrevista com Guillermo Wilde, publicada na revista IHU On-Line nº 331, de 31-05-2010.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição