Edição 206 | 27 Novembro 2006

O quarto das ferramentas

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A seguir, publicamos o artigo traduzido de Enrique Lynch , veiculado originalmente no jornal El País, em 29-04-06. Nele, Lynch comenta os dois volumes que reúnem os cadernos de trabalho escritos por Hannah Arendt entre 1950 e 1973. Trata-se de mais de mil páginas de notas de leitura e apontamentos da pensadora alemã, cujo centenário foi completado em 14-10-2006: Arendt H. y M. Heidegger. Correspondencia 1925-1975 y otros ducumentos de los legados. Barcelona: Herder, 2000, editada por Úrsula Ludtz e Ingeborg Nordmann.

Alguma vez se questiona como se chega a pensar e escrever filosoficamente. Quando vêm à luz os apontamentos de um filósofo, parece que acessamos o âmbito privado em que se supõe se acenderem suas idéias. Ressurge, assim, a infundada esperança de que essa pergunta encontrará uma resposta satisfatória. Sem embargo, a leitura de apontamentos filosóficos é sempre um tanto decepcionante. Por esmerada que seja sua edição – como neste caso -, cedo ou tarde se tem a impressão de revolver os pertences de um morto: tudo está ali, tal como o (a) ausente o deixou, porém falta o sentido que unifica essas anotações, a pauta que hierarquiza e que, ao final, permitiria compreender as notas numa forma consistente; ou então, essa pauta assoma aqui e ali, esporadicamente, porém somente como um fantasma intangível e efêmero. Derrida  expôs esta frustração de forma palmar, demonstrando que nenhuma hermenêutica, por mais sofisticada ou exaustiva que seja, logrará revelar o sentido daquela enigmática anotação póstuma de Nietzsche, escrita entre aspas: “Esqueci meu guarda-chuva”.

Como alternativa a esta experiência um tanto frustrante, o leitor que acede ao escritório de algum filósofo renomado se põe a bisbilhotar e inevitavelmente se comporta como um fetichista jamesiano. Como escusa diz que o faz para encontrar as chaves de seu pensamento, embora saiba de antemão que essas chaves estão em outra parte e, com toda a segurança, na obra publicada. O que busca então? Na realidade, quer saber o que lia, como trabalhava e em que se fixava seu autor, de que modo chegava a pensar como pensava. Para quê? Seguramente para vampirizá-lo. Entretanto, o que seria a filosofia sem os bisbilhoteiros?

A publicação destes cadernos tem, pois, algo de bisbilhotice, mas é uma extraordinária iniciativa editorial, e o trabalho das editoras Úrsula Ludtz e Ingeborg Nordmann é um minucioso estudo filológico de uma multidão de fontes e referências do pensamento de Hannah Arendt entre os anos 1950 e 1973, o período de sua vida intelectual que se registra nestes cadernos. Chamou-se esta edição de “diário”, embora o único aspecto que a assemelha a esse gênero é a continuidade das anotações, já que a periodicidade das notas é mensal e a composição do livro – esplendidamente editado, por certo – não se parece em absoluto com um diário ou com um texto íntimo ou confessional, seja ele, ou não, de conteúdo filosófico. A escritura de Arendt é de um extremo recato, livre de toda tentação intimista, restrita ao mesmo tom de ascética distância em todos os textos e na própria experiência e reflexão; e, como não podia ser de outro modo, tratando-se de uma pensadora tão aristotélica como Arendt – seu pensamento não tem chaves ocultas, de modo que, ao ler estas anotações, mais que folhear num diário que mostra uma filosofia em processo, temos a impressão de entrar no quarto das ferramentas de uma pensadora que, além disso, era muito ordenada.

Arendt lê e comenta os grandes clássicos da filosofia política – segundo observam as editoras – segundo a trilogia As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989-2004. Os cadernos contêm o rastro de seu reencontro com a filosofia política da Antigüidade clássica, cujos autores visita e revisita repetidas vezes, enquanto discute com os clássicos modernos, segundo o teor característico de seu programa de refundação da política. Uma parte considerável das notas – a mais farta – está formada por transcrições de leituras, paráfrases e comentários de textos, muitas vezes citados em suas línguas originais, em grego, em latim e em alguns idiomas modernos, sobretudo em inglês, língua de adoção após a emigração para os Estados Unidos. Retorna uma que outra vez aos mesmos temas: a definição da política, seguindo o enigma da convivência, as fontes da liberdade, a causalidade, as diferenças com Marx, a senda da injustiça, etc., e suas leituras centravam-se na obra de Platão , Kant , Nietzsche, Hegel  e Heidegger , principalmente.

De vez em quando, despontam definições ao modo socrático, e longas elucubrações no tom dos grandes moralistas romanos sobre questões de ética e metafísica, chamando a atenção para a ausência de alusões cotidianas ou políticas explícitas, como também as poucas referências literárias. De vez em quando, algum poema de Rilke , uma passagem de Goethe , Dinesen, alguma referência ao admirado Broch  e, de repente, inadvertidamente, Faulkner.

A verdade, a mentira e o ardil de Heidegger

Como mostra do significativo recato que Arendt mantém ao longo de todo este “diário”, sirva este comentário ao reencontro (ou desencontro?) com Heidegger, em Friburgo, anotado no caderno XI, em novembro de 1952, depois de uma visita ao túmulo de Hermann Broch: “Veja-se como se quiser, não há dúvida que em Friburgo fui a um ardil (e não caí nele). Tampouco há dúvida de que Martin, quer o saiba ou não, está sentado neste ardil e nele se encontra em casa; construiu sua casa em torno do ardil. Só é possível visitá-lo, se ele for visitado no ardil, caso se for ao ardil. Assim, pois, fui visitá-lo no ardil. O resultado é que ele volta a estar sentado sozinho em seu ardil”.

A mesma distância, embora menos hermética, nota-se nas anotações contemporâneas à virulenta campanha desqualificadora da qual Arendt foi objeto após a publicação de seu livro sobre o processo a Adolf Eichmann  (Eichmann em Jerusalém - Uma reportagem sobre a banalidade do mal. Lisboa: Tenacitas, 2004), publicado como informe em The New Yorker, em 1963. Como se pode recordar, a campanha foi orquestrada por setores afins ao sionismo, molestados porque Arendt, que fora sionista em sua juventude, sustentava em seu informe que a culpabilidade de Eichmann – como também a responsabilidade dos chefes da comunidade judaica durante os anos da deportação em massa – não radicava tanto numa natureza perversa ou num agudo sentimento anti-semita, quanto na manifesta incapacidade de Eichmann de refletir sobre o conteúdo moral de suas próprias ações. No caderno XXIV, Arendt parece aludir elipticamente a essa campanha de difamação, quando faz observações sobe a resvaladiça dialética que se instala entre mentira e verdade cada vez que uma questão entra no terreno do público. Ela afirma: a verdade força. Assim, pois, não há verdade que não seja ideologicamente instrumentalizável: “No ‘como as coisas foram realmente’ se esconde um ‘não podia ser de outra maneira” (página 599). No entanto, essa verdade que se funda em fatos construídos por testemunhas é, portanto, fraca, porque “as testemunhas parecem ser muito menos confiáveis que a razão em sua condição falível” (página 613). Por acréscimo – segundo paradoxo -, “na mentira está também a liberdade”, o que indica que “não temos que situar-nos incondicionalmente no solo dos fatos”, dado que o mundo inteiro pode ser uma mentira. E um desassossegador terceiro paradoxo: “O que exige força e valentia não é o fato tremendo da verdade, senão o desamparo, o um contra todos”, porque “é muito difícil aferrar-se a uma mentira” (página 619). Sem dúvida, este e muitos outros paradoxos que incidem em nossa idéia do político – nossa humana maneira de estarmos uns com os outros – são abordadas em sua obra póstuma A vida do espírito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002; no entanto, este “diário” servirá para lançar nova luz sobre a maneira como foram gestados e sua – por vezes – dramática solução teórica.


 

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