Edição 476 | 03 Novembro 2015

Os libertadores da criação artística brasileira

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Leslie Chaves e João Vitor Santos

Para Miguel Jost Ramos, Caetano e Gil inauguram uma forma de fazer música no Brasil. Eles misturam o pop com o erudito, o novo com o tradicional e a comunicação de massa com a contracultura

Imagine um liquidificar que recebe doses de arcaico e moderno, de popular e erudito, de elemento pop e elemento folclórico, da comunicação de massa e da contracultura, tudo ao mesmo tempo. O resultado dessa mistura é uma “geleia geral” que mixa elementos culturais diversos. Para o professor do departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio Miguel Jost Ramos, essa é a receita do movimento da Tropicália, que tem Gilberto Gil e Caetano Veloso como seus expoentes. “Como consequência, influenciaram muitas gerações posteriores de artistas brasileiros de diferentes linguagens a ampliarem suas possibilidades de atuação”, destaca. Assim, Ramos entende que os parceiros abandonam a ideia de dicotomia cultural, estética e política e passam a ver “seus aspectos de complementaridade e tensão”. O resultado é que “Caetano e Gil libertaram a criação artística brasileira de amarras históricas como, por exemplo, o nacionalismo fechado e tacanho que acreditava numa essência da música popular brasileira a ser preservada e protegida”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Ramos ainda destaca o caráter de complementaridade das carreiras, influenciando-se mutuamente. “Caetano sempre se caracterizou por ser um compositor e intérprete atento ao contemporâneo. Em muitos momentos de sua obra vemos uma aproximação com colaboradores jovens que trouxeram para o seu trabalho uma estética inovadora e original”, destaca. Gil, por sua vez, é entendido pelo professor como um verdadeiro multiculturalista brasileiro que vai do rock, reggae, funk, ao disco e ao soul norte-americano, sem esquecer marcas bem nacionais como o samba. “Gil tem um aspecto do seu trabalho que o coloca numa relação especial com outros instrumentistas e compositores. Sua forma de entender e conceber música tem uma originalidade muito forte, marca de sua assinatura, e, ao mesmo tempo, o coloca como um virtuoso da música brasileira”, completa.

Miguel Jost Ramos é formado em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre e doutor em Estudos de Literatura por esta mesma instituição. É pesquisador musical, atuando junto ao Núcleo de Estudos em Literatura e Música – Nelim, da PUC-Rio. Tem experiência nas áreas de Literatura e Sociologia, com ênfase em Cultura Brasileira, Música Popular e Produção Cultural Contemporânea. Desde 2013, atua como parecerista em editais para teatro e música na Secretaria de Cultura do município do Rio de Janeiro e na Secretaria de Cultura do Espírito Santo. Atualmente é pós-doutorando CAPES/PNPD no Departamento de Letras da PUC-Rio, onde atua como professor e coordena o curso de extensão e pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como se deu a aproximação artística entre Gil e Caetano e como entender essa aliança que perdura até os dias de hoje?

Miguel Jost Ramos - A cidade de Salvador na década de 1960 (Cidade da Bahia à época) vivia uma efervescência cultural muito específica na história brasileira. Esse fato decorria, a meu ver, principalmente da experiência radical proposta pela Universidade Federal da Bahia – UFBA sob a direção do reitor Edgar Santos  a partir do fim dos anos 50. Médico e político de tendências conservadoras, Edgar Santos aplicou na Universidade da Bahia uma proposta, nunca reeditada em mesma escala na universidade brasileira, de investimentos amplos e decisivos nas escolas de linguagens artísticas como dança, teatro e música. Como reitor, convidou professores e artistas do Brasil e do exterior para gerir esses investimentos, e lhes concedeu total liberdade para criação de programas ousados, inéditos para a educação brasileira, e com uma direção às perspectivas contemporâneas e de vanguarda. Fortaleceu também as faculdades das áreas das ciências humanas e sociais com investimentos estruturais e no corpo docente, e criou o primeiro centro de estudos afro-orientais da academia brasileira, sob a batuta de Agostinho Silva, figura paradigmática da UFBA naquele momento.

São inúmeros os relatos, de quem viveu em Salvador nestes anos, de que essa experiência de uma 'nova' universidade criou na cidade um ambiente que fomentava e incentivava a criação artística, o debate, o pensamento crítico, e que foi decisivo para toda uma geração na qual estavam inseridos também Caetano e Gil. Quem melhor chama atenção para essa experiência e o impacto dela é o antropólogo Antonio Risério , que já escreveu inúmeras vezes sobre isso em sua obra. O fato é que estamos falando de um período da Cidade da Bahia muito rico, que teve, não ao mesmo tempo, a presença de nomes como Glauber Rocha , Raul Seixas , Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé , Waly Salomão , Rogério Duarte , Carlos Nelson Coutinho , entre muitos outros que protagonizaram uma cena cultural e intelectual vitalizada. Esse é o ambiente urbano e cultural que aproximou Gil e Caetano e lhes proporcionou a chance de fazerem coisas juntos no teatro e na música.

No sentido prático e biográfico, é importante constatar que Gil já tinha uma breve carreira de músico nos programas de auditório de rádios e televisões da Bahia, e que Caetano, ainda em Santo Amaro, já sabia quem era e prestava relativa atenção em Gilberto Gil. Caetano citou muitas vezes em entrevistas e depoimentos o fato de que sua mãe lhe gritava da frente da televisão: “Caetano, venha ver aquele preto que você gosta tocando violão na televisão”. Assim, ao chegar em Salvador, vindo de Santo Amaro, ele já reconhecia o lugar de Gil como músico popular.

 

IHU On-Line - Quais características você destacaria como as mais marcantes do trabalho de Gil e Caetano? Por quê?

Miguel Jost Ramos - A carreira de ambos é marcada por uma pluralidade que nos dificulta apontar uma característica ou mesmo delimitar um espaço de atuação para estes dois artistas. Mas podemos dizer que, num primeiro momento, dentro do que consideramos ser o período do tropicalismo, Gil e Caetano foram artífices de profundas transformações nos horizontes estéticos da canção popular produzida no Brasil. A incorporação de uma série de novos elementos líricos, harmônicos, melódicos, assim como de procedimentos e suportes da cultura pop, da pop art, da música erudita de vanguarda, da poesia concreta, da publicidade, entre outros meios do qual o tropicalismo se apropriou, revolucionou a forma de se pensar e fazer música no Brasil com implicações presentes até os dias de hoje.

O trânsito com artistas de outras linguagens como Zé Celso Martinez Correa , Hélio Oiticica , José Agrippino de Paula , e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos  também são um dado fundamental para entender como a música popular expandia o seu campo de atuação e de interesses naquele momento. Gil e Caetano, sem dúvida alguma, foram forças centrais desse processo, e esse é um primeiro aspecto a destacar que caracteriza de maneira singular o surgimento dos dois artistas.

Após o exílio dos dois em Londres entre 1969 e 1971-2, imposto pela ditadura civil militar brasileira, e a volta ao Brasil já sem o compromisso com o movimento tropicalista, suas carreiras percorreram caminhos diversos. Assim, compõem um quadro muito complexo para apontar uma característica ou outra que seja a mais marcante.

 

IHU On-Line - Qual a importância de Caetano e Gil para a formação da cultura brasileira na segunda metade do século XX? Qual é o principal aspecto que lhes dá notoriedade nesse contexto?

Miguel Jost Ramos - Caetano e Gil abriram uma possibilidade nova de fazer música no Brasil, e como consequência influenciaram muitas gerações posteriores de artistas brasileiros de diferentes linguagens a ampliarem suas possibilidades de atuação. O fato de adotar como dado positivo a coexistência do arcaico e do moderno, do popular e do erudito, do elemento pop e do elemento folclórico, da comunicação de massa e da contracultura, entre outras dicotomias que não eram pensadas em suas obras como polos de oposição, mas sim em seus aspectos de complementaridade e tensão, Caetano e Gil libertaram a criação artística brasileira de amarras históricas como, por exemplo, o nacionalismo fechado e tacanho que acreditava numa essência da música popular brasileira a ser preservada e protegida. A experiência tropicalista de colocar no mesmo liquidificador, e criar uma verdadeira miscelânea, ou melhor, uma verdadeira geleia geral, em que misturava e mixava os elementos culturais mais diversos que conviviam no Brasil, é uma marca definitiva da história desse movimento e, mais especificamente, dos dois cantores e compositores.

 

IHU On-Line - Como vem se situando ao longo do tempo as obras de Caetano e Gil no cenário cultural brasileiro? E para além do Brasil?

Miguel Jost Ramos - Caetano e Gil tem, desde 1967, um papel de protagonismo no cenário cultural brasileiro. Suas canções, seus discos, shows, turnês possuem enorme relevância e ampla divulgação dos meios de comunicação, dos circuitos da crítica, e costumam atingir um grande e fiel público. Para além disso, são constantemente abordados e questionados a responderem sobre os mais variados temas da política e da sociedade brasileira. Em todas as entrevistas que concedem, os dois artistas são chamados a comentar fatos mais distintos da política nacional, como a corrupção de determinado partido ou governo, sua posição na política de drogas, ou do aborto, ou da redução da maioridade penal, ou do direito ao casamento, entre tantos outros temas polêmicos para nossa sociedade. Ao longo destas décadas ambos se tornaram figuras paradigmáticas do nosso meio cultural e também político. Seus posicionamentos a favor de um candidato A ou B, ou a favor do posicionamento X ou Y dentro de um tema polêmico, costumam gerar acalorados debates em meios de comunicação, crítica e redes.

Tanto Gil quanto Caetano tem um relevante destaque internacional de suas carreiras. Seus shows em turnês internacionais têm, além da presença de brasileiros radicados no exterior, um grande número de estrangeiros interessados por suas obras. Se não desfrutaram do mesmo impacto que o sucesso de artistas da Bossa Nova como João Gilberto  e Tom Jobim  gerou fora do Brasil, não deixam de ter uma carreira internacional de destaque em vendas, público e crítica. E, ainda, ambos criaram parcerias com artistas de fora do Brasil de grande projeção na música mundial. Vide, por exemplo, a colaboração de Gilberto Gil com nomes consagrados da música norte-americana como Stevie Wonder  e Quincy Jones .

 

IHU On-Line - Que elementos você destacaria como mais relevantes na construção dos perfis de artista e das obras de Caetano e Gil? Quais mais contribuíram para eles serem como são?

Miguel Jost Ramos - Caetano, ao longo de sua carreira, sempre se caracterizou por ser um compositor e intérprete atento ao contemporâneo. Em muitos momentos de sua obra vemos uma aproximação com colaboradores jovens que trouxeram para o seu trabalho uma estética inovadora e original. Isso aconteceu em trabalhos dos anos 70, 80, 90, e mesmo de 2000 para cá. Sua veste 'camaleônica' é uma marca muito forte e pode ser vista de forma clara em discos que interviram no cenário cultural do seu tempo de maneira contundente como “Araçá Azul” (1973), “Estrangeiro” (1989) ou mesmo o recente “Cê” (2006), primeiro disco da trilogia completada por “Zii e Zie” (2009) e “Abraçaço” (2012).

Gil tem um aspecto do seu trabalho que o coloca numa relação especial com outros instrumentistas e compositores. Sua forma de entender e conceber música tem uma originalidade muito forte, marca de sua assinatura, e, ao mesmo tempo, o coloca como um virtuoso da música brasileira. Sua veia tropicalista, permanente no interesse por experiências da cultura pop como o rock, o reggae, o funk, a disco e o soul norte-americano, se expressa também no conhecimento profundo da tradição da música popular brasileira por via do samba, o samba de roda da Bahia e o baião. Gil é um multiculturalista no sentido pleno do termo, e não no contexto da armadilha político-retórica que o termo criou dos anos 90 para cá. Seu interesse em pesquisar, descobrir e processar sonoridades de todos os lugares e fontes possíveis é uma espécie de motor do seu trabalho nesses 50 anos de carreira e música.

 

IHU On-Line – Como se dá a influência mútua entre as obras dos dois? Em que aspectos é mais perceptível?

Miguel Jost Ramos - Como parceiros desde o início de suas carreiras, e estando sempre próximos como interlocutores e amigos, Gil e Caetano construíram uma cumplicidade evidente entre seus trabalhos. Cumplicidade citada e explicitada em muitos depoimentos, e que faz com que ainda hoje os dois saiam em uma longa turnê nacional e internacional para comemoração de 50 anos de carreira. Gil afirmou muitas vezes que não saberia dizer se teria sido capaz de realizar tudo que fez na música brasileira se não houvesse Caetano por perto e como parceiro. Caetano cita até hoje que foi Gil quem fez ele perder o 'medo' da música e do violão como instrumento.

Só esses dados já seriam fortes demais para entendermos a influência recíproca das suas obras, mas podemos ir além e chamar atenção também para discos que lançaram juntos ou individualmente em períodos que mantiveram forte contato. “Tropicália” (1968), “Transa” (1972), “Expresso 2222” (1972), “Tropicália 2” (1993) são demonstrações significativas desse entrelaço entre os dois músicos.

 

IHU On-Line - Como as obras de ambos dialogam/se contrapõem com outros estilos musicais e artistas dos cenários culturais brasileiro e internacional? Que momento (ou momentos) o senhor destaca como mais marcante?

Miguel Jost Ramos - Em diversos trabalhos de suas carreiras, Caetano e Gil apontaram para influências de outros artistas e procuraram dialogar com outras escolas da música brasileira e internacional. O tropicalismo já era uma afirmação desse desejo e isso se realiza em muitos outros momentos e discos de suas respectivas carreiras a partir dos anos 70. Gil, por exemplo, a partir de meados da década de 70, se aproximou muito do caldeirão musical da black music internacional. Seus discos da fase “Re” — “Refazenda” (1975), “Refavela” (1977), “Realce” (1979) — são o retrato mais fiel desse envolvimento e interesse. Gil também foi um artista voltado para a pesquisa e conhecimento de tradições populares e regionais do Brasil. Do seu interesse pela Banda de Pífanos do Caruaru  no início de sua carreira até aproximações recentes com outros artistas populares, são inúmeros exemplos desse trânsito que sempre se propôs. Esteve também junto com diversos artistas da sua geração em shows, discos e outros trabalhos. Talvez o disco com Jorge Ben  seja um dos mais significativos desses exemplos. Nos anos 80, trabalharia com Paralamas do Sucesso  e Cazuza , nos anos 90 com Chico Science  e Arnaldo Antunes , e não cabeira aqui citar todas suas inúmeras parceiras que reificam essa vocação para o diálogo musical e cultural.

Caetano até hoje também desdobra sua carreira em parcerias diversas com artistas de sua geração e mais jovens. Desde seu primeiro disco com Gal , passando por Chico Buarque , sua irmã Bethânia , Odair José , David Byrne , Grupo Olodum , Jorge Mautner , Maria Gadú , Roberto Carlos , entre muitos outros, o compositor divide palco e estúdio com outros artistas da música popular. Assim como Gil, Caetano traz em muitos dos seus discos a assinatura de produtores musicais com os quais travou um diálogo intenso e precioso. Desde Rogério Duprat , no período tropicalista, passando pela contribuição de Jards Macalé  para o disco “Transa”, e chegando em nomes mais recentes em sua carreira como Arto Lindsay , Jacques Morelembaum  e Alexandre Kassin , são muitos os momentos em que Caetano traz para seus discos a contribuição e assinatura de músicos e arranjadores que conferem aos discos sonoridades novas.

Caetano e Gil também criaram, em determinados momentos de suas carreiras, espécies de 'discos tributos' em que homenageiam ou releem algumas de suas principais influências na música. Gil gravou um disco de canções só de Bob Marley  e, recentemente, um disco só de sambas gravados por João Gilberto em sua discografia. É notório também seu trabalho de reverência à tradição do baião no Brasil e à obra de Luiz Gonzaga . Caetano Veloso rendeu homenagens mais panorâmicas em que interpretava clássicos do cancioneiro latino-americano e norte-americano. Uma curiosidade a mais que podemos perceber em Caetano está na maneira constante que cita outros músicos em letras de sua autoria, como Djavan , Donato , Kassin, entre muitos.

 

IHU On-Line - Qual a importância do movimento tropicalista nas carreiras de Gil e Caetano? De que forma foi se compondo o cenário para a emersão deste movimento?

Miguel Joel - Como disse, o tropicalismo é determinante para toda produção cultural brasileira a partir do fim dos anos 60. Seu legado é enorme em nosso país, o que podemos ver nas inúmeras citações, pesquisas, homenagens, tributos, antologias que rememoram a experiência do movimento. Caetano e Gil, como duas das vozes mais representativas dessa experiência, são, e serão, sempre lembrados por seu protagonismo nesse período. Acredito que em relação ao desenvolvimento de suas carreiras, o legado tropicalista teve muito peso nos anos 70, quando, ainda no período da ditadura civil militar brasileira, muitos esperavam que atitudes fortes e contestadoras pudessem vir dos dois compositores à semelhança do que ocorrera entre 67 e 68.

Na imprensa alternativa e no público jovem havia também uma tentativa de entender por que o tropicalismo não se configurava mais como um movimento organizado e por que Gil e Caetano se recusavam a responder em nome do tropicalismo ou como seus representantes. A partir dos anos 80 e na chegada aos 90, quando inclusive eles gravam o disco “Tropicália 2”, essa pressão e expectativa começam a se dissipar. Hoje, em vez de expectativa, o que encontramos é um tom de celebração e, por vezes, até mesmo mítico em relação à participação de ambos no movimento.

Contudo, acredito que podemos afirmar que, como prática e procedimento, como estética e política, o tropicalismo sempre se manteve presente ao longo dos 50 anos de carreira dos dois compositores. O problema que se configura nesse caso é de como interpretamos o que foi o Tropicalismo. Entendendo-o, como eu prefiro, como prática e procedimento, é possível sim afirmar sua permanência nos trabalhos de Gil e Caetano, assim como de outros que não são o tema dessa nossa conversa.

 

IHU On-Line - Você poderia falar um pouco sobre o papel do músico popular na sociedade brasileira, principalmente à luz das discussões em torno do posicionamento político de Caetano e Gil, que de um lado foram perseguidos pelo regime ditatorial e, de outro, muito cobrados por parte do público?

Miguel Jost Ramos - A música tem, desde sempre, um papel muito particular no Brasil. Seguindo a ideia defendida por José Miguel Wisnik  de que em nosso país saltamos da tradição oral para uma tradição áudio-audiovisual, e que não passamos pela consolidação da escrita e da leitura em nossa sociedade, podemos entender que canção popular e urbana brasileira, como configurada no início do século XX, foi decisiva em temas básicos da identidade nacional brasileira como a unificação da língua. Isso também para a compreensão de determinadas práticas e costumes como tipicamente brasileiras. Através do rádio se inventou muito do que até hoje entendemos como “o Brasil”. A canção popular foi o meio pelo qual se revelou e explicitou essa ideia de país. Esse já é um dado significativo para entendermos a centralidade que a canção popular desempenhou para nós.

Como não nos cabe aqui repisar toda essa história, podemos saltar diretamente para os anos 60 e tentar entender em qual contexto estavam inseridos Gil, Caetano e outros músicos populares de sua geração. Essa foi uma década com muitas particularidades e é possível dizer que talvez tenha sido um dos raros momentos em que se realmente acreditou que a cultura tinha implicações diretas sobre a realidade política e social brasileira. Discussões como arte engajada, papel do intelectual e do artista nas transformações e lutas sociais, nacionalismo versus imperialismo cultural, resistência à ditadura, eram temas do dia a dia entre músicos, compositores e demais artistas. Muitos acreditavam, de fato, que o compositor popular deveria ser o porta-voz de uma série de demandas políticas e sociais do Brasil. O uso inteligente dessa crença por parte dos produtores de televisão, e também dos festivais de música, criou um ambiente de polarização entre determinados grupos, como o do tropicalismo e o da canção de protesto, e gerou ainda mais repercussão em cima de algumas divergências entre estes.

O fato é que se jogou muita luz sobre esse lugar do compositor popular como alguém que deveria comentar e interpretar o país. Analisando depoimentos e entrevistas daquele momento com os compositores e cantores, encontramos perguntas que anos antes seria inimaginável vermos sendo feitas a artistas ligados à bossa nova ou ao samba jazz. Talvez pela violência com que a ditadura reagiu à presença destes compositores como referências de um pensamento de oposição ao regime autoritário, talvez pela forma contundente com que eles se pronunciavam nesse período, o que aconteceu foi que se consolidou no Brasil, principalmente em relação a esta geração de artistas, uma prática de exigir e cobrar do músico popular uma postura política definida diante dos mais variados e surpreendentes temas. Esse é um movimento que se inicia nos anos 60, mas que perdura na nossa história cultural ainda nos dias de hoje. Caetano, Gil e Chico Buarque talvez sejam a representação máxima desse papel que também coube ao músico popular no Brasil.■

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