Edição 476 | 03 Novembro 2015

Caetano e Gil: Uma trajetória de construção utópica e autorreflexiva do Brasil

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Leslie Chaves

Para Frederico Oliveira Coelho, a obra dos artistas pensa e conta a história do país e expressa o anseio por uma nação vanguardista

A versatilidade e a ousadia artística sempre permearam as carreiras de Gilberto Gil e Caetano Veloso. De acordo com Frederico Oliveira Coelho, esse perfil fez com que a arte de ambos circulasse em espaços bastante diversos da cultura. Eles “transitaram durante boa parte de sua carreira entre os públicos sofisticados e populares. Não só atuaram no âmbito massivo da música popular brasileira — isto é, o rádio, a televisão e a indústria fonográfica —, como sempre estiveram próximos de repertórios de vanguarda através de conversas, trabalhos e relações com intelectuais ligados à poesia concreta, ao cinema experimental, à poesia, à literatura e às artes visuais”, explica o professor em entrevista por e-mail à IHU On-Line

 Esse trânsito intenso entre diversas áreas e públicos, o contato com variadas fontes de influências e ainda o engajamento político atento às demandas dos diferentes momentos conjunturais do Brasil contribuíram para que Caetano e Gil construíssem carreiras sólidas em âmbito nacional e internacional. “Todos esses elementos, aliados, claro, à qualidade dos seus trabalhos, fizeram deles personagens centrais na formação cultural brasileira do seu período”, conforme ressalta Coelho.

Para o professor e pesquisador, o alcance da obra desses dois artistas, individual e coletivamente, chegou tanto à cultura de massa quanto à Academia. Foi sobretudo a Tropicália a responsável por abrir passagem no Brasil para informações acerca do que acontecia com a juventude mundial e por ampliar o repertório cultural do país, a partir de uma concepção arrojada de nação, mas simultaneamente atenta às adversidades. “A grande contribuição de ambos foi por uma política da diversidade de gêneros, etnias e opiniões. Caetano e Gil assumiram uma sexualidade dúbia e reivindicaram a cultura africana no Brasil e a cultura negra brasileira como base de seus trabalhos. Se há uma ‘história do Brasil’ contada nessas trajetórias, é a história de um país sempre em construção utópica pelo viés da diferença e sempre autorreflexivo na consciência de suas mazelas e limites”, aponta.

Frederico Oliveira Coelho é graduado em História e mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutor em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Atua como pesquisador para documentários, sítios eletrônicos, editoras e instituições culturais. Atualmente é professor dos cursos de graduação em Literatura e Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Departamento de Letras da PUC-Rio. Entre suas publicações destacam-se Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado - cultura marginal no Brasil nas décadas de 1960 e 1970 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010), Livro ou livro-me - os escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971-1978) (Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010), Série Encontros – Tropicália (Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2008) e A MPB em discussão – Entrevistas (Belo Horizonte: UFMG, 2005).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Qual a importância de Caetano e Gil para a formação da cultura brasileira na segunda metade do século XX? Qual é o principal aspecto que lhes dá notoriedade nesse contexto? 

Frederico Oliveira Coelho - Creio que é difícil precisar exatamente a importância de dois artistas que transitaram durante boa parte de sua carreira entre os públicos sofisticados e populares. Não só atuaram no âmbito massivo da música popular brasileira — isto é, o rádio, a televisão e a indústria fonográfica —, como sempre estiveram próximos de repertórios de vanguarda através de conversas, trabalhos e relações com intelectuais ligados à poesia concreta, ao cinema experimental, à poesia, à literatura e às artes visuais. Suas canções e suas opiniões tornaram-se patrimônio pessoal de milhões de ouvintes e temas de reflexões críticas que atingiram o centro do pensamento acadêmico nacional. Além disso, os dois, principalmente Gilberto Gil, nunca se furtaram em participar dos desafios políticos do país. Todos esses elementos, aliados, claro, à qualidade dos seus trabalhos, fizeram deles personagens centrais na formação cultural brasileira do seu período. 

 

IHU On-Line – Como vêm se situando ao longo do tempo as obras de Caetano e Gil no cenário cultural brasileiro? E para além do Brasil?

Frederico Oliveira Coelho - Eles sempre tiveram em estado de trânsito entre extremos da divisão cultural moderna, do popular ao erudito, do massivo ao sofisticado. Isso compõe uma trajetória bem sólida, em que seus discos foram comentando as mudanças mais importantes da sociedade e da cultura brasileira e mundial. Desde o momento tropicalista no fim dos anos 1960, passando pela fase internacional do exílio no início dos anos 1970, mergulhando na relação da Bahia e da África com o Brasil, flertando com a black music através do movimento Black Rio , assumindo o rock pop dos anos 1980, se tornando profissionais maduros nos anos 1990 e lançando discos de forma ininterrupta até hoje, todos esses fatos os colocam sempre como referência entre diferentes gerações. No que diz respeito às suas carreiras internacionais, também são sólidas, apesar de em escala reduzida. Nunca foram pop stars mundiais, mas sempre fizeram turnês e são respeitados por nomes de peso em diferentes países. 

 

IHU On-Line – As obras de Gil e Caetano se influenciam reciprocamente? Como se dá e em que aspectos é possível se perceber essa influência mútua?

Frederico Oliveira Coelho - Sim, desde o início dos dois, ainda nos primeiros anos de 1960, eles se tornaram amigos musicais, dividindo repertórios, descobertas, trabalhos. Caetano sempre apontou a excelência musical de Gil como um motor que o ensinou bastante, assim como Caetano foi sempre uma espécie de liderança natural, “organizando o movimento” das ações deles e do grupo de amigos mais amplo ao redor dos dois. Em 1964, ainda em Salvador, ele já estava dirigindo Gil, Gal, Bethânia e outros amigos no espetáculo “Nós, por exemplo”. Mas Caetano viu, em casa, Gil cantar na televisão antes de se conhecerem. Quando vieram para o Rio (Caetano) e São Paulo (Gil), vieram por motivos distintos, mas rapidamente se articularam em amizades e trabalhos. São parceiros de canções, de discos, de projetos, de turnês, de famílias. É impossível que a obra de um não cause profundo impacto na obra do outro.

 

IHU On-Line – Que história do Brasil é contada ao longo dos 50 anos de carreira de Caetano e Gil? Quais são as passagens mais marcantes da narrativa construída pelos artistas?

Frederico Oliveira Coelho - Uma história de um país que precisou, em poucas décadas, sair de uma condição rural, pré-industrial e arcaica para uma situação de sociedade urbana, tecnológica e de massa. Que teve de entender como lidar com a demanda moderna de ruptura com a tradição e, simultaneamente, com a força tradicional da Nação. A geração de Gil e Caetano foi responsável por pensar politicamente e esteticamente essa passagem dramática dos anos 1950/1970 que o país viveu. Claro que um dos momentos culminantes e desencadeadores de conflitos que até hoje permanecem no debate cultural brasileiro foi o breve momento tropicalista de 1967/1968, em que os compositores baianos e seus parceiros marcaram profundamente o imaginário brasileiro ao nos mostrar nossas contradições nesse projeto moderno-conservador que sempre nos serviu de lastro para nos explicarmos. O enfrentamento do componente nacionalista presente nas esquerdas de seu tempo, a abertura das matrizes tradicionais da canção para outras fontes internacionais e industriais, o comentário poético sobre uma sociedade paralisada pelas benesses fugazes de um regime civil-militar, são temas fundamentais ao redor do período dos seus primeiros discos. No mais, a grande contribuição de ambos foi por uma política da diversidade de gêneros, etnias e opiniões. Caetano e Gil assumiram uma sexualidade dúbia e reivindicaram a cultura africana no Brasil e a cultura negra brasileira como base de seus trabalhos. Se há uma “história do Brasil” contada nessas trajetórias, é a história de um país sempre em construção utópica pelo viés da diferença e sempre autorreflexivo na consciência de suas mazelas e limites. 

 

IHU On-Line – Como é a participação de Gil e Caetano no Tropicalismo? De que forma participaram da gênese e construção desse movimento? Qual a importância desse movimento nas carreiras de ambos e na história brasileira?

Frederico Oliveira Coelho - Essa participação está amplamente mapeada em inúmeros trabalhos de todos os tipos e qualidades que foram feitos ao longo dos últimos 50 anos. Os dois são fundadores de uma ideia que teve parceiros fundamentais para que fosse concebida e executada. O talento de ambos se junta ao talento de jovens como Torquato Neto, José Carlos Capinam, Rogério Duarte, Rogerio Duprat, Os Mutantes, Hélio Oiticica, Rubens Gerchman e muitos outros. 

O movimento surgiu espontaneamente, por uma série de contingências e de uma tentativa da mídia e de críticos em sintetizar em uma palavra — um ismo, bem ao estilo das vanguardas modernas — a ação coletiva desses artistas. A importância do movimento também já vem sendo debatida há décadas. Foi marcante, pois despertou debates, se espalhou pela cultura de massa e pela Academia, tornou-se tanto tema de camiseta quanto de teses, virou documentários, enfim, sua atuação em apenas dois anos se desdobrou em muitos outros eventos que reivindicaram ali a sua origem. Por ter sido responsável pela entrada sistemática de uma série de informações globalizadas sobre a juventude mundial em uma época que isso não ocorria no país, também contribuiu para a ampliação do repertório cultural do país. 

 

IHU On-Line – De que forma a experiência do exílio de Caetano e Gil aparece em suas obras?

Frederico Oliveira Coelho - Diretamente nas suas letras e nos discos que fizeram no exílio (cada um gravou dois discos em Londres). Comentaram de formas bem distintas o fato, em que Caetano assumiu um viés melancólico e nostálgico e Gil assumiu um viés universalista e afirmativo. Essas diferenças ficaram evidentes também na relação dos dois com o violão, instrumento de trabalho. Ambos dizem, em entrevistas, que se tornaram compositores mais concentrados e melhores músicos. Além disso, tiveram a possibilidade de conviver com a cena de rock mais intensa do período que era a de Londres. Viram shows de músicos no auge, foram aos grandes festivais como o da Ilha de Wight  e tudo isso contribuiu decisivamente para suas vidas e suas obras. 

 

IHU On-Line – Como as obras de Gil e Caetano dialogam/se contrapõem com outros estilos musicais que circulam no cenário cultural brasileiro? Como se deram tais relações ao longo dessas cinco décadas? Que momento (ou momentos) o senhor destaca como mais marcante?

Frederico Oliveira Coelho - Eles sempre foram antenas ligadas ao que circulava de mais contemporâneo na sua época. Ao mesmo tempo, sempre tiveram capacidade de articular as novidades com o repertório tradicional do cancioneiro nacional. Luiz Gonzaga e Bob Marley, João Gilberto e Pixies, Stevie Wonder e Peninha, Black Rio e Racionais MCs, todos esses e muitos outros sons atravessam suas obras desde o início. Na busca dessa linguagem universal e brasileira, algumas experiências foram mais felizes que outras. Se nos anos 1980 a aproximação com o pop pasteurizado das rádios não resultou em discos potentes, nos dias atuais ambos apresentam trabalhos provocadores e que não são óbvios. Como fã, o momento mais feliz foram os anos 1970, em que suas ideias estavam em diálogo com uma série de experimentações e renovações temáticas da música e da cultura em geral. Mesmo assim, é difícil dizer que momento é mais marcante que outro, pois toda a trajetória deles é coesa e de extrema qualidade. 

 

IHU On-Line - De que maneira o senhor avalia a relação de Caetano e Gil com o público? De que forma foi sendo construído o público desses artistas? Que perfil de público eles tiveram e têm ao longo dos 50 anos de carreira?

Frederico Oliveira Coelho - São muitos públicos para quem está há meio século trabalhando. A relação sempre foi positiva, calcada na formação de um corpo de canções incontornáveis no imaginário nacional do século XX. Suas letras e melodias passam de pais para filhos, frequentam escolas em todas as idades, fazem parte de trilhas sonoras infantis, são estudadas na universidade, tornaram-se standards da história de nossa música, enfim, são obras que estão na corrente sanguínea de todos. Seus públicos sempre aguardam deles provocações, qualidade, inventividade e, ao mesmo tempo, manutenção do mesmo — como ocorre com qualquer clássico forjado na lógica da ruptura. Assim, cada um ao seu modo, eles continuam ampliando e renovando públicos — seja Caetano com sua guinada ao power trio dos últimos três discos, seja Gil se envolvendo diretamente no planejamento e execução de novas políticas culturais para a juventude e os múltiplos povos brasileiros.■ 

 

Leia mais...

- Tropicalismo, “força fatal” da música popular. Entrevista especial com Frederico Oliveira Coelho publicada na revista IHU On-Line, nº 411, de 10-12-2012;

- A música na Semana de Arte Moderna: fluidez entre o erudito e o popular. Entrevista especial com Frederico Oliveira Coelho publicada na revista IHU On-Line, nº 395, de 04-06-2012.

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