Edição 476 | 03 Novembro 2015

A vanguarda caleidoscópica do Brasil expressa na obra de Caetano e Gil

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Leslie Chaves

Para Christopher Dunn, a vasta produção cultural dos dois tropicalistas apresenta para o mundo uma imagem plural e dinâmica do país

Há algum tempo o trabalho de Gilberto Gil e Caetano Veloso é consagrado no exterior. Esse reconhecimento foi sendo construído ao longo da trajetória desses artistas a partir de sua ousadia criativa e liberdade de experimentação. Na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Christopher Dunn aponta que essa riqueza cultural encantou o público norte-americano, que estava habituado a associar a música brasileira prioritariamente à Bossa Nova antes de tomarem contato com a obra tropicalista. “Em meados dos anos 1990 houve, aqui nos Estados Unidos, um surto de interesse na Tropicália, que foi muito tardio, mais de 20 anos depois. Nos anos 1960 não se sabia nada da Tropicália aqui e mesmo depois, nos anos 1970 e 1980, havia pouca informação sobre isso, só mesmo os estudiosos conheciam. Então, a partir dos anos 1990 houve a descoberta dessa música que soava psicodélica, e as pessoas ficaram fascinadas”, conta.

A partir da obra desses dois artistas não só a música e o cenário cultural brasileiro começam a ganhar diferentes nuances aos olhos do mundo, mas também a representação do Brasil no exterior se complexifica e recebe novos referenciais. Como aponta Dunn, “ambos são conhecidos como vozes que não podem ser reduzidas a uma linha, porque eles podem transitar por diversos estilos. Dentro deste contexto amplo, eles são associados, por exemplo, com a louvação da Bahia, vista como um lugar mágico de produção cultural muito forte. Ao mesmo tempo, são conhecidos como artistas que retratam o Brasil com uma sensibilidade crítica, abordando os problemas sociais, como a violência policial, a pobreza, a desigualdade de classe, as questões raciais e de gênero. Esses temas entram na música de Caetano e Gil há muito tempo”.

Christopher Dunn é doutor em Estudos Luso-brasileiros pela Brown University e professor de Literatura e estudos culturais brasileiros na Tulane University, de Nova Orleans, Estados Unidos. Entre suas publicações destacam-se Brutality Garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian Counterculture (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001), além de Brazilian Popular Music and Citizenship (Durham: Duke University Press, 2011) e Brazilian popular music and globalization (Londres: Routledge, 2001), obras das quais é coorganizador. 

Confira a entrevista.

IHU On-Line - De onde partiu seu interesse pelos estudos sobre a cultura brasileira?

Christopher Dunn – Quando eu estava na faculdade tive um professor muito querido que trabalhava com a história latino-americana. Ele era meio brasilianista, mas como historiador, não era musicólogo. Porém, ele tinha uma coleção de discos de MPB e era daquela grande geração dos anos 1960. Ouvindo os discos, eu fiquei apaixonado pela música brasileira. Foi assim que resolvi visitar o Brasil pela primeira vez e fui ficando cada vez mais interessado no assunto.

Depois, decidi fazer uma pós-graduação e durante o curso tive a oportunidade de produzir um programa de rádio. Então nós resolvemos fazer uma edição sobre a Tropicália, porque completava 25 anos de seu surgimento — isso foi em 1992. Naquela época, nos Estados Unidos não se falava da Tropicália, então foi uma das primeiras reportagens sobre o movimento. Nesse período eu conheci Gil, Caetano e Tom Zé , que me concederam entrevistas para o programa. Foi a partir daí que eu percebi que a Tropicália seria um tema perfeito para uma tese. 

Esse foi um momento interessante porque no final dos anos 1980 o David Byrne , dos Talking Heads , lançou um selo de discos chamado Luaka Bop, que ainda existe. Esse selo era dedicado a encontrar música internacional interessante. O primeiro disco que ele lançou foi de música brasileira , e logo depois, em 1990, lançou uma coletânea  de músicas do Tom Zé. Esse álbum foi muito importante tanto para o artista quanto para o público norte-americano e europeu, porque a música dele soava muito diferente, experimental e vanguardista e essa não era a impressão que as pessoas tinham da música brasileira. Antes dos anos 1990 a música brasileira era uma subcategoria de Jazz, era sempre vendida nas lojas nessa seção, por causa da Bossa Nova . O público que ouvia música brasileira em geral apreciava Tom Jobim , João Gilberto  e outros artistas da Bossa Nova. Hoje em dia esse gosto já está muito mais diversificado, as pessoas conhecem vários aspectos da música brasileira.

 

IHU On-Line - Como a música brasileira de uma forma geral é vista no exterior? E nos Estados Unidos?

Christopher Dunn – Como eu estava dizendo, o conhecimento e o gosto pela música brasileira têm se diversificado muito nos últimos tempos. Atualmente é bastante comum ter norte-americanos que conhecem, por exemplo, o forró; há bandas desse gênero aqui e diversos grupos que cultuam músicas do nordeste brasileiro. Tem crescido muito o número de bandas de música brasileira que tocam aqui nos Estados Unidos, tipicamente são formadas por brasileiros radicados aqui e norte-americanos que gostam de música brasileira.

Em meados dos anos 1990 houve, aqui nos Estados Unidos, um surto de interesse na Tropicália. Um crítico do jornal The New York Times escreveu sobre o Tropicalismo e começou a circular mais a música do movimento. Esse interesse foi muito tardio, mais de 20 anos depois. Nos anos 1960 não se sabia nada da Tropicália aqui e mesmo depois, nos anos 1970 e 1980, havia pouca informação sobre isso, só mesmo os estudiosos conheciam. Então, a partir dos anos 1990 houve a descoberta dessa música que soava psicodélica, e as pessoas ficaram fascinadas. Foram relançados aqui os discos tropicalistas, e artistas como Gal Costa  e Os Mutantes  fizeram muito sucesso.

Hoje a Tropicália é uma referência para um público considerável de pessoas que acompanham a música mundial. Também há mais artistas brasileiros se apresentando aqui, o que contribui para construir uma noção muito mais diversificada da música brasileira do que havia cerca de 30 anos atrás.  

 

IHU On-Line - Em geral como são vistos especificamente Caetano e Gil no exterior? E nos Estados Unidos?

Christopher Dunn – Eles são grandes referências para a música e a cultura mundial porque são realmente dois gênios. O fato de Gil ter sido ministro da Cultura também contribuiu para ampliar o conhecimento sobre o trabalho deles. Ele veio muitas vezes aos Estados Unidos, esteve na universidade em que leciono, onde recebeu o título de Doutor Honoris Causa. A atuação dele como ministro atraiu muita atenção, ele apareceu muito na mídia como um administrador cultural, uma referência muito importante, para além de sua carreira de artista. 

No caso do Caetano, o conhecimento sobre ele passou pela sua atuação como intelectual público, muito em função da publicação do livro Verdade Tropical (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), que foi traduzido para o inglês. No início dos anos 1990 ele foi chamado para escrever um ensaio sobre Carmen Miranda  e acho que esse trabalho também despertou o interesse pelo pensamento de Caetano e sua leitura da cultura brasileira. 

Então ambos têm um prestígio, mas não uma referência de massa, atingem um público predominantemente de estudantes, intelectuais e pessoas que têm uma certa sensibilidade para a música internacional. Imagino que eles tenham mais público na Europa, onde têm uma história mais conhecida. Ao longo dessas cinco décadas de carreira, tenho a impressão de que eles têm feito mais turnês pelos países europeus. Porém, quando eles se apresentam aqui nos Estados Unidos, atraem bastante público nos shows. 

 

IHU On-Line - Quais características você destacaria como as mais marcantes do trabalho de Gil e Caetano? Por quê? Quais se destacam no exterior?

Christopher Dunn – Acima de tudo Caetano e Gil são cosmopolitas, mas também têm uma grande sensibilidade para a própria tradição. Eles comunicam os valores estéticos e culturais da tradição brasileira, mas também são conhecedores profundos das tradições de diversos outros países. Isso se demonstra, por exemplo, pelo fato de eles logo no início da carreira abraçarem a linguagem do rock, como os Beatles  e Bob Dylan , enfim, a música feita nos Estados Unidos e Inglaterra, e incorporarem esses elementos no próprio trabalho. Mesmo trabalhando dentro da tradição brasileira, eles estão sempre muito antenados no que está acontecendo no cenário internacional. Não é que sejam os únicos a fazer isso, mas eles tiveram uma certa sensibilidade ao longo dos anos que facilitou esse trânsito entre Brasil e o mundo. Como eu disse, são cosmopolitas que têm essa vantagem de criar música enraizada na tradição local, mas ao mesmo tempo bastante engajada com as coisas que vêm de fora.    

 

IHU On-Line – O exílio de Caetano e Gil em Londres deixou influências no cenário cultural internacional? Quais? De que modo?

Christopher Dunn – Estamos falando de cerca de dois anos e meio, entre junho de 1969 e janeiro de 1972, relativamente pouco tempo, e também os dois ficaram basicamente na Inglaterra. Eles até viajaram para a França, não para fazer shows, mas para visitar amigos. Gil chegou a passar em Nova Iorque em 1971. Assim, esse exílio teve mais impacto sobre a cena folk rock britânica, mas tenho a impressão de que não houve uma influência muito significativa em outros campos. Por exemplo, toda a produção deles de 1968 teve pouca projeção na época. O público deles em Londres, na Inglaterra, era restrito. 

Então, a projeção deles como músicos internacionais foi relativamente pequena durante o exílio, só a partir dos anos 1980 é que assume mais relevância. No final dos anos 1970 Gil fez uma tentativa de buscar projeção internacional, quando ele gravou um disco em Los Angeles intitulado Nightingale (1979), com algumas composições em inglês. Foi uma tentativa de atrair um público norte-americano, mas não teve muito êxito. O disco é interessante, é bom, mas não surtiu o resultado esperado. Nos últimos 20 anos é que eles realmente conquistaram um público bem maior.

 

IHU On-Line - Ao longo dos 50 anos de carreira de Caetano e Gil, quais momentos destacaria como mais significativos no cenário cultural mundial? 

Christopher Dunn – Há muitos momentos interessantes, é até difícil escolher, mas vou destacar alguns. A experiência Tropicalista é uma dessas fases importantes, foi uma experiência fundamental. O fato de terem participado de um trabalho coletivo assumindo uma posição de destaque é relevante. Também acho sempre interessante lembrar que os dois até hoje se identificam como tropicalistas. Desse modo, essa foi uma experiência claramente formadora. 

A música que eles produziram na volta do exílio também foi muito significativa. Aqueles dois discos que eles lançaram em 1972, no caso de Caetano foi Transa e no de Gil Expresso 2222, marcaram a volta deles para o Brasil e foram fundamentais para o cenário cultural daquele tempo, o início dos anos 1970. 

Depois eu destacaria como momento interessante o final da década de 1970, quando eles abraçaram a música negra internacional, como o soul e o reggae. Eles chegaram a viajar para a África, onde Gil participou do Festival de Arte Negra - Festac , na Nigéria. Naquele tempo eles também começaram a se aproximar das manifestações populares afro-baianas, como os blocos afros, e tiveram um papel muito importante na difusão e, de alguma forma, na legitimação desses grupos emergentes. Gil, no disco Refavela (1977), gravou uma música do Ilê Aiyê , a Que bloco é esse. Foi a primeira vez que uma música de um bloco afro foi gravada. Então acho que essa foi uma passagem importante.

Sobre o Caetano, acho que a gravação do disco Estrangeiro (1989) foi bem interessante, sobretudo para a sua projeção internacional, porque foi produzido em Nova Iorque com a participação de músicos de lá. Já nos anos 1990, outro ponto que marcou a carreira dele foi seu trabalho com Jaques Morelenbaum , que tocou violoncelo e fez os arranjos das canções. Além desses há muitos momentos interessantes de projetos dele com grandes bandas e outros com grupos menores e novas propostas de som. Essa capacidade de se reinventar de Caetano é que chama a atenção.  

Mais tarde, no início dos anos 1990, quando lançaram Tropicália II (1993), eles vieram aos Estados Unidos fazer shows. Isso foi justamente naquele período em que houve a descoberta da Tropicália, que era desconhecida nos Estados Unidos. Ambos estavam completando 50 anos de idade nessa época. Já eram artistas bem estabelecidos e foi um momento em que havia um interesse não somente na música que eles estavam fazendo naquele instante, mas também na obra que eles tinham construído nos anos 1960 e 1970. 

 

IHU On-Line - Que Brasil é retratado ao exterior a partir das obras de Caetano e Gil?   

Christopher Dunn – Isso depende muito do nível da proficiência na língua portuguesa que o estrangeiro tem. Porque, para um público que não entende português, é suficiente apreciar somente a música e os aspectos mais tipicamente brasileiros da sonoridade dos gêneros musicais do Brasil e as experimentações com as influências internacionais. Mas para aqueles estrangeiros que falam português a imagem que recebem é muito variada. É difícil generalizar essa representação, porque Caetano e Gil têm uma vasta obra. Uma coisa que é possível apontar é que ambos são conhecidos como vozes que não podem ser reduzidas a uma linha, porque eles podem transitar por diversos estilos. Dentro deste contexto amplo, eles são associados, por exemplo, com a louvação da Bahia, vista como um lugar mágico de produção cultural muito forte. Ao mesmo tempo, ambos são conhecidos como artistas que retratam o Brasil com uma sensibilidade crítica, abordando os problemas sociais, como a violência policial, a pobreza, a desigualdade de classe, as questões raciais e de gênero. Esses temas entram na música de Caetano e Gil há muito tempo. Então, quando o público pode acompanhar e entender as letras das músicas, tem uma ideia bem mais rica do Brasil. Depende muito do ouvinte, de sua experiência com a língua e a cultura brasileira.  

 

IHU On-Line – Desde a Tropicália Caetano e Gil são tensionados a assumirem uma posição mais militante diante das questões políticas que se apresentam ao longo da trajetória deles, seja no contexto brasileiro, seja no internacional, como nas polêmicas em torno do show de ambos em Israel. De que modo o senhor interpreta o papel de músico desempenhado pelos dois artistas no exterior?

Christopher Dunn – Cada sociedade tem artistas que são mais engajados, entretanto acho que o fardo de Caetano e Gil me parece mais pesado, porque eles são da geração dos anos 1960, em que a questão da tomada de posição era muito importante e muito esperada no Brasil. Os artistas da geração deles nos Estados Unidos, em geral, não são tão cobrados hoje em dia pelas suas posições políticas e usualmente não fazem grandes intervenções. 

Eu sinto em Caetano e Gil uma certa ambivalência. Por um lado vejo que eles querem fazer intervenções no espaço público sobre diferentes temáticas, mas ao mesmo tempo, às vezes, percebo um certo recuo, uma volta a um direcionamento mais efetivo para o campo estético e cultural. 

É uma questão complexa, e o caso de Israel, por exemplo, é bastante complicado. O que me parece é que eles entenderam a importância de fazer o show nesse país e falar sobre o assunto, dar o posicionamento deles a respeito das ações do governo de lá. Mas acho que a própria história de Gil e Caetano foi decisiva para eles decidirem ir a Israel, país onde eles também têm um público há bastante tempo.■   

 

Leia mais...

- Fazer música: uma prática de cidadania. Entrevista especial com Christopher Dunn publicada na Revista IHU On-Line, nº 380, de 14-11-2011.

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