Edição 206 | 27 Novembro 2006

Para que a arte continue viva

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Reproduzimos um artigo de autoria de Gilmar Hermes, professor da Comunicação da Unisinos, que traz uma análise da Bienal em São Paulo, visitada por ele. Agradecemos ao professor Gilmar o envio do texto.

Desde o surgimento do Dadaísmo , em 1916, questiona-se radicalmente o que é a arte, mencionando-se em alguns momentos a expressão “morte da arte”. Evidentemente, sendo uma palavra proferida por artistas e críticos de arte, não se trata de um desejo de que a arte morra, mas de que ela continue viva, de alguma maneira.

Na sua 27ª edição, a Bienal Internacional de São Paulo assume a crise das megaexposições e busca novos caminhos, dando, assim, novo vigor e revitalizando as artes visuais no momento em que vivemos. Inspirada na série de seminários Como Viver Junto – Situações Romanescas de Alguns Espaços Cotidianos, do semiólogo Roland Barthes , a curadora Lisette Lagnado  enfatizou uma tendência das artes desde os anos 1950, que são as propostas de um reencontro com a vida, com o cotidiano, depois de várias décadas modernistas, em que os artistas aprofundaram as questões intrínsecas aos seus trabalhos. A arte está em crise porque a humanidade também vive um novo momento. Isso exige diferentes pensares, que buscam novas formas estéticas.

Na entrada da mostra, que continua até o dia 17 de dezembro, vemos uma grande instalação com uma escultura de um ser engaiolado, onde a grama que pisa é uma reprodução técnica perfeita, se não for a própria grama. Sua gaiola é cercada por outra e o espaço entre as duas está preenchido com muitos facões, luvas de borracha e foices. Aquele animal fantástico parece ter algo de humano por estar sobre duas patas. A artista sul-africana Jane Alexander costuma esculpir figuras deformadas que possuem olhos, mas não têm a possibilidade de falar.

Mais adiante, a instalação de Thomas Hirschborn é antecedida por um aviso para as pessoas mais sensíveis: “Esta obra contém fotos de mutilação humana”. Dentro de uma imensa estrutura coberta com papelão, há um grande número de instrumentos de operários como alicates, chaves de fenda e martelos. São combinados com livros de vários autores, entre os quais Deleuze , Derrida e Gramsci . Ao lado, também estão as fotos de seres humanos com os corpos mutilados, fotografados após um acidente de trabalho ou outro tipo de agressão. Junto a um homem com o abdômen aberto e as vísceras de fora está “A Lógica do Sentido”.
Os livros estão fechados, impossíveis de serem lidos ou levados. O artista se considera um fã desses autores, como poderia ser de um astro de rock ou do cinema. Ser fã, no entanto, não quer dizer prestar respeito. O espaço é articulado por faixas pretas com letras vermelhas: “Homens em Tempos Sombrios”, “O Grande Medo”, “Culpabilidade Organizada e Responsabilidade Universal” e “Os Insensatos”. O texto “O Belo na Arte”, de Hegel, está cercado por chaves de venda e a imagem de um corpo cheio de cortes.

Depois desses impactos, a mostra vai apresentar muitas outras visões, outras menos sombrias da convivência humana. Muitas idéias têm um teor altamente jornalístico, chegando a ganhar um caráter de documentário, outras vão dialogar com a publicidade, que, enfim, configura a imagem atual das relações de trabalho (produção) com a vida privada (consumo).

Há também um diálogo com a arquitetura, na utilização do próprio espaço de exposição. O argentino Tomas Saraceno fez uma estrutura em forma de bolha plástica, que atinge os três andares do edifício. Os visitantes são convidados a entrar na estrutura. Com a supervisão de bombeiros, a obra funciona como um brinquedo de um parque de diversões. Embora o ambiente ofereça uma certa descontração, a participação exige estar disposto para escalar e correr um possível risco. O brinde é habitar o espaço e ficar suspenso como uma nuvem. Enfim, arquitetura também é divertimento.

Muitas idéias que perpassam a concepção dessa exposição estão relacionadas às obras dos artistas neoconcretistas brasileiros Lygia Clark  e Hélio Oiticica , que ganharam renome internacional. Ambos propõem uma outra relação entre os espectadores e as obras. Oiticica aparece na mostra através das fotos de Ivan Cardoso  e o vídeo de Marcos Donisson, que resgata as proposições do artista nos anos 90, quando ele viveu nos Estados Unidos. Pelos depoimentos gravados, Oiticica aparece como um dos primeiros a propor formas interacionistas de arte. Hoje, a internet desafia os artistas a criarem um uso artístico da rede, naquilo que ela pode oferecer de esteticamente novo e que já não tenho sido feito com outros meios. Por isso, inclusive, as idéias de Oiticica ganham importância novamente e inspiram exposições como essa.
Numa primeira visita, a Bienal cansa, porque é um espaço que se projeta para fora e mexe com o nosso pensamento/percepção, produzindo sensações e sentimentos muitas vezes pouco agradáveis. Mas, numa segunda presença, o sabor aumenta, embora pede sempre um envolvimento, uma disponibilidade que a arte exige para que continue existindo. Também há que se considerar que ali estão 118 artistas compromissados com a “vida da arte”.

 

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