Edição 206 | 27 Novembro 2006

Uma crítica radical da política representativa e uma aposta pela participação

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IHU Online

Por e-mail, a filósofa espanhola Fina Birulés afirmou, com exclusividade à IHU On-Line, que, na obra de Hannah Arendt, pode ser localizada uma « crítica radical da política representativa », bem como uma « aposta pela participação. Mostra disso são tanto sua aposta pelo movimento dos conselhos de operários como sua distinção entre o contrato social e o contrato mútuo”. Entretanto, Birulés alerta: “a obra de Arendt não nos proporciona um “manual de instruções” sobre como deveríamos proceder”, além de “não se limitar a contar com o já pensado e atrever-se a pensar o novo de nosso tempo”.

Birulés é professora titular de Filosofia na Universidade de Barcelona, Espanha. Dedica-se à investigação de temas relacionados com a Filosofia da História e os Estudos de Gênero. E é no encontro dessas vertentes que fixou como objeto privilegiado de estudo a obra de Hannah Arendt, situando-se como uma das principais especialistas em seu pensamento e realizando um trabalho destacado como tradutora e introdutora de seus textos para o espanhol.
Desde 1990, coordena o Seminário Filosofia y Gènero da mesma universidade. É membro da direção do futuro Instituto Interuniversitário de Estudos de Gênero da Cataluña (IIEDG). Entre suas obras, destacamos Filosofía y Género. Identidades femeninas. Pamplona: Pamiela, 1992; En torno a Hannah Arendt. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1995 e Hannah Arendt. El orgullo de pensar. Barcelona: Gedisa, 2000.

IHU On-Line - Por que a senhora afirma que Arendt é uma interlocutora possível, mas que sempre incomoda?

Fina Birulés -
Sua obra se destaca numa época, a nossa, em que a atividade de quem se dedica ao pensamento parece reduzir-se à mera hermenêutica, carente da coragem ou da capacidade necessárias para dizer algo sobre o mundo ou sobre sua própria experiência. Arendt não só não caiu na tentação de ganhar as simpatias de sua geração, mas também continua sendo, como o foi em vida, uma interlocutora modesta. Efetivamente, em seus escritos, a atenção centra-se mais no processo de construir, do que no intento de dar com uma construção acabada. E isso porque sua escritura não é o resultado de um projeto de “ser uma grande pensadora” ou uma “grande escritora”, senão simplesmente fruto de um esforço por compreender em sua especificidade os fatos que viveu.

Arendt considera que a realidade não é um objeto do pensamento, mas precisamente aquilo que o ativa, não nos oferecendo algo semelhante a um modelo teórico cômodo que nos permita dar conta de qualquer fato com o qual nos vejamos confrontados. Seu pensar é uma amostra do que significa encarar diretamente o acontecimento e tratar de compreendê-lo em sua especificidade, sem um discurso ideológico que nos sirva de airbag para proteger-nos ante o impacto da experiência, ou que reduza o novo ao velho, ao já conhecido.

IHU On-Line - Como pode a obra desta filósofa ajudar-nos a reabilitar e redignificar a política?

Fina Birulés
– A obra de Arendt pode nos auxiliar a reabilitar e redignificar a política na medida em que ela crê que o totalitarismo não é o resultado de um excesso de política em todos os âmbitos, mas que, de fato, comporta sua destruição. Quase todos os seus trabalhos da década dos anos 1950 podem ser considerados como o resultado de sucessivas tentativas de repensar o sentido, a especificidade e a dignidade da política – ao distinguir entre domínio e poder político, e entre autoridade e poder – ou de abordar o problema da fundação da liberdade – como o faz em sua análise das revoluções modernas. Tratava-se de retornar à pergunta “O que é a política?” sem cair na ilusão de uma pura e simples recuperação da tradição, nem nos característicos enganos derivados das atitudes progressistas que, em sua opinião, costumam olhar o mundo com uma intencional falta de realismo, recusando defrontar-se com fatos desagradáveis. Arendt estava longe de compartilhar com a confiança na Ilustração, que continua dominando o autocomplacente pensamento ocidental. Basta recordar aquelas palavras do prólogo de 1950 a As origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989-2004, segundo as quais o progresso e a fatalidade são as duas faces da mesma moeda, ambas são artigos de superstição, e não de fé. Identificar os elementos que cristalizaram nos regimes totalitários contemporâneos levou-a, posteriormente, a aprofundar, em sua análise da sociedade moderna, o processo de despolitização e de esvaziamento da liberdade pública – de atomização dos indivíduos na sociedade de massas, prelúdio, de certo modo, do maior e mais radical isolamento dos campos de concentração – e sua conflitiva distinção entre o social e o político. Distinção que sublinha que a liberdade política necessita da presença dos demais, exigindo pluralidade, um espaço entre os homens, de modo que a política não pode ser concebida como mera superestrutura.

IHU On-Line - É possível pensar numa democracia radical com base no legado de Arendt? Quais são as efetivas possibilidades de se dar essa radicalização e o que ela significa?

Fina Birulés
- Em Arendt, há uma crítica radical da política representativa, há uma aposta pela participação. Mostra disso são tanto sua aposta pelo movimento dos conselhos de operários como sua distinção entre o contrato social e o contrato mútuo. O chamado contrato social é subscrito entre uma sociedade e seu governante, e consiste num ato fictício e imaginário pelo qual cada membro entrega sua força e seu poder, isolado dos demais, para constituir um governo. Longe de obter um novo poder, cada membro da sociedade cede seu poder real e limita-se a manifestar seu consentimento em ser governado. Em troca, o contrato mútuo, mediante o qual os indivíduos se vinculam para formar uma comunidade, baseia-se na reciprocidade e pressupõe a igualdade. “Seu conteúdo real é uma promessa e seu resultado é certamente uma sociedade, no antigo sentido romano de societas, que quer dizer aliança. Tal aliança acumula a força separada dos participantes e vincula-os numa nova estrutura de poder, em virtude de promessas livres e sinceras”. Seria, pois, preciso entender a liberdade como libertação do domínio e não como a mera libertação da necessidade. Arendt recorda-nos que a teoria política não consiste em ensinar-nos o quê pensar para que saibamos como atuar, pois isso seria doutrinação. A teoria política nos ensina como detectar os momentos de liberdade política. Segue daí que, na obra de Arendt, não se nos proporciona um “manual de instruções” sobre como deveríamos proceder.

IHU On-Line - A acusação de Arendt ter uma concepção política elitista pode ser creditada em função de seu “retorno aos gregos”? Em que sentido essa concepção se contrapõe ao niilismo hoje exposto na democracia e pode ajudá-la a revitalizar sua característica de não eliminar o conflito, porém ordená-lo?

Fina Birulés
- Esta acusação é, em boa medida, fruto de uma leitura superficial de sua obra. Basta ler com atenção para dar-se conta que Arendt não é uma nostálgica da polis, mas trata-se de investigar que mudanças, que elementos do século XIX consolidaram-se nos terríveis acontecimentos do século XX. Mostra disso são suas palavras em A condição humana. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002-2005: “Quando o movimento operário apareceu na cena pública, foi a única organização na qual os homens atuaram e falaram qua homens – e não qua membros da sociedade”. Se se pode falar de elitismo, este não consiste em nada mais do que em afirmar que nem todos estamos interessados no âmbito do político, porém jamais ela deixa de sublinhar o direito – e não a obrigação – de todos a participarem. Como disse antes, Arendt está disposta a olhar com realismo o panorama político, de modo que se poderia afirmar que, para ela, o importante é enfrentar os problemas sem pensar que há rápidas soluções, tratando de rearticulá-los de forma não violenta e com a coragem necessária para não endossá-los nos mesmos termos à próxima geração.

IHU On-Line - A senhora afirma que é muito difícil ser arendtiano, pois Arendt não tem uma vontade de sistema, porém uma vontade de pensar os acontecimentos. Seria esta a “herança sem testamento” à qual a senhora se refere?

Fina Birulés
- Efetivamente, para ela, a ruptura do fio da tradição que teve lugar no século XX é irreversível, razão pela qual está muito presente em sua obra a heterogeneidade entre as velhas ferramentas conceituais e a experiência contemporânea. De modo que achamos, em sua obra, chaves sobre como responder aos acontecimentos de seu presente, porém, em nenhum caso, proporcionando-nos chaves para compreender e responder a qualquer situação, o que corre a cargo de nossa responsabilidade.

IHU On-Line - De que modo as filosofias de Simone Weil e Hannah Arendt se aproximam e que outra leitura do marxismo elas podem oferecer?

Fina Birulés
- Tanto Arendt como Weil  estão interessadas na obra de Marx, da qual ambas têm consciência dos limites. A primeira, que elogia os escritos da segunda, considera que Marx detectou as importantes mudanças que se produziram no século XIX, mas que ele os interpretou com base nas categorias da tradição. Simone Weil afirma que é um grande erro partir da teoria marxista do desenvolvimento das forças de produção como motor da história, de modo que parece que a tarefa das revoluções não consiste na liberdade dos homens, e sim na liberação de suas forças produtivas, que finalmente poderão dar aos humanos o ócio suficiente para libertá-los do trabalho até chegar a um estado paradisíaco. Weil desconfia dos que estão convencidos de que qualquer tentativa de ação que não consista no desenvolvimento das forças produtivas esteja destinada ao fracasso e de que o progresso das forças produtivas fará progredir a humanidade, embora o preço seja o de uma opressão provisional. Ou seja, segundo Weil, crer que nossa vontade converge para uma misteriosa vontade que atuaria no mundo e ajudaria a ganhar é pensar religiosamente. Tal seria o verdadeiro ópio do povo.

IHU On-Line - Como pode Arendt ajudar-nos a entender os totalitarismos do século XXI? Sua concepção de banalidade do mal continua sendo atual?

Fina Birulés
- Arendt conheceu a indiferença como característica do mal no século XX e talvez este seja o mal em nosso tempo. Mas, até onde os acontecimentos que vivemos podem ser compreendidos com a categoria de “totalitarismo”? Certamente, para opor-nos ativamente a eles, pode ser que tal categoria nos sirva, porém, para dar conta da especificidade de nosso presente, é necessário um trabalho analítico e conceitual semelhante ao que ela teve que desenvolver: não se limitar a contar com o já pensado e atrever-se a pensar o novo de nosso tempo.

IHU On-Line - A situação atual do Estado de Israel pode ser interpretada segundo quais elementos do pensamento de Arendt?

Fina Birulés
- Um possível caminho para ver até onde as reflexões de Arendt podem servir de base para uma análise de tal situação se pode ler no livro da historiadora Idith Zertal , La nation et la mort, la Shoah dans le discours et la politique d'Israel. Editions La Decouverte, Paris 2004 (A nação e a morte, a Shoah no discurso e a política de Israel).

IHU On-Line - De que modo as filosofias de Heidegger e Jaspers marcaram a trajetória intelectual de Arendt? E por que ela fala que Heidegger cometeu um “engano político” do mesmo tipo daquele que Platão cometeu em relação à tirania?

Fina Birulés
- Arendt compartilha efetivamente com Heidegger de muitos aspectos de sua reflexão sobre o pensamento, porém tanto sua crítica à tradição metafísica como sua idéia de que a filosofia é da ordem do significado, e não do conhecimento, indicam para uma tentativa, nunca de todo resolvida, de reconsiderar o nexo entre o pensar e a política, e não para o “esquecimento do ser”. Arendt não condena a filosofia, limita-se a constatar que o filósofo não mostrou maior competência que os demais, quando se trata de pensar o particular, quando se dirige aos assuntos humanos. Em especial, podemos considerar que o caso de Heidegger – de quem apreciava seus êxitos filosóficos, embora a perturbassem sua inabilidade como agente e seu acosmismo – aparece na maioria das reflexões sobre a tensão entre o pensar e o político que encontramos ao longo de sua obra. Em troca, com Jaspers  ela se sente mais próxima, na medida em que sua aposta é por um pensar vinculado ao diálogo, à fala ou, como disse Arendt, em exortação a que “os seres humanos falem entre si, embora o dilúvio se abata sobre eles”.

 

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