Edição 478 | 30 Novembro 2015

“Nós existimos!”, gritam os povos indígenas. A luta pela terra e pela autodeterminação

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João Vitor Santos

Para Oiara Bonilla, o que faz o Estado brasileiro inábil para entender o índio é não querer compreender um modo de vida alternativo à corrida desenvolvimentista, posta como única alternativa para se manter vivo — e produtivo — no mundo de hoje

Imagine um mundo em que tudo é igual, todos produzem e os que não conseguem isso recebem o afago da mão do Estado para que realmente todos possam consumir e ir e vir livremente. Agora, imagine o que está realmente por trás dessa ideia plástica de Estado Democrático de Direito. Se o exercício é complicado, talvez seja mais fácil olhar para a realidade indígena do Brasil, para se aproximar da realidade. Professora do departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Oiara Bonilla classifica esse cinismo estatal como “abominação política”. “O que está em jogo desde a invasão e da colonização é a apropriação de terra por interesses privados. Hoje, não é diferente; aos interesses privados acrescentam-se os interesses econômicos do próprio Estado Brasileiro (geralmente estreitamente associados a interesses privados, é claro)”, dispara. “No Brasil, a recrudescência da violência contra os povos indígenas à qual assistimos hoje está estreitamente ligada aos retrocessos e aos ataques que os direitos indígenas vêm sofrendo no próprio legislativo e no judiciário”, completa. E a professora ainda lamenta: “Tudo fica por isso mesmo, favorecendo o sentimento de impunidade e abrindo espaço para mais e mais violências e retrocessos. Isso é uma abominação política num país que se diz democrático e livre. Uma vergonha mesmo”. 

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Oiara lembra que esse modelo neodesenvolvimentista adotado pela presidente Dilma Rousseff é política antiga, renovada com a ascensão do PT ao Palácio do Planalto. “A progressiva paralisia política indigenista no governo Dilma vem lá de trás, já nos anos 1990, quando os direitos conquistados pelos índios na democratização do país começam a ser vistos pelo Estado como obstáculos para o desenvolvimento. E isso foi piorando exponencialmente quando o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC passou a ser uma bandeira do governo e que em nome desse desenvolvimento decidiu-se que “tudo pode”, recorda. A professora entende que mais perverso do que a esquerda ter apostado num modelo “desenvolvimentista e ultracapitalista baseado na colonização mercantil” é ainda tomar esta como a única forma de vida possível. “Isso sempre foi colocado para a população, ou melhor, para os eleitores potenciais, pois é nisso que fomos transformados, como sendo a nossa ‘única opção’ política e econômica, a via do desenvolvimento e do crescimento econômico, e que tem esse preço”. Assim, matam-se culturas “menores”, sacrificadas pela salvação da nação. “Os povos indígenas são invisibilizados há 500 anos porque a diversidade cultural e linguística que eles representam coloca em xeque a ideia mesmo de Estado nacional. A solução foi fingir que não existiam simplesmente negando sua especificidade, eliminando-os culturalmente ou fisicamente”. 

Oiara Bonilla é professora de Etnologia indígena no Departamento de Antropologia do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia - ICHF da Universidade Federal Fluminense - UFF e pesquisadora associada ao Centre d'enseignement et de recherche en ethnologie américaniste (EREA - CNRS, Université de Paris Ouest-Nanterre La Défense). Entre 1996 e 1999, trabalhou entre os Karaja e Javaé da aldeia Porto Txuiri, Tocantins. Desde 2000, pesquisa junto aos Paumari da região do médio Purus, Amazonas, concentrando-se nos temas da cosmologia, das transformações e das relações dos Paumari com o patronato amazônico. Em 2013, em consultoria para o Ministério do Desenvolvimento Social, investigou os efeitos do Programa Bolsa Família entre os Guarani Kaiowá da Terra Indígena Takuaraty/Yvykuarusu, Mato Grosso do Sul.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que está em jogo nas disputas por terras entre o dito homem branco e o índio no Brasil? Como entender o genocídio indígena no Brasil de hoje?

Oiara Bonilla - É difícil responder sem entrar na complexidade histórica. Sucintamente, o que está em jogo desde a invasão e da colonização é a apropriação de terra por interesses privados. Hoje, não é diferente, aos interesses privados acrescentam-se os interesses econômicos do próprio Estado Brasileiro (geralmente estreitamente associados a interesses privados, é claro). O genocídio indígena na América é um processo que começa lá em 1492 e não para. No Brasil, a recrudescência da violência contra os povos indígenas (e outras chamadas “minorias”) à qual assistimos hoje, está estreitamente ligada aos retrocessos e aos ataques que os direitos indígenas vêm sofrendo no próprio legislativo e no judiciário, assim como ao clima de retrocesso geral que estamos vivendo. 

Exemplos desse clima é um deputado federal se sentir autorizado a ameaçar outro publicamente no plenário da Câmara, ou a vociferar um discurso abertamente racista em uma sessão parlamentar e sequer se preocupar com quebra de decoro ou algum tipo de sanção . E são inúmeros os ataques aos direitos indígenas, desde a possibilidade de haver uma PEC 215  que coloca em risco um direito fundamental já adquirido, até a criminalização de lideranças indígenas ou a abertura recente de CPI contra o Cimi  e a Funai . Tudo isso me parece participar na recrudescência da violência contra os índios.

Essa violência jamais cessou. Ela só tem piorado sem que isso se torne um problema político nacional, nem acarrete nenhum debate, nem tenha consequências para seus autores. O ataque a aldeias e retomadas de terras indígenas por pistoleiros armados a mando de fazendeiros em Mato Grosso do Sul, a organização de um leilão de gado nesse mesmo estado, no final de 2013, para arrecadar dinheiro e contratar “empresas de segurança” que fazem papel de milícia, as ameaças de mortes, os assassinatos de lideranças, e por aí vai. Tudo fica por isso mesmo, favorecendo o sentimento de impunidade e abrindo espaço para mais e mais violências e retrocessos. A abertura recente da CPI contra o Cimi  e agora contra a Funai e o Incra  vão reforçar ainda mais essa dinâmica genocida, colocando no banco dos réus (e exclusivamente a pedido dos inimigos da causa indígena) os defensores dos direitos indígenas e os responsáveis do estado pela garantia desses direitos. Isso é uma abominação política num país que se diz democrático e livre. Uma vergonha mesmo. 

IHU On-Line - Como avalia a política indigenista ao longo dos 13 anos de governo petista? Em que medida o projeto desenvolvimentista do governo de Dilma Rousseff suplanta uma política indigenista de preservação dos povos originários?

Oiara Bonilla – A progressiva paralisia política indigenista no governo Dilma vem lá de trás, já nos anos 1990, quando os direitos conquistados pelos índios na democratização do país começam a ser vistos pelo Estado como obstáculos para o desenvolvimento. E isso foi piorando exponencialmente quando o Programa de Aceleração do Crescimento - PAC passou a ser uma bandeira do governo e que em nome desse desenvolvimento decidiu-se que “tudo pode”, tratando o que estiver pela frente: povos, floresta, movimentos sociais etc. como meros obstáculos a serem contornados pela máquina desenvolvimentista. É uma opção de governo, não há o que negar.

O caso de Belo Monte  é emblemático porque escancara essa opção desde o início (e demonstra sua relação com um modelo que vem lá da época da ditadura militar), assim como a votação do Novo Código Florestal que demonstrou com todas as letras que o Estado não recuaria frente a absolutamente nada para se embrenhar na via do desenvolvimentismo predador. É isso: a esquerda optou por um modelo desenvolvimentista e ultracapitalista baseado na colonização mercantil do território e na exploração de seus recursos naturais (e o Brasil não é o único caso, é só observar o que está acontecendo nos países vizinhos ditos também de “esquerda”). Isso sempre foi colocado para a população, ou melhor, para os eleitores potenciais, pois é nisso que fomos transformados, como sendo a nossa “única opção” política e econômica, a via do desenvolvimento e do crescimento econômico, e que tem esse preço: “não há alternativa”, dizem. Hoje, o péssimo desempenho econômico do país e as crises ambientais nos colocam na frente dos fatos: crise econômica, retrocessos legais absurdos (as mulheres estão nas ruas e apontam para alguns deles há semanas), catástrofes ambientais monstruosas e mais do que anunciadas (lembrando aqui do assassinato do Rio Doce pela Vale e a Samarco, e de Belo Monte, Jirau, Santo Antonio e as demais por vir).

Pararam as demarcações, congelaram-se as homologações de terra (ver o caso da Terra Indígena Munduruku Sawré Muybu que está parado apenas porque sua finalização implica questionar os projetos de barragens no Tapajós)  violaram-se as convenções e acordos internacionais ratificados pelo Brasil e que garantem a consulta prévia, livre e informada dos povos tradicionais que habitam territórios a ser explorados pelo Estado, etc.

Renovação na Funai

Houve um só ponto importante, sim, que foi a reforma da Funai  e a renovação completa de seus quadros, com contratação de profissionais novos e uma reestruturação interna importante. Isso era indispensável. Mas a falta de recursos e o descaso evidente dos quais a instituição sofre me parecem fazer que hoje, lá na ponta, nas aldeias, pouca coisa mudou. Além do que, a saúde e a educação indígena também estão em péssimo estado. 

IHU On-Line - De que forma podemos compreender a inabilidade política brasileira para compreender a questão indígena?

Oiara Bonilla – O Estado brasileiro não está, nem nunca esteve interessado em compreender a questão indígena — as questões, aliás, porque são várias. Os povos indígenas são invisibilizados há 500 anos porque a diversidade cultural e linguística que eles representam colocam em xeque a ideia mesmo de Estado nacional. Todo Estado se depara problematicamente com sua diversidade interna (vejam a França com sua diversidade linguística sendo sistematicamente e historicamente anulada e uniformizada pelo Estado, a Espanha com suas questões regionais, etc.). Minorias e diversidade são consideradas “pedras no sapato” por qualquer Estado. Aqui a solução foi, por um lado, fingir que não existiam (enquanto povos, distintos, diversos, autodeterminados) simplesmente negando sua especificidade, eliminando-os culturalmente, ou fisicamente. Lembremos que o SPI  era o Serviço de Proteção aos Índios para sua transformação em “trabalhadores nacionais”. Ou seja, localizá-los, protegê-los e garantir sua transformação em camponeses ou proletários.

A única visibilidade concedida é a do emblema nacional (de rendimento fraco, se comparado a emblemas nacionais de Estados como o México, ou países andinos, por exemplo) a partir de uma imagem reconstruída do índio romântico, “genérico”, aquele que é mobilizado nas escolas no Dia do Índio, apenas como uma espécie de “fundo de nacionalidade” que pode servir para justificar algum tipo de especificidade propriamente brasileira. Só. Então, não há compreensão. Nem vontade de compreensão. Basta olhar os manuais escolares e o tipo de conhecimento que transmitem sobre os povos indígenas e sobre suas línguas e costumes, consolidando ainda aquela ideia de “elemento indígena” de uma suposta democracia racial fundada na fusão de um “elemento europeu”, com um “elemento africano” e um “elemento indígena”. Ou aquele discurso presidencial sobre a “mandioca”  que ficou tristemente famoso. Participa da mesma lógica.

O que os povos indígenas reivindicam hoje com cada vez mais força é, antes de mais nada, a afirmação de sua existência, pois ela é pura e simplesmente negada há cinco séculos. “Nós existimos!” eles gritam, ocupando o Congresso, retomando terras, manifestando, fazendo filmes, escrevendo livros… E gritar “nós existimos” é afirmar que isso não é possível sem a terra e sem a garantia de sua autodeterminação enquanto povos diversos dentro do chamado Estado. 

IHU On-Line - Por que a demarcação de terras indígenas no Brasil é lenta e quais os riscos de se transferir a atribuição do Executivo para o Legislativo, como prevê a PEC 215?

Oiara Bonilla – A PEC 215 é um projeto de demolição do artigo 231 da Constituição Federal promulgada em 1988  e que reconhece e garante aos povos indígenas sua organização social, línguas, tradições e direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. A palavra “originários” é essencial porque se trata de uma garantia que historicamente antecede a própria legislação, já que os índios existiam aqui antes mesmo do Estado brasileiro existir. O artigo reconhece a dívida histórica do país em relação aos povos originários. O fato de essa garantia ser de responsabilidade do Poder Executivo é uma forma de garantir que os processos de reconhecimento e legalização das terras indígenas se façam de forma independente dos interesses políticos (e políticos partidários) que vigoram no legislativo. Não é difícil imaginar o que acontecerá caso a PEC 215 for aprovada e as demarcações passarem a depender do aval do legislativo. Isso significará a aniquilação pura e simples das demarcações de terra e do reconhecimento de terras indígenas no país, além de colocar em risco também a criação de novas Unidades de Conservação.

O texto da PEC foi sendo modificado e ampliado (para pior) no decorrer de suas andanças pelos corredores de Brasília. Agora, ele inclui o “conceito” de marco temporal (isso vem lá das condicionantes de Raposa Serra do Sol ) que para completar o quadro só permitiria o reconhecimento de terras indígenas que estivessem efetivamente ocupadas em 5 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição). Isso é simplesmente uma aberração histórica, além de mais uma violência contra os povos indígenas, considerando que inúmeras populações foram exterminadas, deslocadas, expropriadas de suas terras ao longo do tempo. Isso é incontestável. Há diversos outros retrocessos graves embutidos na PEC, como a impossibilidade para os índios de solicitar ampliação de suas terras, a possibilidade para o Estado de abrir estradas em terras indígenas, a possibilidade do arrendamento dessas terras, entre outros. 

IHU On-Line - Como avalia a situação dos povos indígenas amazônicos? Em que medida o avanço de pesquisas e exploração comercial da floresta tem também ameaçado os índios?

Oiara Bonilla – A situação dos povos indígenas amazônicos é tão precária quanto a das outras regiões porque estão sendo alvo da mesma política. Há uma diferença em relação à dimensão das terras que estão legalmente reconhecidas e tendem a ser maiores no norte (por razões óbvias de se tratar de regiões onde a apropriação fundiária pelos interesses privados é mais recente). Em compensação, vivem em regiões de mais difícil acesso e onde as questões de saúde ou de invasão de terras é de mais difícil resolução. Quando há uma epidemia no Javari ou no Médio Purus, a logística para responder a uma situação de crise é mais complexa e, portanto, mais demorada.

Se no restante do país o desafio principal (não exclusivo) é o reconhecimento de terras indígenas que hoje estão nas mãos de latifundiários ou grandes empresas, na Amazônia os povos amazônicos estão sofrendo sobretudo as investidas do próprio Estado, com as obras do PAC, as estradas, as hidrelétricas, principalmente. Por outro lado, o processo de apropriação fundiária por interesses privados continua na região e vem acelerando, seguindo sempre aqueles mesmos passos: desmatamento (madeira), grilagem, apropriação ilegal e violenta das terras (assassinato de camponeses, índios e seringueiros que nelas habitam), desmatamento (venda da madeira e queimada para formação de pastagens), criação de gado, e quando a pastagem não rende mais, plantação de soja, milho, ou outras commodities compatíveis (ou geneticamente adaptados) com o clima e o solo.

Situação hoje

No sul do Amazonas (região da tríplice fronteira entre Rondônia, Acre e Amazonas) a frente do desmatamento está atingindo as terras indígenas, no município de Boca do Acre (AM) assim como no sul do município de Lábrea (AM). Nessas regiões vêm sendo registradas ações de grileiros através de verdadeiras milícias armadas que assassinam lideranças camponesas e seringueiros. As queimadas na Amazônia este ano atingiram uma dimensão descomunal. A fumaça cobriu o estado do Amazonas todo durante mais de um mês.

Outras intervenções na floresta

A questão das pesquisas e da comercialização da floresta e de seus produtos é ainda um outro tema. Conheço mal esse tema por isso não me sinto muito à vontade em responder longamente. O que é certo é que a floresta se tornou mais um alvo dos grandes interesses comerciais, principalmente farmacêuticos e cosméticos. Isso se traduziu recentemente pelo famoso PL 7.735/2014  para flexibilizar e favorecer o acesso do grande capital (pesquisas financiadas por grandes empresas privadas entram totalmente nessa categoria) aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais sobre biodiversidade. É isso, o Legislativo a serviço dos grandes empresários e dos interesses privados… O próximo, se não me engano, vai ser o novo código da mineração…

IHU On-Line - O que o genocídio de Mato Grosso do Sul revela sobre a relação de índios e brancos no Brasil? Quais as diferenças e semelhanças nas lutas Guarani Kaiowá  e dos povos amazônicos?

Oiara Bonilla – O genocídio indígena em Mato Grosso do Sul revela que continuamos vivendo numa sociedade colonial. E que a opção do Estado continua sendo a de invisibilizar os povos indígenas e de preferência aniquilá-los, tratando-os sempre como obstáculo ao “desenvolvimento”, noção que é aqui entendida em sua acepção mais rala e etnocêntrica. E aqui significando capitalismo de mercado, acesso ao consumo e uniformização cultural. Estamos há léguas e léguas de qualquer ideal do que foi chamado em tempos remotos de “socialismo”. 

Uma especificidade da luta Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul me parece residir no fato de que esses povos estão enfrentando o que os outros povos ainda vão enfrentar no futuro. Lá está o futuro que espera os povos indígenas do restante do país se as coisas continuarem como estão, infelizmente. Os Guarani foram expropriados de suas terras, confinados em reservas, e sistematicamente exterminados. Agora, no lugar, o Estado lhes concede uma série de políticas públicas. Expropriaram suas terras e em contrapartida concedem-lhes cestas básicas, Bolsa Família, salário maternidade, escolas e saúde (de qualidade muito irregular). E isso é uma realidade que está se instalando no país todo. Seu efeito perverso estrutural é esvaziar as terras indígenas, drenando seus habitantes para as cidades e tornando assim essas mesmas políticas públicas cada vez mais essenciais e indispensáveis, e assim vai… É um processo que parece inexorável e sem volta.

Resistência

Apesar de tudo isso, os povos indígenas de Mato Grosso do Sul continuam vivos e de pé. E continuam lutando. Falando suas línguas e reivindicando suas terras, vivendo em conformidade com seu modo de vida, um certo modo de “estar no mundo” que configura a forma guarani de existir e que é central para eles. Nesse sentido são visionários e protagonistas, sem dúvida alguma, de uma luta absolutamente essencial para todos os povos indígenas e para todos nós. Porque se pararmos para refletir um pouquinho, do jeito que a coisa vai, todos nós estaremos sujeitos a essas condições precárias de vida, em pouco tempo: sem terra para plantar, sem casa para viver, dependendo da “generosidade” do Estado para alimentar nossos filhos, num meio ambiente degradado, envenenado por agrotóxicos e resíduos industriais, isto é, deteriorado ao extremo. 

IHU On-Line - Qual o caminho a percorrer para conciliar interesses de povos indígenas e produtores rurais? Como fazer da experiência indígena inspiração para outro modelo de produção?

Oiara Bonilla – Não sei se cabe aqui a palavra conciliar. Pelo simples fato de que os povos indígenas estão sendo sistematicamente atacados pelos interesses ruralistas, principalmente, configurando então muito mais uma guerra do que um simples conflito de interesses. Os interesses financeiros do agronegócio não são conciliáveis com o respeito à diversidade, com o reconhecimento do direito à terra, nem com o respeito ao meio ambiente. Basta ver no que Mato Grosso do Sul e Mato Grosso foram transformados em poucas décadas. Desertos de monocultura.

O desafio aqui é pensar em outro modelo de sociedade e se perguntar de verdade: em que mundo queremos viver? E que mundo queremos deixar aos nossos filhos? E isso não é uma pergunta retórica e muito menos utópica. Ela foi colocada muitas vezes ao longo da história do Ocidente. Trata-se de uma pergunta política da maior importância. E está mais do que na hora de ela estar no centro do questionamento político atual.

Experiência indígena

Não creio que os povos indígenas tenham a receita milagrosa para salvar a nossa sociedade, nem cabe a eles esse papel (só faltava essa!). Quando se diz que “basta olhar” para os modelos indígenas de produção, trata-se de uma forma de afirmar: “vejam, outro mundo é possível!”. Na verdade, outros mundos são possíveis e podem conviver. A experiência zapatista exposta em encontro no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro - IFCS (Resistências Indígenas: as lutas zapatistas e Guarani Kaiowá, no Rio de Janeiro)  apontou exatamente para isso. Os povos indígenas são povos que sabem viver e se constituem “sem Estado” (na forma como nós entendemos isso) ou mesmo “contra o Estado” (no sentido dado à expressão pelo antropólogo Pierre Clastres ).

Isso não significa que tenhamos que copiá-los ou que esse é o caminho da salvação, mas que os modelos indígenas mostram que a variação é possível, que ao contrário do que os economistas e dirigentes mundiais nos dizem há décadas, não é verdade que a humanidade não tem escolha (que ela só pode seguir o caminho do desenvolvimento e do crescimento econômico, que não há outra via possível). Mas para isso precisamos resgatar muito seriamente a ideia de política e do que é a política e do que é fazer política. Porque se trata de uma questão política mesmo, no sentido primeiro e forte da palavra. 

IHU On-Line - Como assegurar que os índios possam viver plenamente sua forma de vida? Qual o papel do Estado e da sociedade civil nesse processo?

Oiara Bonilla – Não acho que se tenha que integrar ninguém, a própria palavra integrar implica uma violência. O desafio é conceber um Estado onde todos caibam, com suas especificidades, onde haja espaço para a diversidade (para além dos espaços ‘condescendentes', como os das cotas raciais ou dos grandes discursos sobre tolerância, que não passam de discursos, pois abrir espaço não é tolerar. Abrir espaço é abrir espaço e respeitá-lo seriamente). Trata-se de uma questão política da maior importância e a questão de que mundo queremos deixar a nossos filhos é crucial e central hoje. Isso também se traduz aqui, mais localmente, em parar e pensar que Brasil queremos para o futuro. Não é possível inventar outra coisa? Será mesmo? Os povos indígenas são vítima de um extermínio físico e cultural implacável há 500 anos e estão aí, resistindo: a massacres, a catástrofes ecológicas, a invasões de terra, a expropriações, a epidemias, à catequização, à missionarização, à escravidão, e continuam falando suas línguas, fazendo seus rituais, tratando seus doentes, educando seus filhos, transmitindo seus conhecimentos e preservando suas terras e seu entorno. Recusam-se a deixar de ser quem são e lidam incessantemente com a intrusão do Estado e dos ‘brancos’ em seus assuntos internos. Realmente queremos que isso continue assim? Esse é o tipo de país que desejamos ser? 

Talvez, o papel do Estado poderia começar a ser pensado de outra forma, esforçar-se em conhecer (sua diversidade) e assim conhecer-se a si próprio (enquanto Estado no qual vivem e sobrevivem povos diversos). E nós também (a sociedade civil) poderíamos parar de olhar fixamente para o além-mar e seus grandes modelos (todos periclitantes, diga-se de passagem) e nos perguntar: quem somos nós? De onde viemos e para onde vamos? Que país queremos? Sem dúvida estou sendo ingênua, mas me parece que conhecer e compreender são dois termos em desuso atualmente e que poderíamos resgatar para atingir em algum momento o sentido da palavra respeitar e da expressão viver junto. 

IHU On-Line - Qual o impacto de políticas públicas como o Bolsa Família em povos indígenas? Elas dão conta da necessidade e da especificidade da forma de vida indígena ou fragilizam e condicionam os povos?

Oiara Bonilla – De forma geral, parece-me que as políticas assistencialistas são uma forma renovada de tentar “integrar” os povos indígenas à população nacional. A longo prazo, o efeito é o esvaziamento das terras indígenas e a inserção (em muitos casos forçada) na sociedade de consumo. Não creio que, no longo prazo, os impactos de políticas como o Bolsa Família sejam bons para os povos indígenas, porque essa política é a negação mesmo da centralidade da relação que estes povos têm com a terra. 

Por outro lado, é preciso hoje olhar para os contextos locais. E aí evidentemente há questões de sobrevivência pura e simples. É o caso de Mato Grosso do Sul, onde a supressão do Bolsa Família seria uma catástrofe humanitária, justamente porque os Guarani Kaiowá foram expropriados e porque as poucas terras que conseguiram reaver foram anteriormente devastadas pela monocultura de soja, cana ou milho e hoje são estéreis ou praticamente irrecuperáveis, porque os rios estão contaminados, etc. Ou casos como em regiões do norte do país, onde a introdução do dinheiro através do benefício social quebrou relações de dependência com patrões e sistemas de escravidão pela dívida. Então, é uma pergunta complexa que implica o conhecimento de cada caso. No caso da maioria das políticas públicas é assim, uma vez implementada, sua eliminação súbita pode ter efeitos piores do que os efeitos negativos que ela já tem. Seria necessário pensar então em como e por que caminho poderíamos escapar agora a ela. E isso provavelmente não seja dissociável da questão política que evoquei acima e que deveríamos nos colocar com urgência: Quem somos nós? De onde viemos e para onde vamos? Que país queremos? ■

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