Edição 477 | 16 Novembro 2015

Movimentos afro-latino-americanos: unidos pela diáspora e contra a opressão

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Leslie Chaves

De acordo com Laura Cecilia López, apesar das especificidades de cada país, o histórico colonial e pós-colonial une as realidades latinas

O processo de colonização da América Latina, guardadas algumas particularidades, envolveu a exploração de territórios, a ocupação desses espaços e a opressão dos habitantes originários e dos povos que foram levados como força de trabalho para estas regiões, no caso majoritariamente os africanos escravizados, que introduziram a experiência da diáspora onde foram inseridos. No período pós-colonial, conforme a antropóloga Laura Cecília López, também havia um objetivo comum quanto à formação populacional desses países. “A constituição dos Estados nação nas Américas se deu num cenário de geopolíticas globais de raça, que tinham como horizonte o embranquecimento da nação”, aponta.

A partir das similitudes e da troca de informações sobre as diferenças nos contextos sociais e históricos, construiu-se uma rede transnacional de movimentos sociais negros na América Latina, conforme ressaltou a antropóloga, que durante suas pesquisas encontrou reivindicações e pensamentos compartilhados por esses grupos militantes. “Um conceito que ressoou é o de reparação, e esse ponto pode ser tomado como comum às mobilizações afro-latino-americanas: a ideia de reparação pelo crime de lesa humanidade que significou a escravidão, que nos remete a um horizonte almejado pela militância negra de um novo pacto social em cada país das Américas, no qual a sociedade como um todo se responsabiliza por esse passado e os efeitos de racismo até a atualidade”, explica.

Ao longo da entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Laura Cecilia López abordou diversos aspectos do cenário dos movimentos sociais afro-latino-americanos, como as mobilizações de mulheres negras, as políticas públicas direcionadas aos afrodescendentes e a organização política dos movimentos e dos governos na abordagem das desigualdades raciais. A pesar de reconhecer os avanços alerta: “ainda são reduzidas as experiências de transformação institucional mais profunda, que atinjam epistemologias, modos de lidar positivamente com a pluralidade de sujeitos”.

Laura Cecilia López é argentina, graduada em Ciências Antropológicas (Orientação Sociocultural) pela Universidad de Buenos Aires - Argentina, mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Atualmente é professora dos Programas de Pós-graduação em Saúde Coletiva e em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Tem experiência na área das Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia das Populações Afro-americanas, Antropologia do Corpo e da Saúde, Estudos Descoloniais.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Em sua pesquisa em que países latino-americanos foram examinadas as mobilizações afro-latino-americanas? Em linhas gerais, qual o contexto dos movimentos sociais negros latinos foi encontrado? A partir dos dados emergidos desses países é possível se ter uma perspectiva do que ocorre na America Latina como um todo?

Laura Cecilia López - Para responder essas questões devo começar com a minha trajetória de pesquisa e como fui construindo um caminho metodológico para pensar contextos locais e transnacionais em relação às mobilizações afro-latino-americanas. Venho desenvolvendo trabalhos sobre processos identitários e mobilizações políticas negras a partir da monografia de conclusão do curso de Antropologia na Universidade de Buenos Aires (Argentina), que analisou as construções de identidade étnica de afro-uruguaios imigrantes em Buenos Aires em torno da cultura performática do candombe. Dei continuidade na dissertação de mestrado em Antropologia Social (realizado no Brasil, na UFRGS), na qual examinei as reconfigurações do ativismo afro-argentino em face de processos transnacionais e os desdobramentos de um pleito com o Estado sobre a implementação da contabilização dos afrodescendentes no censo nacional argentino. 

Nesses trabalhos, esboçava-se a possibilidade de indagar na transnacionalidade desses processos: seja no primeiro caso, através dos laços étnicos e formas artísticas que atravessavam fronteiras nacionais; seja no segundo, que destacava as conexões de fluxos globais e processos nacionais através das articulações e reconfigurações do ativismo negro. Mas também demonstravam a necessidade de comparar “para ver melhor” as expressões políticas e poéticas da diáspora africana nas Américas, como elas se constituem local e transnacionalmente, e como vêm a interferir no espaço “branco” e/ou “mestiço” da nação. Foi assim que escolhi o Cone Sul como contexto regional e três cidades próximas (Buenos Aires, Montevidéu e Porto Alegre) – mas de três países diferentes (Argentina, Uruguai e Brasil), mas que apresentavam conexões entre si - como cenário local para a realização da pesquisa de doutorado. 

Na tese de doutorado em Antropologia Social (também realizado na UFRGS) analisei itinerários e perspectivas das mobilizações políticas negras contemporâneas no Cone Sul , em cenários de implementação de políticas públicas com enfoque étnico-racial. Na minha argumentação, a partir de levar a sério as perspectivas e as próprias vozes críticas dos meus interlocutores, questiono a ideia de vários intelectuais brancos de que os movimentos negros latino-americanos são produto de uma “imposição” do imperialismo estadunidense através de fundações e financiamentos globais para os países periféricos, pressupondo a não existência de racismo nas sociedades latino-americanas. 

Nesse sentido, proponho pensar que a dimensão transnacional dos movimentos negros é inerente à própria ideia e historicidade da diáspora africana nas Américas e sua ligação com a experiência de escravidão, que provocou o deslocamento forçado e violento de milhões de africanos dentro do sistema-mundo criado com a colonização e o capitalismo; com a desumanização de sujeitos negros e ameríndios, através de relações coloniais que tem efeitos até hoje; com uma experiência de raça que vincula tempos e espaços (o que vivenciaram nossos ancestrais, forma parte da nossa corporeidade); com se constituir como um coletivo com conexões, trânsitos e perspectivas culturais para além das nações e crítico das ideologias nacionais baseadas na ideia de homogeneidade, seja pela mestiçagem ou pelo branqueamento. 

Lembremos que a constituição dos Estados nação nas Américas se deu num cenário de geopolíticas globais de raça, que tinham como horizonte o embranquecimento da nação. Nos diálogos em campo e com literatura da área, reconstitui um cenário em que a Conferência Mundial Contra o Racismo , organizada pelas Nações Unidas, e realizada em Durban, África do Sul, em 2001, se tornava central para entender os movimentos afro-latino-americanos, tanto por ter sido um espaço propício para se pensar como coletivo e alcançar uma visibilidade ao denunciar o racismo nos países latino-americanos (pensemos que em épocas anteriores a visibilidade mundial do racismo estava vinculada ao Apartheid  sul-africano e ao regime Jim Crow  do sul dos Estados Unidos), quanto por pactuar com os diferentes Estados um plano de ação a ser desenvolvido em cada país em relação a políticas públicas antirracistas. Então, ao longo do meu campo pude acompanhar tanto processos preparatórios da Conferência na Argentina e no Uruguai, e seus desdobramentos e efeitos nas políticas, incluindo já nesse período meu campo no Brasil. 

Um conceito que ressoou nesses diálogos com a militância negra é o de reparação, e esse ponto pode ser tomado como comum às mobilizações afro-latino-americanas: a ideia de reparação pelo crime de lesa humanidade que significou a escravidão, que nos remete a um horizonte almejado pela militância negra de um novo pacto social em cada país das Américas, no qual a sociedade como um todo se responsabiliza por esse passado e os efeitos de racismo até a atualidade. 

 

IHU On-Line – Quais aspectos você destaca como mais marcantes da experiência de militância negra em cada um dos países pesquisados? Em que se distanciam e se aproximam os processos de mobilização nesses países? 

Laura Cecilia López - Do meu campo na Argentina, desde finais da década de 1990 até o ano 2005, posso destacar as mobilizações contemporâneas dos afro-argentinos que se retroalimentaram com a chegada de imigrantes afro-latino-americanos e africanos a partir da década de 1980, com grandes tensões para se definir como movimento. O grande desafio dessas mobilizações me parece ser a desconstrução do imaginário nacional que apagou quase que completamente a presença negra (embora a produção cultural que mais caracteriza o país internacionalmente seja o tango, com raízes afro até no seu próprio nome...).  

O processo pós-Durban fortaleceu um órgão criado na década de 1990, o Instituto Nacional de Combate a la Discriminación – INADI, mecanismo ressaltado nas avaliações internacionais após Durban. Em seus primeiros anos, atendia basicamente as manifestações antissemitas, porém, a partir de 2003, foram ativados fóruns internos ao INADI para tratar outras temáticas, entre elas, a discriminação racial contra os afrodescendentes, indígenas e imigrantes latino-americanos e africanos; e assim orientar as políticas promovidas pelo Instituto. O processo Durban abriu espaço também para a discussão sobre a contabilidade dos afrodescendentes no censo argentino como um processo de reconhecimento desse segmento da população no espaço da nação.

No caso do Uruguai, no campo realizado entre 2006 e 2008, me deparei com um movimento negro contemporâneo com uma forte inserção internacional remetida às décadas de 1990 e os anos 2000 (foi bastante importante a presença da delegação afro-uruguaia na Conferência de Durban), e com um processo de fragmentação da organização que foi central nessa internacionalização. Esta reconfiguração parecia particularmente derivada de tensões de gênero, sendo que a maioria das novas organizações eram de mulheres negras. Também percebi que os laços étnicos que conformam uma coletividade na linguagem do candombe eram retomados pela militância como força identitária. O trânsito é fluido entre esses universos sendo que os próprios militantes “políticos” tem laços pessoais, de parentesco, de vizinhança, e experiências próximas ao universo do candombe. Uma militância baseada na linguagem da família e da vizinhança. 

Confrontei-me também com uma situação particular de mudanças políticas aceleradas, relacionadas com a posse do Frente Ampla  do governo nacional e a inserção de militantes negros na esfera do Estado. A construção da trama de políticas públicas com perspectiva étnico-racial toma um novo impulso e são criados escritórios em diferentes órgãos do governo para orientar as políticas para a equidade racial.

No Brasil, no campo realizado desde o ano 2005, identificamos um movimento negro contemporâneo com uma grande pluralidade e expandido a nível nacional, que começa com ações disseminadas pelas organizações nos anos 1970 nas diferentes cidades do Brasil e com uma tentativa de unificação da luta antirracista com a criação do Movimento Negro Unificado – MNU a finais dessa década. A junção da militância negra com a participação em partidos políticos (particularmente o Partido dos Trabalhadores) e em sindicatos ao longo dos anos 1980 e 1990 apresentou um espaço de disputas e alianças a partir de visões da sociedade diferenciadas, mas que reforçaram a intervenção do movimento negro na esfera pública no sentido de constituir problemas sociais legitimados que resultassem em políticas públicas.

Observamos uma militância com múltiplos pertencimentos e relações, inserida em partidos políticos e outros movimentos sociais. A militância articula espaços negros, com organizações que vão das que gravitam nos laços familiares e de vizinhança até entidades de alcance nacional. Percebi tensões e alianças em torno de discussões elaboradas pela militância de como interpretar as relações de poder no Brasil: relacionando raça/classe, raça/território, raça/gênero, para dar forma a projetos políticos negros. Estas distinções delinearam ações e demandas que se expressam hoje de maneira convergente em torno das discussões sobre políticas de ação afirmativa: de acesso à educação, saúde, direito a terras e territórios étnicos, mercado de trabalho. 

Os processos de mobilização nesses três países se distanciam pelas conjunturas locais diferenciadas, em termos de relações raciais e de historicidade da população negra nesses três países que é muito diferente: na Argentina, com uma invisibilidade gritante da população negra; no Uruguai, com uma presença cultural importante através do candombe (embora no imaginário uruguaio seja um gênero artístico identificado como símbolo nacional e não necessariamente à população negra, mas que na sua vivência cotidiana sim corporifique uma experiência e memória negra); no Brasil, com uma presença forte da população negra, embora no sul exista uma invisibilidade, mas com um cenário de visibilizar o racismo como constituinte da sociedade. 

Algumas similitudes foram observadas em termos de lógica política: a dinâmica de segmentariedade e aliança foi algo que me chamou a atenção nos três países e que pode ser pensado em termos mais cosmológicos ou cosmopolíticos. Nesse sentido, interpretei uma lógica que implicitamente questiona ao Estado ocidental, que se pretende Um e que pretende uma população que opere com a mesma lógica classificatória. A definição de demandas da militância, por um lado, parece se enquadrar na lógica das divisões do Estado (saúde, educação, etc.), mas por outro a questiona pela sua própria dinâmica e por ser um coletivo que se conforma a partir de outras dimensões, como ressaltei em termos da diáspora, que superam o espaço e o tempo restrito da nação.

 

IHU On-Line – As mobilizações afro-latino-americanas se articulam na América Latina? De que modo? Que reflexos esse modo de organização tem no contexto das lutas dos movimentos sociais negros?

Laura Cecilia López - Sim, se articulam. Nas minhas pesquisas reconstituí a conformação de redes transnacionais de ativistas organizados em torno de causas coletivas antirracistas, que encontraram um cenário mundial favorável a partir da década de 1970 em circuitos de identificações através de diferentes realidades coloniais e pós-coloniais e de lutas pela redemocratização em vários países da América Latina. 

Nesse cenário, as mobilizações negras no Cone Sul inseriram a questão racial em contextos em que predominava uma noção de movimento social vinculada à classe. Nos anos de 1990, estas redes se disseminam – paradoxalmente - com a expansão do neoliberalismo e com o foco de atores globais em temáticas afrodescendentes e indígenas como objeto de financiamento e parceria com Organizações Não Governamentais - ONGs na América Latina. Como já mencionamos, a Conferência de Durban de 2001 é um exemplo destas articulações locais-globais. 

Podemos vislumbrar as ações da sociedade civil organizada junto a agências internacionais que promoveram o evento e pressionaram os Estados da América Latina a remodelar ou mesmo criar instituições e políticas com o propósito de reparar às populações afrodescendentes. Esses reordenamentos transnacionais tiveram vários impactos nos planos nacionais. Entre eles, contribuíram para a legitimação de espaços públicos de debate sobre relações raciais nos diferentes países da América Latina, e a implementação de políticas públicas com perspectiva étnico-racial.

 

IHU On-Line – As agendas das mobilizações afro-latino-americanas apresentam pontos em comum? Quais? Como esse fato se reflete na luta dos negros na América Latina?

Laura Cecilia López - Sim, vou dar o exemplo das discussões para incluir nos censos da América Latina a contabilização da população negra. Esta demanda vem da década de 1990, quando começaram a se expandir redes transnacionais de militantes que dialogavam com agências financiadoras como o Banco Mundial. Relação bastante complexa no sentido desses órgãos estarem incentivando as ações da sociedade civil organizada correlacionadas com as políticas de ajuste estrutural, mas que foi um cenário interessante para as mobilizações afro-latino-americanas, particularmente em países com uma invisibilidade grande (como no caso da Argentina), porque as colocou como atores que podiam ser ouvidos pelos agentes do Estado. 

O caso das discussões dos censos é emblemático, porque sem dados estatísticos para mostrar percentuais de população negra e indicadores sociais desse segmento era impossível qualquer demanda de política pública. Inclusive, como na Argentina, era difícil desconstruir a própria invisibilidade sem a presença no censo. Cabe destacar que, até a década de 1990, o Brasil era o único país da região que tinha algum tipo de registro étnico-racial. Com as discussões sobre multiculturalismo em várias reformas das Constituições nos diferentes países latino-americanos, relacionadas às mobilizações negras e indígenas por direitos de cidadania também foi impulsionado um questionamento e uma transformação nos modos de registrar a diversidade da população nacional por parte do Estado. Isso teve um impacto nos censos de população nos diferentes países. 

No início dos anos 2000, teve uma série de estudos exploratórios em diversos países latino-americanos de como introduzir variáveis que contemplassem aos afrodescendentes financiados pelo Banco Mundial, e ainda experiências assumidas pelos próprios órgãos estatísticos. Assim, a questão da inclusão de variáveis étnico-raciais nos censos passou a ser uma demanda das mobilizações afro-latino-americanas, que teve um desdobramento interessante na rodada de censos do ano 2010, em que militantes, órgãos estatísticos nacionais e organizações globais realizaram uma série de eventos para discutir essa inclusão nos países da região.

 

IHU On-Line – Você aponta que a perspectiva da diáspora inaugura o “momento contemporâneo” dos movimentos sociais negros latino-americanos. Em que consiste a noção de diáspora? Por que e como ela inaugura esse “novo tempo” desses movimentos?

Laura Cecilia López - A linguagem da diáspora foi uma elaboração que emergiu na década de 1960 entre intelectuais e ativistas negros como resposta ao pan-africanismo, entendido em termos de “mesmidade” e comunalidade cultural assumidas a-historicamente como unidade política entre as pessoas negras. Nesse sentido, apontou-se um sentido historizado e politizado da diáspora, entendida como um circuito transnacional de políticas e culturas por sobre a nação e além dos oceanos, que conformara uma arena de contestação e de identificação baseados em pleitos e negociações da diferença. Desta forma, repensavam-se as narrativas históricas e culturais pautadas por noções de centro e periferia e, em uma perspectiva multi-localizada, começava-se a problematizar as experiências identitárias, no caso, de afrodescendentes. 

Nos Estados Unidos, as mobilizações pelos direitos civis ressemantizaram o termo “negro”, que passou a representar uma tentativa de reivindicar uma herança africana que havia sido negada aos norte-americanos negros pelo racismo. Mas, como projeto político historicamente específico localizado na dinâmica sócio-política e econômica nesse país, a ideologia do Poder Negro  não reivindicava simplesmente um passado ancestral pré-determinado. No próprio processo também se construía uma versão particular dessa herança. Segundo Stuart Hall , as lutas por redescobrir as “raízes/rotas” africanas no interior das complexas configurações da cultura caribenha (mas que pode ser pensado também para as Américas de modo geral) e por falar, através desse prisma, das rupturas do navio, da escravidão, da colonização, da exploração e da racialização produziram o sujeito negro nas Américas e a “África” na diáspora. 

Lembramos ainda que a Conferência de Durban, tal como analisa Agustín Láo-Montes , inaugurou um momento de protagonismo dos movimentos afro-latino-americanos na arena transnacional, colocando em primeiro plano noções de justiça baseadas nas experiências diaspóricas na América Latina, que chamam a atenção para a convergência de igualdade racial e pluralismo cultural. Mesmo que tais noções de pluralismo dos Estados nacionais já estivessem postas em cartas constitucionais (no Brasil, por exemplo) nos anos de 1980 e 1990, resultantes de um debate intenso dos períodos de transição de ditaduras, em Durban há uma reconfiguração de noções de justiça que enfatizam os modos como Estados nacionais invisibilizam as conexões entre desigualdade social e racismo, assim como não viabilizam transformações pluriculturais. Nesse sentido, que é proposto que a perspectiva diaspórica inaugura o momento contemporâneo dos movimentos negros.

 

IHU On-Line – As mobilizações afro-latino-americanas contemporâneas têm incidido no âmbito político de proposição de ações institucionais e políticas públicas de combate às desigualdades raciais e ao racismo? De que maneira? Qual é a situação deste cenário?

Laura Cecilia López - Nos diferentes países teve processos diversos, conforme as conjunturas. No Brasil, os efeitos das mobilizações negras vêm sendo grandes, embora bastante dificultados precisamente porque as agendas antirracistas propõem uma desconstrução do que é chamado de racismo institucional, que se expressa de maneira disseminada nas instituições. Se considerarmos o racismo como algo estrutural da sociedade brasileira (junto com classe social, gênero), este provoca situações que afetam a população como um todo, tendo efeitos negativos em mais da metade da população brasileira (se levarmos em consideração os percentuais de população negra do IBGE ). 

Após a Conferência de Durban, e com o Partido dos Trabalhadores assumindo a presidência da nação (pensemos que muitos militantes do movimento negro militavam no PT, fundaram o partido, então tiveram uma incidência direta em vários rumos políticos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva), foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - Seppir, órgão guarda-chuva para as várias políticas com enfoque nas desigualdades raciais e na diversidade étnico-racial. 

A Conferência de Durban, se tornando um espaço de protagonismo dos movimentos afro-latino-americanos, como antes falei, teve um efeito potencialiazador, por exemplo, na discussão de ações afirmativas no ensino superior. Vivenciamos mais de 10 anos de ações afirmativas no Brasil e no momento vemos uma onda conservadora que afeta as várias dimensões da nossa vida social, entre elas, oposições a considerar políticas que desconstruam o racismo. Vivemos também uma crise de legitimidade das políticas redistributivas (e que eu incluiria os sistemas de cotas, já que redistribuem vagas sejam no ensino superior, nos concursos públicos, etc., com um olhar de equidade, de justiça social) que afeta também as ações afirmativas. 

Podemos falar de um certo sucesso no acesso e conclusão de cursos de estudante negros. Porém, me parece que ainda são reduzidas as experiências de transformação institucional mais profunda, que atinjam epistemologias, modos de lidar positivamente com a pluralidade de sujeitos que estão passando por essas instituições. Essa mudança talvez se potencialize quando se pensem ações afirmativas, como em algumas universidades existem, que atinjam a pós-graduação e ainda os concursos de professores. Essa dinâmica deveria também atingir outros domínios públicos: por exemplo, existe a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, com a finalidade de trabalhar os impactos do racismo na vida, na saúde dos sujeitos e coletivos negros. Com mais profissionais negros formados, com currículos universitários que assumam uma perspectiva étnico-racial para pensar a saúde, com ações afirmativas para ocupar cargos por esses profissionais negros formados, poderia ser fortalecida a política.      

 

IHU On-Line – Em um de seus trabalhos você trata da questão das mobilizações negras a partir da concepção do corpo como instância de construção de identidade em contextos racializados. Como funciona a articulação dessas duas concepções para pensar a militância negra?

Laura Cecilia López - Como coloca a autora indiana Avtar Brah , o poder racializado opera em e através dos corpos. Mesmo retomando a Foucault, interpretamos que raça produz efeitos de poder nas populações e nos corpos, como formas de biopoder. Então a centralidade do corpo para entender os fenômenos de racialização das relações sociais é fundamental. Mas ao mesmo tempo, e ai discuto com intelectuais brancos que destacam o poder opressivo de raça (e em muitos casos chegam a propor a eliminação do próprio conceito como categoria de análise), sem entender o poder criativo. Criativo no sentido de resistência, de corporeidade, de estética, etc. 

Me parece que o que os movimentos negros propõem é precisamente desconstruir a racialização das relações sociais e do próprio corpo, que coloca à população negra numa situação de desvantagem e a desumaniza, lhe retira a humanidade. Mas ao mesmo tempo, as mobilizações negras também visibilizam o vínculo entre corpo e raça de maneira a expressar uma diferença, uma pluralidade de experiências, uma incorporação da história, que não pode ser apagada.   

 

IHU On-Line – Em que consiste o deslocamento da concepção de “corpo colonizado” para “corpo descolonizado”? Como se deu e o que significa esse movimento no contexto da América Latina?

Laura Cecilia López - Eu trabalho com o conceito de “corpo colonial” de Frantz Fanon , a partir da inquietação de interpretar as experiências dos movimentos negros na perspectiva de uma filosofia política afro-latino-americana, e busco referenciais também afro-latinos para exprimir essa perspectiva. Um dos pontos centrais propostos pelo pensador afro-caribenho é que a crítica ao colonialismo produz um deslocamento tanto em termos de temporalidade/historicidade (a passagem de uma subjetividade colonial a uma subjetividade decolonial); quanto da espacialidade: a criação política de uma geografia diferente para a subjetividade colonial, que visibiliza a marca colonial, mas retirando a positividade que a produzia. 

O corpo colonial é o lócus principal desse deslocamento, sendo a pergunta crítica da descolonização que lhe dá visibilidade e organiza suas potencialidades. Eu retomo a poesia de Victoria Santa Cruz, Negra Soy , precisamente como expressão poética do deslocamento do corpo colonizado (“me senti negra, como eles diziam, e retrocedi”) ao corpo descolonizado (“no fim compreendi, já tenho a chave, negra sou”), deslocamento que implica o “situar-se como negra”, uma situacionalidade descolonial. Entender esse deslocamento numa perspectiva afro-latino-americana me parece de extrema importância para levar a sério as propostas político-estéticas de justiça racial e da densidade das experiências que corporificam a raça e a diáspora.

 

IHU On-Line - Nessa perspectiva, quais seriam os aspectos mais marcantes da corporeidade das mulheres negras latinas na militância que inclui os aspectos do “gênero” nas lutas negras e da “raça” nas lutas feministas? Como é o cenário das mobilizações de mulheres na América Latina? Há articulação entre as mulheres negras dos países latinos?

Laura Cecilia López - A visibilidade política do corpo negro é uma constante nas mobilizações negras, sejam de homens ou de mulheres. Porém, existem diferentes expressividades desses corpos na articulação de raça e gênero. Seguindo as trilhas dos meus interlocutores em campo, me chamou a atenção que as mulheres negras davam uma visibilidade maior para o “corpo colonial”, no sentido de crítica à própria ideia de mestiçagem, que constitui os ideários das nações latino-americanas. 

O corpo e a sexualidade, assim como a reprodução vinculada à ideologia da mestiçagem, apresentaram-se durante o trabalho de campo como centro das atenções da militância das mulheres negras, vinculando a autonomia sexual em relação à reprodução (um assunto do feminismo) à dupla opressão de gênero e raça, expressa na imagem hipererotizada da mulher negra. 

A crítica de raça e gênero do feminismo negro chama a atenção ao lugar das mulheres negras na reprodução da nação. Se o movimento negro (com um perfil masculino de liderança, questão criticada pelas feministas negras) propõe em sua raiz uma crítica à democracia racial enquanto "mito", questionando as posições desiguais em termos raciais na sociedade brasileira, a crítica do movimento de mulheres negras se faz "corpo" ao atribuir à "mestiçagem" a violência sexual do homem branco colonizador sobre as mulheres africanas e indígenas. Crítica que se constitui por meio da conexão diaspórica desse processo de opressão nas Américas. O corpo da mulher negra se torna visível como objeto de múltiplas opressões e o centro das disputas políticas. Esta violência de raça e gênero aparece como o ponto inicial de uma narrativa subalterna que critica o poder do ponto de vista do corpo que o sofre e produz uma identificação afro-diaspórica.

 

IHU On-Line – Qual a importância das mobilizações das mulheres negras para a militância negra latino-americana?

Laura Cecilia López - As mobilizações de mulheres afro-latino-americanas me parecem de fundamental importância, já que questionam ao mesmo tempo vários sujeitos “totais”: seja “o” sujeito negro (no masculino – geralmente se fala “o negro”), seja “a” mulher (muitas vezes identificada como uma mulher branca, de classe média). As pensadoras feministas negras estão chamando a atenção para a pluralidade de experiências de ser mulher, de ser negra, e assim por diante. As nossas existências são plurais, só que estamos muito acostumados a pensar através de uma filosofia do Um, do Estado, da sociedade ocidental. As filosofias da diferença que questionam esse Um, desestabilizam nosso pensamento e as instituições promotoras de políticas. 

Um exemplo no Brasil são as políticas orientadas para a promoção da igualdade racial separadas das políticas promotoras da igualdade de gênero. Geralmente o esforço de articulação desses conjuntos de políticas tem a ver com a ação da militância. Porque não projetar políticas sensíveis à interseccionalidade de raça e gênero (e outras como, orientação sexual, classe, etc.) se os próprios sujeitos demandantes, particularmente as feministas negras, estão apontando essa experiência complexa de desigualdades? Quer dizer que não levamos a sério como sociedade a complexidade das opressões na nossa sociedade, demanda na esfera pública por vários atores. É interessante porque no Uruguai, existe uma Secretaria da Mulher Afro-uruguaia dentro do Instituto da Mulher, que depende do Ministério de Desenvolvimento Social. Podemos perceber várias interseccionalidades contempladas na inserção da temática, mas, ao mesmo tempo, que política de desenvolvimento social atingiria aos homens negros? Eles entrariam como pobres e não como negros? É complexo porque nossas instituições funcionam na lógica do Um e não da pluralidade.

 

IHU On-Line – O que representa para o cenário de lutas da militância e construção da identidade étnica negra o deslocamento da ideia do “13 de maio” para o “20 de novembro” como data evocativa das lutas dos movimentos sociais negros no Brasil?

Laura Cecilia López - Me parece um deslocamento potente que envolve uma transformação profunda do lugar dos sujeitos negros na nação e para além dela, já que o 20 de novembro foi inspirado não só pelas lutas históricas locais, mas também diaspóricas: as ideias de Negritude , as independências africanas, os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. O dia 20 de novembro como data da Consciência Negra origina-se numa organização de Porto Alegre, o Grupo Palmares, celebração que depois se expande pelo Brasil e por outros países, grupo que reuniu militantes, intelectuais, poetas e escritores e teve como figura central Oliveira Silveira, que se tornou um ícone da intelectualidade afro-brasileira. O comunitarismo do quilombo dos Palmares, proposto pelo grupo, expressava uma liberdade conquistada, substituindo a ideia de liberdade concedida do dia 13 de maio. Produzia-se um deslocamento da colonialidade para a decolonialidade a partir de constituir um sujeito negro que conquista sua liberdade, ator da sua própria história, incorporando o ideário de Palmares.

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Laura Cecilia López - Gostaria de destacar a ideia que perpassou a minha tese de doutorado, e que se relaciona com o que projeto como horizonte de luta no Dia da Consciência Negra: a necessidade de levar a sério a perspectiva afro-latino-americana como uma filosofia política que nos interpela como sociedade para que novos pactos sociais / éticos / estéticos antirracistas possam ser realizados.

 

Laura Cecilia López

Quem eu sou tem a ver com múltiplas experiências da vida, mas com certeza as minhas interlocutoras e interlocutores de pesquisa me ajudaram a constituir a forma como eu me vejo no mundo: me vejo como uma mulher branca latino-americana antropóloga, que questiona a branquitude como sistema de privilégios e como universal ético/estético, comprometida com as lutas políticas/epistemológicas que expressam e reivindicam equidades e pluralidades.

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